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Prematuro

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No final de março, após uma chuva benfazeja amenizar a secura de um verão interminável, saí para espairecer. A temperatura agradável suavizava meu permanente senso de urgência, fruto das inúmeras solicitações de ajuda, tanto de vivos quanto de mortos. Há uma praça bastante arborizada relativamente perto do local onde resido e para lá me dirigi. Considero um privilégio desfrutar desse oásis verde em meio a paisagem de asfalto e concreto. O trinar dos passarinhos, as corridas frenéticas dos cães, as risadas das crianças têm o poder de afastar de mim as sensações amargas herdadas dos eventos dolorosos que costumo tratar. Ao menos era o que eu esperava. Sentado num banco apartado do burburinho, sondava a esmo. A vinte metros divisei uma babá distraída, mexendo no celular. No carrinho a sua frente um garotinho ria e esticava os bracinhos. Não para ela. Absorta, ignorava a agitação do menino. Os gracejos eram para uma jovem que o contemplava com afeto e desampa...

Insônia

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D. Carmelina testemunhava o nascer de um novo dia, anunciado acintosamente pela claridade espraiando-se através das frestas da persiana. Assustada, a escuridão escondia-se pelos cantos enquanto ela rolava para o lado. Não buscava o sono perdido, pois este fugira há tempos. Levantou-se, vestiu o robe, seguiu para o banheiro e de lá para a cozinha. Num ato reflexo procurou a mesa posta para o café. Encontrou o tampo de fórmica coberto pelo trilho de crochê com um singelo bibelô servindo de enfeite. Aonde estava com a cabeça? Há um par de anos vivia sozinha. Essa condição inédita lhe impusera a mais desditosa das visitantes: a morte. Não a sua, obviamente, mas a de seu marido. Fora ele, por décadas, quem madrugara para cumprir duras jornadas de trabalho. Saía cedo, deixando tudo pronto para ela e os rebentos. A prática converteu-se em hábito, mantido inclusive depois da aposentadoria. Estendeu a toalha - última sobrevivente do enxoval. No armário pegou a xícara de us...

A Manjedoura Vazia

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Alguns acreditam que a época do Natal propicia a ocorrência de fatos inexplicáveis, inusitados ou maravilhosos destinados a abençoar os mortais sem causa ou razão aparente. Não era o caso daquele moço acabrunhado, descendo, hesitante, os degraus do ônibus que o devolvera a cidade onde crescera. Retornava após longa ausência. Fracassos sucessivos o converteram em cético no que diz respeito à existência da felicidade. Mal sabia ele que viveria uma experiência capaz de modificá-lo definitivamente. Voltara devido ao falecimento do pai, de quem fora próximo. Divergiram irremediavelmente no momento em que decidira dar um rumo diferente ao seu futuro. Saiu de casa brigado, afastou-se, achando ter rompido amarras que o sufocavam. A dor da perda o revoltara sobremaneira porque a distância o impedira de estar presente no funeral. Com esta viagem pretendia, a seu modo, prestar um derradeiro tributo. Abandonou a vida insatisfatória que levava na esperança de resgatar sentimentos marcantes da infân...

A visita

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Siá Rita acordou cedo. Varreu e ajeitou sua casinha da melhor maneira possível devido a idade avançada. Colheu flores no jardim e as colocou no vidro de café solúvel que servia de vaso. Depositou o arranjo num alvíssimo guardanapo de crochê, ornamento da mesa tosca, em volta da qual estavam dispostas três cadeiras. Vaidosa, mantinha as madeixas cuidadosamente penteadas. Apanhou a mais bela flor do ramalhete e a prendeu nos cabelos. Viver afastada dos vilarejos ribeirinhos não justificava uma aparência desleixada, segundo ela. A brancura de suas cãs denunciava o decurso de decênios e os sulcos da face amarguras de dores e penares. Olhou em torno. Sorriu, satisfeita com o resultado do seu trabalho. Debruçou-se no peitoril da janela, apreciando a paisagem. A tarde ia alta. As sombras das árvores esticavam-se na placidez do igarapé que se estendia a perder de vista. Revivia felicidades passadas. Interrompeu as reminiscências ao reparar nas ondulações suaves espalhando-se na superfície ...

Merica

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As luzes do amanhecer banhavam Angelo em pé no convés do vapor Vittoria. Estava ali porque carecia do alento oferecido pela brisa fresca da manhã. O ambiente opressivo do alojamento coletivo tornara-se insuportável após tantas noites acumulando o cheiro de centenas de suores dormidos. Essas pausas amenizavam as náuseas que o acometiam. A repulsa era tamanha que nem o infindável balanço infligido pelas ondas o perturbava. Desistira de procurar equilíbrio por ser desnecessário. A massa humana compactada impedia a queda por falta de espaço. Viajava ombro a ombro com a multidão de emigrantes italianos que fugiam da miséria. A ociosidade forçada dava-lhe tempo para refletir a respeito  das consequências advindas da troca do Vêneto pelo desconhecido. Recriminava-se por ter lançado à sorte esposa e quatro filhos, todos sufocando no porão apinhado de gente. Não fora isso que planejara. Não fora isso que prometeram.  Há exatos vinte dias embalaram seus parcos pertences e...

Sinal dos tempos

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O visor fosforescente do rádio-relógio marcava exatamente seis horas. Josimar acordara há pelo menos trinta minutos. Permanecia deitado, sentindo o leito vibrar na frequência dos veículos trafegando abaixo de sua janela. O ronco de uma motocicleta com o escapamento aberto encerrou definitivamente a sonolência que embalava os resquícios da madrugada. Pontual como sempre, o motoqueiro barulhento sinalizava o início de uma nova jornada. Rolou cuidadosamente para a beira do colchão e sentou. Bocejou tateando com os pés em busca das chinelas. Movimentava-se lenta e silenciosamente. Temia despertar Etelvina, sua esposa. Ela costumava ser irascível o dia todo. Estremunhada era pior e ele retardava propositalmente a experiência. Por uma fresta na cortina espiou através da vidraça. Nuvens pesadas obstruíam a incipiente luminosidade matutina. Estavam no inverno, mas um calorzinho fora de época fazia crer o contrário. Mantendo o ritmo calmo, passou pela porta. Fechou-a atrás de si para isolar o q...

Não corra papai

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Incidentes bizarros perturbavam os moradores de uma ruazinha arborizada da Tijuca. Tudo começara há alguns meses, mas faziam duas semanas, aproximadamente, que me chamaram. Aqui no Rio, automóveis abandonados na via pública recebem o curioso apelido de Bibelôs de Calçada. De uma hora para outra, um desses adornos criara vida própria: amanhecia com uma das janelas abaixada, os faróis piscavam e buzinadas extemporâneas soavam a qualquer hora do dia ou da noite. Não era o modelo do ano, contudo não era assim tão velho. Estava maltratado por dormir ao relento, coberto de pó, a lataria riscada, pneus murchando, mato crescendo em torno. Os vidros opacos pela sujeira bloqueavam a visão do interior. Residentes da vizinhança tentaram, sem sucesso, surpreender o responsável pelas manifestações. Desistiram, supondo tratar-se de travessuras da criançada. Conforme o tempo passava os episódios amiudavam-se. O morador da casa na frente da qual o veículo estacionara flagrou, em mais de uma ocasião...