Insônia


D. Carmelina testemunhava o nascer de um novo dia, anunciado acintosamente pela claridade espraiando-se através das frestas da persiana. Assustada, a escuridão escondia-se pelos cantos enquanto ela rolava para o lado. Não buscava o sono perdido, pois este fugira há tempos. Levantou-se, vestiu o robe, seguiu para o banheiro e de lá para a cozinha.

Num ato reflexo procurou a mesa posta para o café. Encontrou o tampo de fórmica coberto pelo trilho de crochê com um singelo bibelô servindo de enfeite. Aonde estava com a cabeça? Há um par de anos vivia sozinha. Essa condição inédita lhe impusera a mais desditosa das visitantes: a morte. Não a sua, obviamente, mas a de seu marido. Fora ele, por décadas, quem madrugara para cumprir duras jornadas de trabalho. Saía cedo, deixando tudo pronto para ela e os rebentos. A prática converteu-se em hábito, mantido inclusive depois da aposentadoria.

Estendeu a toalha - última sobrevivente do enxoval. No armário pegou a xícara de uso diário. Nostálgica, leu a frase estampada no mimo recebido do caçula numa homenagem promovida pelo grupo escolar onde se alfabetizara: "para a melhor mãe do mundo". Antigamente a mesa quase não suportava a todos reunidos a sua volta. Hoje havia espaço de sobra. Conforme as crianças iam crescendo, deixavam o ninho, reduzindo gradativamente o número de pratos até restar dois e, finalmente, aquele um solitário. Apertou o botão da cafeteira sabendo que recebê-la com a mesa arrumada era um ritual de carinho, só entendido plenamente com a partida do companheiro.

Sentada, visualizou o pires com uma fatia de pão mordiscado e a taça cheia de café frio. Ocorrera novamente. Dormitara sem perceber. A situação ameaçava ficar preocupante. Durante a noite não pregava os olhos. Durante o dia, apagava inadvertidamente, trazendo embaraços para si e para os circundantes. Como a vez em que fora comungar na missa de um ano de falecimento do esposo e estacara de boca aberta na frente do padre. Ruborizou, lembrando da aflição do primogênito tentando disfarçar o vexame.

Outro dia aconteceu na fila do supermercado. Seu corpo segurava a alça do carrinho com as duas mãos. A alma volitava no éter infinito, talvez perseguindo o amor desaparecido. Chamaram-na várias vezes, borrifaram água em seu rosto, ligaram para o SAMU. Acordou na maca, sendo carregada para a ambulância. Quase morreu de vergonha!

Espiou o celular para ter certeza de que estava atrasada. Logo a filha chegaria para acompanhá-la a uma consulta médica. A vigília crônica angustiava a família e inspirava cuidados. Abandonou louças e talheres na pia e foi se maquiar. Vaidosa, preferia perder a hora a sair com cara de travesseiro amassado, como costumava dizer.

No consultório ouviu a geriatra recitar a cantilena de sempre: os exames nada acusavam; a insônia devia-se a questões emocionais mal resolvidas, derivadas da ausência do esposo. Tantas outras observações repetiu a doutora que D. Carmelina acionou o modo automático. Acostumada aos "apagões", desenvolvera a habilidade de desligar-se mantendo os olhos abertos. Quem a visse julgava estar atenta. Menos sua filha, que bem a conhecia. No saguão da clínica admoestou a mãe, reafirmando a necessidade de superar o luto e seguir adiante.

Ao retornar à casa viu as compras feitas pelo caçula depositadas no chão da cozinha. Ao abrir uma das sacolas topou com maços de legumes e verduras. Esboçou um muxoxo, reclamando:

— Será que esse menino não entende que só nutricionista gosta dessas tranqueiras saudáveis?

Guardou o restante das mercadorias e sentou-se no sofá da sala, junto à cesta de costura. Retomou o tricô largado pela metade. A atividade progredia lentamente devido a vista cansada e, principalmente, a falta de motivação em concluir uma tarefa a qual já não atribuía o mesmo valor de outrora.

Do aparador, Agripino, o marido, a olhava confiante. A foto, tirada no último cruzeiro realizado pelo casal, estava num antigo porta-retrato de madeira escura com cantoneiras de prata. Originalmente exibira os noivos no dia do casamento. Agora trazia lembranças recentes. Adorava aquela fotografia. Os dois juntinhos, elegantes e felizes. O fotógrafo eternizara mecanicamente uma fração da existência que escapara para o passado. Deixou agulhas e novelos e ligou a TV. O relógio em cima do balcão informava que a novela ia começar. Quem sabe a trama mirabolante não aliviaria suas amarguras? Isso se ela conseguisse acompanhar a história o suficiente para entender o que se passava. De tempos em tempos cochilava e despertava. Felizmente o enredo era simplório e, apesar de picotado, fácil de assimilar.

Findo o capítulo teve início o telejornal.

— Só passam desgraças. Não precisamos disso, não é minha Linda?

Linda era a cadelinha estirada a seus pés. Um dos filhos os surpreendera com o inusitado regalo. Na verdade ele não podia cuidar do animal e resolvera livrar-se dele. Aceitaram contrariados. Por fim a adotaram incondicionalmente. Agripino, relutante a princípio, fora quem mais se afeiçoara ao novo membro da casa. Assistia ao noticiário com a bichinha no colo, comentando em voz alta as notícias, emitindo opiniões ou explicando detalhes desapercebidos pela "neta" refestelada em seus joelhos.

Antes de levantar levou a mão à cesta para guardá-la. Um calafrio eriçou os pelos do braço até a nuca ao constatar que não a deixara no sofá, local onde a apanhara. Como viera parar ali? O espanto cresceu ao averiguar o que tricotava: um agasalho para proteger Linda da friagem. O inverno se aproximava e este era um pedido de Agripino - continuamente postergado -, preocupado com a saúde da cachorrinha.

Uma videochamada interrompeu as conjecturas. Era o segundo filho, o que mora longe. Conversaram amenidades, atualizaram as fofocas e despediram-se.

Escurecera. Hora de preparar o jantar e comer sozinha. Essa era a pior parte de sua rotina. Um tanto pela inevitável solidão, outro tanto porque enfrentaria outra noite insone. Picava cebolas para temperar a sopa de feijão borbulhante sobre o fogão. Os olhos ardiam, marejados. Assoou o nariz. As lágrimas rolaram livremente pela face afogueada. Suspirou, soluçando. Falou alto, esperando que ao menos Linda a escutasse:

 — Por que me deixastes? Não devias ter feito isso comigo ...

Um trecho de O Sole Mio penetrou a cozinha, atravessando a basculante que dava para a lateral do edifício. Alguém transitava na calçada em frente ao prédio, assobiando fora do tom. D. Carmelina morava no segundo andar e a disposição das construções vizinhas conduzia os sons externos diretamente para aquele ponto no qual se encontrava. Diversas vezes ouvira conversas íntimas graças a esse fenômeno. Não se considerava fofoqueira, apenas fazia questão de manter-se informada. Enfim o transeunte musical se foi, deixando para trás um silêncio incomum.

Era metido a cantor, o Agripino. Um excelente tenor de banheiro. Amante da música em geral e de óperas em particular. Frequentara aulas de canto lírico na juventude. Infelizmente ele e o sucesso nunca se visitaram, o que não o impedia de cantarolar suas árias preferidas em ocasiões ou lugares inesperados.

Secou uma derradeira lágrima e continuou a lida. Ia refogar os temperos quando a tonitruante voz de Luciano Pavarotti fez trepidar os cálices enfileirados na cristaleira: 

— Sono il factotum della citta ...

Entoava, a plenos pulmões, Figaro, de O Barbeiro de Sevilha. Sobressaltada por ter uma sinfônica aboletada em sua sala, hesitou segurando firme a faca com a mão direita. Com a esquerda apoiava-se na parede. Reassumiu o autocontrole, correu para desligar o cd player sob o olhar travesso de Linda, sentadinha com a língua de fora e cara de sapeca. Perguntava-se quem teria colocado o disco para tocar.

Respirou fundo, acalmou-se, terminou de cozinhar e jantou só.

Voltou ao sofá. Ligou a TV. Zapeou distraidamente, desejando novidades em meio a uma enxurrada de reprises. Passava da meia-noite. Entediada, decidiu recolher-se. Escovava os dentes olhando-se no espelho. Uma fragrância conhecida insinuou-se devagar, preenchendo o ambiente com recordações. Farejou em busca da origem, sem localizá-la. Estava intrigada com razão. Sentia vividamente o perfume da colônia pós-barba usada por Agripino. Por este ter a barba muito cerrada, costumava raspá-la antes de dormir para evitar "lixar" o rosto da esposa. Agitada pelo que julgou ser um engodo de sua mente, D. Carmelina largou a escova e seguiu para o quarto. Sentada na cama, recuperou o fôlego, benzeu-se, sentenciando:

— Depois dessa é que não durmo!

As horas escoavam vagarosamente. Tudo fluía como de costume. Entretanto, às 03:33 sucedeu algo que me arrepia sempre que conto essa história.

D. Carmelina deitara de lado. Arregalou os olhos ao pressentir a presença de outra pessoa no recinto, perto da cama. De costas para o intruso, não conseguia ver quem era. Ouvia Linda choramingando e arranhando a porta do corredor. A presença aproximou-se paulatinamente. Sentiu o colchão afundar sob o peso de um joelho. O coração disparou. Ficou tensa, alarmada, congelada de pavor. Dizem que ao encararmos a iminência da morte vemos a vida passar diante de nós. O que ela viu foram os acontecimentos bizarros daquele dia. Reuniu forças e perguntou:

— Quem está aí?

— Sou eu - respondeu a inconfundível voz de Agripino.

Em seguida encostou seu "corpo" ao dela e a abraçou, como fazia quando vivo. Uma onda de serenidade a invadiu. A sensação era real. Deu graças por estar acordada e poder viver aquela emoção. Mantinha-se imóvel, não por medo, mas por desejar ardentemente prolongar o momento. Agripino tinha um pedido a fazer:

— Tens que me deixar ir ...

Nesse instante compreendeu que ele jamais a abandonara. Estivera presente em cada gesto de atenção manifestado pelos filhos, no legado construído no decorrer da convivência, nas memórias afetivas erguidas com tamanha ternura. Envolvida por uma atmosfera de paz e tranquilidade aconchegou-se no abraço amoroso e fechou os olhos.

No meio da manhã seguinte, após inúmeras tentativas infrutíferas de contato, a filha resolveu verificar o que se passava. Entrou apressada no apartamento. Cruzou reto pela sala. Nem reparou na mesa posta para o café, intocada. Dirigiu-se ao quarto. Deparou-se com a mãe ainda deitada de lado, sorrindo. Tocou-a levemente, temendo o pior. D. Carmelina não se mexeu. Sonolenta, falou com voz pastosa:

— Tá tudo bem filha. Fica quietinha, quero continuar sonhando ...

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