Prematuro
No final de março, após uma chuva benfazeja amenizar a secura de um verão interminável, saí para espairecer. A temperatura agradável suavizava meu permanente senso de urgência, fruto das inúmeras solicitações de ajuda, tanto de vivos quanto de mortos.
Há uma praça bastante arborizada relativamente perto do local onde resido e para lá me dirigi. Considero um privilégio desfrutar desse oásis verde em meio a paisagem de asfalto e concreto. O trinar dos passarinhos, as corridas frenéticas dos cães, as risadas das crianças têm o poder de afastar de mim as sensações amargas herdadas dos eventos dolorosos que costumo tratar.
Ao menos era o que eu esperava.
Sentado num banco apartado do burburinho, sondava a esmo. A vinte metros divisei uma babá distraída, mexendo no celular. No carrinho a sua frente um garotinho ria e esticava os bracinhos. Não para ela. Absorta, ignorava a agitação do menino. Os gracejos eram para uma jovem que o contemplava com afeto e desamparo. Permaneceu imóvel por alguns instantes, depois me olhou suplicante. Nada podia fazer por ela. O vínculo que a mantinha presa ao plano material era incrivelmente forte. Cabia a ela encerrar esse ciclo e realizar a passagem. Acenei discretamente, demonstrando empatia. Com extrema delicadeza, acariciou o rostinho do filho e voltou a posição inicial. Foi aí que ouvi uma voz a chamar:
— Com licença?
Havia espaço suficiente no banco; recuei para a ponta, consentindo silenciosamente. Prefiro não verbalizar com desconhecidos, pois invariavelmente despejam suas atribulações no meu colo, buscando consolo ou salvação.
— Meu nome é Clarice. O senhor não me conhece ...
Essa simples frase indicava a concretização de meus temores. Lancei uma piscadela para a mãezinha postada rente ao carrinho. Ela devolveu uma expressão brejeira. Adivinhava as intenções da intrusa e divertia-se com a cena. Voltei-me para Clarice incentivando-a a continuar.
— ... estive em seu edifício. O porteiro falou que o encontraria aqui.
"Vou conversar com Seu Vladimir", pensei. Vladimir é o porteiro.
Devia ter uns quarenta anos, no máximo. As roupas sóbrias, de grifes famosas, denotavam seriedade e bom gosto. O semblante taciturno exprimia o fardo da preocupação que a motivara a me procurar. Sem disposição para rodeios, atalhei o papo-furado:
— Nunca é fácil abordar o sobrenatural. Sugiro que vá direto ao assunto.
A franqueza surtiu o efeito desejado e ela afirmou ser legista, chefe do setor responsável pelas autópsias no Instituo Médico Legal. Há semanas presenciava incidentes perturbadores para os quais não tinha explicação. Buscava orientação de como proceder nesse caso absolutamente inédito em sua carreira.
Começou durante o plantão de um domingo particularmente agitado. A equipe estava sobrecarregada por causa do acúmulo de corpos aguardando os resultados das análises para serem liberados. A natureza desse ofício exige frieza e distanciamento crítico. Entretanto, a chegada de um bebê comoveu a todos, quebrando a couraça emocional erguida como proteção. Coube a ela a dura tarefa de autopsiar o corpinho recém-chegado a este mundo. Terminado o procedimento, decidiu arejar a cabeça antes de iniciar a próxima autópsia. Avisou a assistente, deixou a sala e deparou-se com uma moça parada no corredor. Assim que viu Clarice, a moça veio falar com ela. O que é irregular, considerando não ser permitida a presença de visitantes naquela ala do Instituto. Apreensiva com a aparente falha de segurança, mas curiosa a respeito do que a levara até ali, dispôs-se a ouvir a solicitante. Aflita, chorosa, torcendo as mãos nervosamente, perguntou:
— Como está o meu bebê?
Como haveria de estar se não morto, pensou Clarice, sabendo ser inadmissível tal resposta. Pretendendo trazer à realidade aquele farrapo humano desesperado por boas notícias sem magoar seus sentimentos, explicou em termos leigos - medindo cada palavra - o que apurara. O feto nascera prematuramente. Viera a óbito em função de uma má formação congênita no coração, de tratamento inviável no decorrer da gestação. A explanação causou uma reação inesperada. Pesarosa, contudo visivelmente aliviada, confessou que a médica retirara um peso de sua consciência. O obstetra que a examinara na hora do parto a acusara de negligência por não ter feito o acompanhamento devido, responsabilizando-a pelo destino do seu filhinho. Agradeceu a atenção dispensada pela legista e saiu cabisbaixa, apoiando-se nas paredes.
Apesar de abalada, a médica dirigiu-se à portaria para reclamar do descuido indesculpável, principalmente num caso tão sensível. Atônito, o funcionário disse não entender:
— Com quem a senhora falou?
— Com a mãe da criança.
— Impossível! Os dois deram entrada juntos. Ela morreu parindo.
Inicialmente acreditou ser um engano, ou artimanha do vigia para justificar o lapso. Retornou ao necrotério e constatou o que não queria. Ele dissera a verdade. O cadáver na maca contígua a do bebê era o da sua mãe.
Uma pausa prolongada, um suspiro, pálpebras cerradas. Sinais clássicos indicando que o pior estava por vir:
— Aproveitei a folga na segunda-feira para passear no shopping. Almocei, circulei, olhei vitrines, visitei algumas lojas. Sentia-me tensa, incomodada, como se estivesse sendo observada, embora não percebesse nada fora do comum. Parei para tomar café em um quiosque localizado no corredor principal de modo a ter uma ampla visão do entorno. A sensação era profunda, arrebatadora. Fiz o pedido. O garçom atendeu-me sorridente. Convencida de que tudo não passava de imaginação levei a xícara aos lábios.
Clarice arregalou os olhos; teatralizava o ocorrido.
— Ela surgiu na cadeira desocupada do outro lado da mesa. Pálida, inquieta, inquisidora, exigia saber onde estava o bebê.
Colocou as mãos no rosto. Tentava reproduzir a fisionomia da visagem.
— Dei um grito, derrubei pratos, esparramei café! Todos ao redor se assustaram. Foi muito rápido. Desapareceu num átimo.
Outra pausa.
— Desde então os episódios se sucedem com crescente intensidade. A aflição converteu-se em angústia. Recentemente em ódio.
Interrompeu a narrativa. Levantou a saia um palmo acima do joelho, exibindo uma marca roxa de considerável tamanho.
— A princípio julguei estar alucinando. Hoje tenho certeza de que algo tenebroso me persegue e temo pela minha vida.
Recostei-me e mirei novamente a mãezinha fantasma velando o pequenino. Quanta diferença do relato que acabara de escutar. Eu receava pela segurança de Clarice, é claro; ao mesmo tempo ansiava por iluminar o caminho do espírito perturbado antes que as trevas o dominassem. Chegara minha vez de falar:
— A partir de quando a manifestação trocou o "como" por "onde"?
Clarice demonstrou não compreender.
— Primeiro ela perguntou como estava o filho, em seguida onde. Não lhe parece estranho?
— Nem percebi esse detalhe ...
— A senhora sabe informar as circunstâncias da morte da mãe?
Ela sabia o que constava na ficha que acompanhara os corpos. Serviu como ponto de partida. Obviamente um trauma terrível a transtornara e isso refletia-se no pós-vida. Precisava averiguar o motivo.
Encerrei a conversa ressaltando a importância de manter sigilo sobre o caso para evitar conflitos desnecessários:
— As pessoas em geral não veem com bons olhos quem fala com o além...
A investigação foi facilitada enormemente pela diligência da polícia. Tendo em vista o contexto da morte de ambos, teve início um inquérito no qual os investigadores reuniram ocorrências que esclareceram a conjuntura determinante daquela tragédia. Dessa feita nem apelei para meus contatos. O fato da legista pertencer à corporação garantiu amplo acesso aos autos do processo.
Descobrimos que a mãe chamava-se Rita, morara num casebre na periferia e fora abandonada pelo companheiro ao constatarem a gravidez. Desempregada, sem recursos nem instrução, sobrevivia graças a caridade de terceiros. Quando começaram as contrações buscou socorro no posto médico do bairro, o qual não dispunha dos meios necessários para atendê-la. Foi encaminhada a uma unidade de saúde pública. Aguardou por horas até ser atendida por um desqualificado que perdeu sua humanidade. Irritado por atrapalharem seu intervalo de descanso, examinou-a superficialmente. Na sequência, escorraçou-a da maternidade aos berros. Segundo os registros, justificou-se culpando Rita, acusando-a de displicente por não apresentar os resultados do acompanhamento pré-natal e, portanto, não ser possível determinar se realmente era o momento certo de dar à luz ou se o feto necessitaria de terapias especializadas. O corpo de Rita, abraçado ao do natimorto, foi encontrado no interior de um coreto, na praça vizinha ao hospital. A existência miserável e a morte absurdamente dolorosa explicavam as atitudes violentas do espectro.
O encerramento da pesquisa documental finalizou a primeira parte do trabalho. Restava ir a campo executar uma etapa crucial para que pudéssemos estabelecer a real dimensão do problema.
— Preciso conhecê-la "pessoalmente" - informei à Clarice.
— Marquemos a data. Agora ela aparece pontualmente às 20h05, faça chuva ou faça sol!
Às 19h30 fui recebido com café e biscoitos no apartamento da médica. Conforme os ponteiros do relógio de parede progrediam, crescia a ansiedade estampada em seu rosto.
No horário aprazado Rita manifestou-se sem cerimônias. Sentia-se em casa. Irrompeu desgrenhada, mãos crispadas, vestes rotas e imundas. Furiosa, encarava Clarice acintosamente, pronta para atacar. Falei com voz firme:
— Rita, por favor escute. Estamos aqui para te proteger.
A resposta veio num tom pouco amigável:
— F*da-se! Cadê o meu bebê?
Pergunta totalmente pertinente. Virei-me para Clarice:
— Ainda estão no necrotério?
— Sim. Ninguém fez o reconhecimento.
Supliquei à Rita por paciência e fé em nosso propósito. Um resquício de brandura superou camadas de agonia e concordou em aguardar. Esperei ela sumir para confabular com a médica, tensamente afundada numa poltrona:
— Temos que agir logo. Rita não vai esperar para sempre.
No dia seguinte fomos ao IML. Pedi à Clarice que mostrasse os restos mortais de Rita e seu bebê. Jaziam numa gaveta refrigerada, dentro de um saco cadavérico. A médica tivera o cuidado de reuni-los num derradeiro abraço. O correr do zíper revelou o que se passava e o que deveria ser feito.
Visitamos a vizinha que amparara Rita enquanto viva e solicitamos um obséquio muito especial: que reconhecesse o corpo para liberá-lo. Providenciamos o velório. As despesas foram custeadas pela legista. Cerimônia singela, porém digna.
Na Capela Mortuária estávamos eu, Clarice e três conhecidos da defunta. Sorvi um cafezinho morno, esperando aparecer a convidada de honra. Enfim chegou, receosa, desfigurada, com o vestido manchado pelo sangue do parto desastroso. O aspecto repugnante de Rita assustou a legista. Sinalizei que se mantivesse calma. Ao passar por ela, sussurrei:
— É normal. Ela está em sofrimento.
Interceptei o espectro antes que alcançasse a doutora:
— Rita, está tudo bem...
Não deu mostras de acreditar. Fez menção de prosseguir.
— Nós trouxemos teu bebê.
Estacou alerta, prescrutando o ambiente. A doutora posicionou-se na lateral oposta do ataúde. Gentilmente afastou o véu que cobria a face de Rita. Esta, ao ver-se naquele estado, compreendeu imediatamente sua situação. Estava morta.
Clarice removeu, uma a uma, as margaridas do arranjo que ocultavam as mãos cruzadas sobre o ventre, revelando uma figura miúda aconchegada, parecendo dormir.
Ao ver o corpinho do filho Rita não esboçou reação. Temi pelo sucesso do plano. A passos lentos flutuou até a borda, ficando cara a cara com Clarice. Curvou-se e recolheu no pedacinho de gente a alma de seu rebento. Acolheu-a junto ao peito. Acalentou-a, resplandeceu e sumiu.
Os demais presentes nem perceberam o acontecimento maravilhoso decorrido sob seus narizes. Ao entardecer selaram o caixão, seguiram em minguado cortejo e depositaram os despojos na sua última morada. Quanto a mim e Clarice tomamos diferentes rumos. Sabíamos que ali iam cascas vazias e que Rita e seu filhinho finalmente haviam encontrado um ao outro bem como a merecida paz.
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