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Oficleide

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Na segunda década do século XXI, enquanto o Sul do Brasil naufragava em um dilúvio sem precedentes, os rios do Norte secavam até esturricar o solo que lhes servia de leito. Como tantos outros ribeirinhos, Anastácio tirava o sustento das águas de um afluente do Rio Negro. Agora, peregrinava a pé enxuto buscando o que restara da imensidão do rio: um fiapo barrento que minguava paulatinamente. Arrastava-se debaixo de um sol escaldante, machucando os pés calçados com velhas chinelas nas pedras expostas. Caminhava e amaldiçoava sua sina. Em casa, esposa e três curumins dependiam de sua habilidade em trazer o peixe que os manteria vivos por mais uma noite. Daquela vez foi diferente. Distraído, mirando a margem sempre distante, tropeçou feio, ferindo o dedo maior do pé direito. Maldisse seu azar numa explosão de impropérios. Ajoelhou-se para atar o ferimento com um farrapo arrancado da camisa puída, doação da paróquia local. Ao abaixar-se notou o ponto onde dera a topada, facilmente identific...

Benício e o falso medium

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Lembram do Benício, o ancestral maragato notabilizado pela perícia ao aplicar a Gravata Colorada nos legalistas? Pois bem, reencontrei-o. Ou melhor, ele voltou a me procurar durante uma viagem a Porto Alegre. Surgiu pilchado, lenço vermelho no pescoço, tirador de couro sobre o chiripá surrado, garruchas e adaga atravessadas na guaiaca. Continua o mesmo fanfarrão debochado de sempre. Eu voltara à cidade para cuidar do inventário de meu recém finado pai e ele sequer aparentou demonstrar interesse ou solidariedade. Foi logo pedindo favores. Dessa vez para um conhecido tão morto quanto ele. — Estás terceirizando minhas habilidades? - Indaguei magoado pela indiferença, ofendido pelo oportunismo. Respondeu com a cara lavada de costume: — Mas bah! Deixa de melindres! Comentei a respeito dos teus dons e ele pediu que intercedesse. Não me faça desfeita perante um colega! Indignava-me a desfaçatez do antepassado. Em contrapartida, alg...

Adalgisa

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Um dos meus pontos de referência afetiva no centro do Rio de Janeiro é o restaurante Verdinho da Cinelândia - de saudosa memória. Já citei o local em relato anterior assim como uma de suas ilustres figuras: Seu Roberval, o garçom que sempre nos atendia (ver Chorosa ). Uma turma de amigos autointitulada Confraria das Quartas reunia-se ali todas as quartas-feiras ao meio-dia com o propósito de comer, beber e, principalmente, jogar conversa fora. Tínhamos mesa fixa e direito a batas-fritas portuguesas no capricho. Bons tempos aqueles. Essa lembrança trouxe de arrasto outra, de um caso complicado, resolvido com fartas doses de sutileza, argúcia e uma pitada de sorte. Começou de forma prosaica durante o almoço, após alguém comentar sobre minhas habilidades paranormais. Notei que Seu Roberval suspendera o retorno à cozinha e ficara assuntando. Nada demais. Fazia isso frequentemente e não ligávamos, pois o considerávamos membro do grupo. Encerrado o repasto coube a mim qu...

Prematuro

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No final de março, após uma chuva benfazeja amenizar a secura de um verão interminável, saí para espairecer. A temperatura agradável suavizava meu permanente senso de urgência, fruto das inúmeras solicitações de ajuda, tanto de vivos quanto de mortos. Há uma praça bastante arborizada relativamente perto do local onde resido e para lá me dirigi. Considero um privilégio desfrutar desse oásis verde em meio a paisagem de asfalto e concreto. O trinar dos passarinhos, as corridas frenéticas dos cães, as risadas das crianças têm o poder de afastar de mim as sensações amargas herdadas dos eventos dolorosos que costumo tratar. Ao menos era o que eu esperava. Sentado num banco apartado do burburinho, sondava a esmo. A vinte metros divisei uma babá distraída, mexendo no celular. No carrinho a sua frente um garotinho ria e esticava os bracinhos. Não para ela. Absorta, ignorava a agitação do menino. Os gracejos eram para uma jovem que o contemplava com afeto e desampa...

Merica

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As luzes do amanhecer banhavam Angelo em pé no convés do vapor Vittoria. Estava ali porque carecia do alento oferecido pela brisa fresca da manhã. O ambiente opressivo do alojamento coletivo tornara-se insuportável após tantas noites acumulando o cheiro de centenas de suores dormidos. Essas pausas amenizavam as náuseas que o acometiam. A repulsa era tamanha que nem o infindável balanço infligido pelas ondas o perturbava. Desistira de procurar equilíbrio por ser desnecessário. A massa humana compactada impedia a queda por falta de espaço. Viajava ombro a ombro com a multidão de emigrantes italianos que fugiam da miséria. A ociosidade forçada dava-lhe tempo para refletir a respeito  das consequências advindas da troca do Vêneto pelo desconhecido. Recriminava-se por ter lançado à sorte esposa e quatro filhos, todos sufocando no porão apinhado de gente. Não fora isso que planejara. Não fora isso que prometeram.  Há exatos vinte dias embalaram seus parcos pertences e...

Não corra papai

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Incidentes bizarros perturbavam os moradores de uma ruazinha arborizada da Tijuca. Tudo começara há alguns meses, mas faziam duas semanas, aproximadamente, que me chamaram. Aqui no Rio, automóveis abandonados na via pública recebem o curioso apelido de Bibelôs de Calçada. De uma hora para outra, um desses adornos criara vida própria: amanhecia com uma das janelas abaixada, os faróis piscavam e buzinadas extemporâneas soavam a qualquer hora do dia ou da noite. Não era o modelo do ano, contudo não era assim tão velho. Estava maltratado por dormir ao relento, coberto de pó, a lataria riscada, pneus murchando, mato crescendo em torno. Os vidros opacos pela sujeira bloqueavam a visão do interior. Residentes da vizinhança tentaram, sem sucesso, surpreender o responsável pelas manifestações. Desistiram, supondo tratar-se de travessuras da criançada. Conforme o tempo passava os episódios amiudavam-se. O morador da casa na frente da qual o veículo estacionara flagrou, em mais de uma ocasião...