O Homem de Branco
Quem transita pelo centro do Rio de Janeiro já deve tê-lo visto. Um homem magro, mais alto que a maioria de nós, sempre calado. Passaria despercebido não fosse por um detalhe. Veste uma longa túnica branca, encimada por uma espécie de turbante. Malgrado sua aparência extravagante, não chama a atenção dos transeuntes, talvez por estarem tão acostumados a sua presença que é como se estivesse incorporado à paisagem.
A primeira vez que o vi estava sentado numa pedra, debaixo de uma árvore, próximo a confluência da Av. Marechal Câmara com a Churchil. O sol escaldante dava o tom do típico verão carioca e, aparentemente, ele buscara a sombra para descansar. Eu morava no Rio há alguns meses e gostava de andar a pé para admirar os contornos de uma cidade muito maior do que aquela na qual sou nascido e criado. Perambulava atento a tudo e, talvez por isso, aquela figura desconcertante tenha despertado em mim um vívido interesse.
Na ocasião eu estava com pressa. Seguia para o Santos Dumont e pretendia encurtar caminho atravessando a galeria de um prédio que dá acesso a passarela que conduz ao aeroporto. Mesmo assim não conseguia desviar os olhos do misterioso personagem. Por fim sucumbi a curiosidade e fui até ele. Parei sob a copa da mesma árvore e puxei conversa, verdadeiramente afogueado pelo calor:
— Quente hoje. Deve estar uns 40 graus.
Calado, respondeu-me com um menear de cabeça, sem demonstrar reação ou desmanchar a expressão circunspecta. Parecia concentrado nas atividades que se desenrolavam no entorno e deduzi que preferia o silêncio as divagações de uma conversa fútil. A sombra amenizava o mormaço e deixei-me ficar ali por alguns minutos, até que a ocorrência de um pavoroso acidente quebrou a calma modorrenta da tarde, trazendo-me de volta à realidade. Um pedestre fora atropelado no cruzamento. Curiosos juntaram-se ao redor quase que instantaneamente, uns lamentando a sorte do infeliz, outros procurando algo de valor para surrupiar. Ia comentar algo com meu parceiro, mas ele sumira.
Na semana seguinte, passei por ele a caminho do Palácio Capanema. Estava sentado num dos degraus da diminuta escadaria da Igreja Santa Luzia. Apesar do rosto inexpressivo, notei algo diferente em seu olhar. Um misto de curiosidade e afetação. Pensei em parar para perguntar sobre o acidente que presenciáramos. Um súbito alvoroço na praça em frente distraiu-me por um segundo e, devido a disso, perdi a oportunidade. Novamente ele desaparecera.
Foi na terceira vez que o avistei que comecei a desconfiar de uma possível relação entre sua presença e a iminência de uma catástrofe. Dessa feita eu estava nos fundos da Biblioteca Nacional, aguardando para atravessar a Araújo Porto Alegre. O dia estava agitado, com os ânimos exaltados pelo calor sufocante do meio-dia. O maçarico estava ligado no máximo, como se diz por aqui, fazendo com que as pessoas ficassem irritadiças e impacientes. Curiosamente, isso não as impedia de se aglomerarem em cada uma das calçadas, aguardando que os carros parassem para cruzar a avenida. Há poucos metros, um grupo se abanava sob a exígua cobertura de uma parada de ônibus. Enquanto me perguntava se o sinal iria, ou não, fechar para o trânsito, percebi uma mancha branca parada debaixo da marquise de uma agência lotérica na rua México. Era ele, sem sombra de dúvida. Nisso, teve início um drama difícil de acreditar que pudesse ocorrer. Um motorista de ônibus apressado fazia menção de partir sem que todos os passageiros tivessem embarcado. Certamente tencionava aproveitar o sinal aberto para seguir viagem o mais rapidamente possível. Indignado com a falta de empatia do condutor, um cidadão postou-se em frente ao veículo, agarrado aos limpadores de para-brisa. Acreditava que com essa atitude forçaria o apressadinho a esperar que todos subissem a bordo. Ledo engano. O motorista buzinou algumas vezes, deu uns trancos e, como não conseguisse livrar-se do incômodo, arrancou com violência e o atropelou, simplesmente. Como era de se esperar, seguiu-se uma balbúrdia com gritos de desespero e correria. Olhei para a marquise e, obviamente, a mancha branca não estava lá.
Nem penso em relatar todas as situações terríveis que testemunhei ao longo dos anos nos quais vivi nesse lugar. Coincidência ou não, depois que encontrei a figura fantasmagórica tenho presenciado uma sucessão de horrores que parece não ter fim. Subitamente os passeios que costumava fazer pelas ruas ensolaradas da Cidade Maravilhosa converteram-se num roteiro de acidentes de trânsito, balas perdidas, casas soterradas por deslizamentos de terra e tão sortidas formas de fatalidades que prefiro não descrever. Digo apenas que para cada uma dessas ocorrências houve uma aparição correspondente do Homem de Branco. Em todas elas tentei me aproximar, sem sucesso. Esse jogo de gato e rato virou uma obsessão que quase custou minha sanidade. Perdi o interesse por tudo que não estivesse relacionado a ele. Afastei-me dos amigos, da família, do convívio humano. Passei a vagar feito um sonâmbulo, disposto a revê-lo inclusive em insólitos recantos.
Uma única vez a dinâmica desses encontros macabros foi diferente. Era noite e eu caminhava por uma rua arborizada, de modo que a ramagem dificultava as tentativas da iluminação pública de alumiar a calçada. Em meio aos retalhos de luz, avistei a silhueta de um jovem que vinha em sentido contrário. Logo atrás, divisei alguém que se aproximou sorrateiramente e desferiu-lhe uma facada nas costas. A essa seguiram-se tantas, numa sanha assassina incontrolável, que ficou impossível saber quantas foram. A vítima, aturdida, tentou inutilmente fugir. Porém, logo adiante caiu sem forças no asfalto. O atacante ajoelhou-se próximo e ficou deleitando-se com sua agonia. Desferiu alguns golpes ao acaso, depois ergueu-se e veio correndo em minha direção. Eu estava transido de terror, incapaz de esboçar reação frente aquele ato abominável de violência gratuita. Retomei a lucidez ao perceber o perigo que se aproximava e aguardei, decidido a revidar o ataque. No entanto, o facínora passou por mim sem tomar conhecimento e sumiu na escuridão. Voltei minha atenção para o meio da rua, em busca do rapaz. Ao seu lado, de pé, ostentando um evidente ar de surpresa, estava o Homem de Branco. Embora a aparição tenha durado apenas um átimo, tenho certeza de que era ele.
Ironicamente, tornei a vê-lo sob a sombra da mesma árvore em que o conheci. Mantinha a face inexpressiva, entretanto mostrava-se mais receptivo. Quase enfartei ao ver sua mão ossuda sinalizar para que me aproximasse. Assim que cheguei perto o suficiente, ele falou pela primeira vez:
— Como tem sido a tua jornada?
Não entendi a pergunta. Não fazia ideia a qual jornada poderia ele estar se referindo. Menti descaradamente:
— Tranquila.
O sorriso desdenhoso que recebi em troca deixou claro que ele não acreditava. Eu estava ansioso, havia tanto que gostaria de perguntar e, justo agora, emudecera. Minha angústia aumentava por saber que a qualquer instante algo terrível iria acontecer e ele desapareceria. Exatamente como tinha sido feito até agora.
— Acalma-te, não vou sumir. Hoje o motivo de minha visita é conversar contigo.
Senti como se acordasse abruptamente de um sonho ruim. Como podia ele saber o que se passava em minha mente?
Antes de obter qualquer resposta constatei, surpreso, que o cenário a nossa volta mudara. Estava idêntico ao dia do nosso primeiro encontro. Abismado, vi a mim cruzando a Marechal Câmara, olhando na direção da árvore onde eu, paradoxalmente, estava. Tão desatento ia que não percebi a moto que ignorou o sinal vermelho e me colheu em cheio, arremessando meu corpo no espaço. Esborrachei-me uns metros adiante, com a cabeça rachada pelo impacto contra o meio-fio. Passado o susto inicial consegui reunir forças para dizer:
— O que significa isso?
— Significa que estás morto, meu caro. E já faz tempo.
O Homem de Branco falava como um adulto explicando a uma criança travessa as consequências de seu mau comportamento.
— Deves ter percebido que a morte trágica traz consigo uma profunda perturbação ao falecido. A maioria fica tão confusa que frequentemente não percebe que desencarnou. Minha missão tem sido amparar e orientar esses espíritos para que façam a passagem. Caso contrário ...
Ele fez uma pausa e ficou olhando na direção do bando de curiosos.
— Caso contrário acontece o quê?
Perguntei antevendo o teor da resposta.
— Caso contrário o ser fica preso ao plano material e não consegue seguir adiante. É assim que surgem os fantasmas.
Apesar de soar como um absurdo, essas palavras tinham a força de uma revelação e o poder de remover a letargia que me dominara sem que percebesse. Há anos eu perseguia a visagem do Homem de Branco. Nesse período, não tinha recordações do trabalho no escritório, do convívio com a família, de comer, beber ou fazer qualquer coisa que os mortais costumam fazer. Eu vagara pela terra inconsciente da situação na qual me encontrava. Meu parceiro de sombra voltou a falar:
— A princípio pareceu-me que serias apenas outro cabeça-dura a refutar minha orientação. Todavia, fostes o único que ousou aparecer perante mim. Os demais fogem como foge o diabo da cruz! Logo percebi que também tens o dom que utilizo em meu ofício, qual seja, o de saber antecipadamente quando um evento trágico irá ocorrer. Por ser algo inédito em toda minha extensa carreira, passei a observar-te. Teu índice de acertos é impressionante.
Enquanto escutava, uma ideia começou a brotar no meu coração, tão fantástica que quis duvidar que fosse possível. Ele continuava a falar:
— Tenho exercido essa função desde a aurora dos séculos. Nasci no momento em que a humanidade recebeu o sopro de vida a que chamam alma. Hoje são bilhões de seres humanos e o número de mortes bizarras não para de crescer. Sinto que começo a fraquejar e está cada vez mais difícil fazer jus ao meu propósito.
— O senhor está dizendo que precisa de um ajudante?
— Não! Estou dizendo que preciso de um substituto. Agora essa função é tua.
Fala comigo meu querido. Li o "Homem de branco" que bela história. Sou contista também e possuo um blog. Manual dos Contos. Vou te seguir aqui também.
ResponderExcluirOpa! Acompanho seu trabalho pelo Instagram. Agora virei leitor do blog também!!
ExcluirPior que os homens de preto (MIB) só os homens de branco!!
ResponderExcluirCom certeza! Os Homens de Preto vem vindo cantando e dando gargalhada ... Os Homens de Branco querem a nossa alma !
ResponderExcluir