Adalgisa
Um dos meus pontos de referência afetiva no centro do Rio de Janeiro é o restaurante Verdinho da Cinelândia - de saudosa memória. Já citei o local em relato anterior assim como uma de suas ilustres figuras: Seu Roberval, o garçom que sempre nos atendia (ver Chorosa). Uma turma de amigos autointitulada Confraria das Quartas reunia-se ali todas as quartas-feiras ao meio-dia com o propósito de comer, beber e, principalmente, jogar conversa fora. Tínhamos mesa fixa e direito a batas-fritas portuguesas no capricho. Bons tempos aqueles.
Essa lembrança trouxe de arrasto outra, de um caso complicado, resolvido com fartas doses de sutileza, argúcia e uma pitada de sorte.
Começou de forma prosaica durante o almoço, após alguém comentar sobre minhas habilidades paranormais. Notei que Seu Roberval suspendera o retorno à cozinha e ficara assuntando. Nada demais. Fazia isso frequentemente e não ligávamos, pois o considerávamos membro do grupo.
Encerrado o repasto coube a mim quitar a dolorosa. Ao receber o troco percebi algo entre as notas. Um bilhete com os dizeres: "Preciso falar contigo. Volta às sete para um chope por conta da casa. Roberval".
Graças a experiências pregressas deduzi que algum evento relacionado ao mundo espiritual o incomodava. A agenda estava livre e um chope bem tirado na faixa é simplesmente irrecusável. Às 19h00 puxava uma das cadeiras dispostas na calçada em frente ao bar. Vi Seu Roberval sinalizando para entrar. Pelo visto a prosa seria reservada.
Cumprimentei o proprietário atrás do balcão e os empregados do estabelecimento. Era figurinha carimbada e todos me conheciam. Apáticos, responderam mecanicamente. O ambiente pesado preconizava a gravidade do assunto a ser tratado.
Sentamos, Seu Roberval e eu, numa mesinha bamba próxima a escada que levava ao porão. Do meu assento observei dois homens transportando tubos de PVC para baixo. Eram operários consertando o encanamento.
— O prédio é centenário, com canos de ferro fundido - explicou Seu Roberval. — Entupiram de ferrugem. Estão quebrando o piso para fazer a troca.
O som ininterrupto das marteladas ditava o ritmo acelerado da demolição. Vieram as tulipas geladas e um tira-gosto. Os clientes confraternizavam descontraídos. A equipe do Verdinho nos olhava de soslaio.
Eu bebia o chope devagar. Seu Roberval desfiava sua história. Uma aparição agressiva rondava o pessoal do Verdinho. Estavam aterrorizados, sem entender por que o encosto decidira ameaçá-los e temerosos das possíveis consequências. Tomei um gole, limpei a espuma do bigode, catei uma batatinha crocante e olhei em direção à porta que dava para a Cinelândia. Vi Ernesto Nazareth dirigindo-se ao Cine Odeon carregando partituras debaixo do braço. Apesar de sorumbático, olhou-me sem interromper o passo e acenou. Retribuí a cortesia discretamente para não atrapalhar meu interlocutor. Pouca gente percebe, mas essa região do Rio é densamente assombrada.
Para se ter ideia do quanto é assombrada, ao vir para cá cruzei com três noviças assassinadas em 1793 procurando o Convento da Ajuda, derrubado em função da urbanização promovida por Pereira Passos. Correndo ao longo dos trilhos do VLT, alheios a modernidade, brincavam crianças vitimadas pela varíola no século dezenove.
O Centro é antigo. Gerações viveram e lutaram aqui por cinco séculos. A maioria morreu e trocou de plano. Nem todos. Uma parcela significativa permanece entre nós pelos mais diferentes motivos. O curioso é que geralmente essas almas seguem sua sina sem importunar os vivos. Entretanto, quando um deles sai dos eixos é tumulto na certa.
Aguardei o final da explanação, forneci as orientações de praxe e me despedi garantindo que tudo se resolveria.
A solução do problema apresentado por Seu Roberval demorou devido a escassez de informações confiáveis. Acervos oficiais mostraram-se inúteis. As pistas emergiram avaramente, peneiradas em fontes pouco usuais. Ao assumir o negócio, o proprietário atual encontrara no subsolo uma série de documentos que remontavam aos primórdios do século passado. Preservara-os por curiosidade. Foram eles que ajudaram a desvendar um drama repleto de paixão, abandono e morte. A dica emergiu de uma anotação num dos antigos livros contábeis.
A reforma em andamento, obviamente, não era a primeira. Desde a construção do prédio o local passara por várias. Dentre todas, aquela realizada em 1942 mereceu especial atenção. Nesse mesmo ano um fato trágico abalou o submundo artístico da época. Uma badalada vedete desapareceu sem deixar vestígios. Quis o destino que um dos nomes constantes no lançamento das despesas com a obra fosse citado por um tabloide disponível na Hemeroteca Digital. Na seção Diz Que Me Diz, o colunista social destilava sarcasmo descrevendo as gafes cometidas pelo "garboso" cavalheiro, partner da diva no Baile de Gala do Municipal. Tamanha coincidência era explícita demais para ser desprezada.
Ao cabo de duas semanas voltei ao Verdinho. Era julho. Fui recebido com frio e chuva miúda. O chuvisco lembrou-me Porto Alegre no inverno. Ocupei uma das mesas centrais do salão vazio e me distraí apreciando os cartazes fixados nas paredes. A penumbra do entardecer prenunciava a chegada da noite. Abordou-me um homem forte, tez morena, voz firme. Arrastou uma cadeira e sentou. Tirou um pacote de cigarros do bolso da camisa. Colocou um no canto da boca. Apalpou o corpo em busca de fósforos. Fingiu aperceber-se da minha presença. Disse sem levantar os olhos:
— Sou freguês veterano e gosto desse lugar. Espero que não se importe.
Como integrante da Confraria das Quartas eu compreendia a noção de pertencimento do cliente a uma mesa específica.
— Antiguidade é posto - respondi. — Só não pode fumar aqui.
— Desde quando?
Apontei para o aviso em frente. Ele reprovou a novidade, contudo guardou os cigarros.
— Não faz diferença. Estou sem fogo mesmo.
Ofereci uma taça do tinto que degustava com inegável prazer. Recusou com um gesto. Continuou:
— Você não é carioca. É gaúcho?
— Sou, mas moro no Rio há anos. Considero-me cariúcho.
Riu como se ouvisse o gentílico pela primeira vez.
— Essa é boa...
O riso converteu-se num esgar apavorante. Levou a mão esquerda à cintura e sacou uma navalha. Abriu-a acintosamente, exibindo a lâmina escurecida por manchas de sangue. Mantive-me calmo. Não se deve perder a cabeça - literalmente - à toa. A serenidade o confundiu.
— Sabe quem sou eu? - Perguntou ofensivamente, pretendendo intimidar.
— Te chamas Sebastião, vulgo Navalha. Estás preso ao mundo físico por questões mal resolvidas e te deleitas atormentando os vivos.
— Ora, ora. Encontrei um sabichão ...
Espiou ao redor para avaliar a reação da audiência. Estranhou a ausência de público. Àquela hora o bar deveria estar lotado. Fixou a vista no acesso ao porão. Havia luz saindo do vão da escada. Uma sombra enorme projetou-se na parede, precedendo o surgimento de um torso corpulento. Era o delegado da Homicídios, velho conhecido. Chamou-me pelo nome e bradou vitorioso:
— Achamos o presunto!
Feito o anúncio desceu ao porão novamente. Navalha congelou, teso na cadeira. Encarei-o desafiadoramente. O ódio desenhou-se na face enrubescida pela raiva e pela vergonha. A imobilidade explodiu em fúria. Fez menção de atacar, coisa que meus mentores jamais permitiriam que fizesse. Contido, parecia um fedelho assustado, defendendo-se antes de ser acusado.
— Foi um acidente. Ele me chantageava simulando cortar os pulsos.
— Sei. Então navalhada na garganta é considerada acidente?
Pormenor posteriormente ratificado na autópsia. No momento foi apenas um palpite. Impressionado por saber tanto a seu respeito, Navalha emudeceu e entrou no modo retranca.
— Por que matá-la? - Perguntei.
Silêncio. O embaraço dominava meu oponente.
— Já que não queres falar, falo eu. Foram amantes. Conheceram-se na flor da idade, partilhavam uma vida simples, amando-se verdadeiramente. Ao menos no início. Ela ascendeu socialmente, virou uma Dama e tu continuastes um Vagabundo (não entendeu a referência, pois a animação estreou em 1955). Por alguma razão a paixão saiu do controle. Talvez o assédio de um concorrente bem aquinhoado tenha aguçado teu ciúme. Deves ter decidido que se ela não podia ser tua não seria de ninguém. Acertei?
Navalha, cabisbaixo, balbuciou:
— Quase. Agenor e eu realmente nos amávamos. Morávamos no subúrbio e começamos a namorar muito cedo ...
Surpreso, anotei mentalmente o nome. Essa confidência conflitava com os resultados da pesquisa. As fontes consultatadas citavam uma mulher e isso mudava tudo, inclusive a conclusão do inquérito aberto pela polícia.
— ... causávamos furor na Estudantina. Amigos próximos invejavam nossa relação. Perdi as estribeiras por bobagem.
Esfregou a lâmina com a fralda da camisa, tentando remover as marcas rubras do desatino cometido. A recordação doía profundamente.
— Aconteceu nesse bar. Eu era o capataz do empreiteiro contratado para reformar o porão. Íamos trocar o piso. Escavamos para preparar o terreno, deixando o solo exposto. Todos haviam ido embora e fiquei responsável por guardar as ferramentas e trancar as portas ao sair. Aí apareceu o Agenor.
Brincou com a navalha, retardando a revelação de detalhes a respeito do pivô da trama:
— Ele era transformista num mafuá na Rua das Marrecas. Fazia um sucesso estrondoso o danado. Travestido, renascia como Adalgisa, uma mulata de fechar o comércio!
Expressou as últimas palavras com indisfarçável orgulho.
— Funcionários graúdos do governo, fazendeiros, empresários, garis e barnabés faziam fila para vê-la dançar. Compravam com presentes a deferência que eu desfrutava de graça. Sinceramente, não sei o quê ela viu em mim ...
Mudou de tom, denotando tristeza:
— Infelizmente não há bem que sempre dure. A fama lhe subiu a cabeça. Tornou-se indiferente. Brigava por qualquer besteira. Provavelmente procurava um pretexto para me dispensar.
Calou-se por instantes. Com o cabo da navalha, desenhava formas indefinidas no ar. Estacou, fitou o vazio e retomou a narrativa:
— Veio me ver. Sabia onde me achar e esperou estar sozinho. Chegou de mansinho, falando manhoso, acariciando meu peito. Queria dinheiro para visitar os pais em Caxias e eu não tinha sequer um tostão no bolso.
Olhou para o teto, fungando. Esta parte foi a mais difícil:
— Abracei ele e expliquei que estava liso que nem quiabo. Era terça. O pagamento sairia só na sexta-feira. Do nada ficou irritado, me empurrou e chamou de bicha pobre. Tentei argumentar; Agenor não escutava. Xingava de imprestável pra baixo...
Bateu com o punho fechado na mesa. A emoção aflorara completamente.
— Sabe o que ele falou? Falou que me gabava Navalha, mas não passava de gilete!
O resto é fácil de imaginar. Ofendido em sua honra, magoado e aturdido, Navalha enlouqueceu e o matou com um golpe certeiro. Enterrou-o no porão e pavimentou a cova com ladrilhos, concluindo o serviço antes do prazo acordado. Satisfeito com o desempenho do capataz, o empreiteiro convenceu o contratante a pagar-lhe uma gratificação, gerando o lançamento delator encontrado no livro contábil.
Agenor era anônimo. Ninguém percebeu seu desaparecimento. O de Adalgisa levantou todo tipo de especulações. Diversas versões explicavam sua evasão do cenário artístico: fugira com um rico armador estrangeiro; casara e levava os dias como dona de casa; ou, a mais notória, perseguida pela cruzada moralizadora do recém nomeado Chefe de Polícia refugiara-se na Baixada Fluminense. O certo é que evanescera e o véu do esquecimento a cobriu inexoravelmente.
Ironicamente, Navalha tombou meses depois retalhado pela lâmina do desafeto de quem zombava, duvidando de sua masculinidade. A desavença ocorreu aos pés dos Arcos da Lapa e mereceu breve apontamento num jornaleco sensacionalista.
Transmutado em fantasma, apegou-se ao Verdinho atraído pela culpa, remorso ou incapacidade de lidar com os sentimentos contraditórios que alimentara durante sua existência. Ao iniciarem as obras manifestou-se. Assombrava o lugar temendo a descoberta da mácula de seu passado. Atormentava a equipe do bar na esperança de espantá-los e manter oculto o desfecho de sua monstruosidade.
Assistimos calados ao deslocamento do cortejo de peritos transladando os despojos de Agenor ao rabecão. O trabalho de levantamento da cena do crime varou a madrugada. Permaneci ao lado de Navalha até o fim. Ao raiar do dia preparei-me para partir. Encabulado, ele engoliu derradeiros resquícios de arrogância e externou uma decepção guardada por décadas:
— Por que Agenor não me procurou esses anos todos?
— Possivelmente fez a passagem. Não há como saber - menti.
Esperava que a revelação do assassinato de Agenor, ou a exumação de seu corpo, encerrasse o motivo da permanência de Navalha no plano material. Ledo engano. Enquanto a Confraria das Quartas manteve o compromisso de reunir-se pude acompanhá-lo vagando solitário e desapercebido pelo salão. Parou de perturbar o Verdinho. O tempo passou, a pandemia nos isolou, o bar encerrou as atividades e a Confraria se desfez. Quando conto esta história penso em Navalha ainda ali, velando eternamente o recanto onde enterrara o amor de sua vida.
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