Festa de Aniversário
Depois de alguns anos morando num bairro da Zona Sul do Rio de Janeiro eu praticamente esquecera os estranhos eventos que ocorreram quando eu recém me mudara para lá (ver A Árvore dos Colchões). Ao final do contrato de locação, o reajuste tornou meus vencimentos incompatíveis com o novo valor do aluguel e precisei mudar novamente. Após intensas pesquisas, encontrei um apartamento na Zona Sul da Zona Norte (quem conhece o Rio sabe de qual bairro estou falando), amplo, arejado e por um valor inacreditavelmente baixo.
Diz o ditado que "quando a esmola é muita o santo desconfia". Talvez por não ser santo não desconfiei e até me considerei afortunado por ter descoberto aquela pechincha tão bem localizada. Depois da mudança levei um tempo desencaixotando as coisas, por isso sei que fazia pouco tempo que morava lá quando tudo aconteceu.
Devia ser umas três da tarde de um domingo quando tocou a campainha. Achei estranho. A regra era que o porteiro interfonasse para saber se podia deixar alguém subir. Pensei que poderia ser algum morador, embora eu ainda não tivesse feito amizade com os vizinhos. Abri a porta e me deparei com uma dupla insólita. Uma senhorinha, na faixa dos seus setenta anos, trajando um conjuntinho discreto que lembrava aqueles utilizados por minha mãe na década de 1970. Trazia pela mão uma menina com cara de assustada. Devia ter uns oito anos, no máximo. Usava um vestidinho estampado e um laço de fita na cabeça que destoava de tal forma do conjunto que chamou minha atenção. Estava pálida e olhava com vívido interesse para o interior da sala, que ficava logo após o vestíbulo onde estávamos.
— Pois não - disse sem conseguir esconder um tom de surpresa na voz.
— Viemos para o aniversário - explicou a senhora.
— Que aniversário?
— Da Bete, coleguinha da Verônica.
Supus que Verônica fosse a criatura com o laço na cabeça.
— Aqui não mora nenhuma Bete - respondi convicto que haviam errado de endereço.
— Mora sim - insistiu ela.
Visivelmente embaraçada, com a mão livre, mexia mecanicamente num broche que aparentava ser muito antigo e caro. Provavelmente uma joia de família.
— Bete, a filha da Lourdes. Posso falar com ela?
Nesse ponto comecei a suspeitar que haviam errado de apartamento, de andar ou até mesmo de edifício. Convencido de minhas suspeitas pela expressão confusa da senhora, mas sem querer ser rude, sugeri que descêssemos até a portaria e nos informássemos se havia alguma festa no prédio. Expliquei que, como eu era novo por ali, não conhecia os moradores e era melhor ter certeza antes de sair batendo em todas as portas. Ela pareceu um pouco contrariada, dando a entender que tinha certeza que estava no endereço certo. Por fim concordou em ir comigo e chamei o elevador. Entramos os três, eu por último, e fomos até o térreo.
Ao chegar abri a porta e a segurei para que a dupla pudesse sair. Segui na frente e fui ter com o porteiro, que assistia a um show de variedades na tela onde deveriam estar as imagens das câmeras de segurança.
— Isso explica porque ele não viu as duas entrarem - pensei com meus botões e me dirigi diretamente a ele.
— Gérson, por acaso está tendo alguma festinha de aniversário no prédio?
Ele me olhou intrigado e sua resposta parecia querer tentar descobrir o por quê da minha pergunta:
— Não que eu saiba. Por que? O barulho de algum apartamento está lhe incomodando?
— Na verdade estou perguntando por causa dessa senhora ...
— Que senhora?
Ia dizer "essa aqui, não estás vendo?", entretanto, quando me virei, vi apenas o saguão vazio. Nem sombra daquelas duas.
O mais interessante é que o porteiro não esboçou qualquer reação. Aliás, fez apenas um comentário que deve ter sido um aviso. Eu que não percebi na hora.
— Acho melhor o senhor falar com o síndico.
Enquanto eu ainda tentava entender o que se passara ele pegou o interfone e relatou o que estava acontecendo. Em menos de dez minutos estávamos, eu e o síndico, sentados num dos sofás da recepção tendo uma conversa no mínimo intrigante.
Inicialmente ele quis saber detalhes das minhas visitantes, tipo a que horas haviam tocado a campainha, como estavam vestidas, o que disseram, etc.
Estranhei o interrogatório, contudo tentei ser o mais preciso possível. Até então acreditava que fazia parte do processo de averiguação do incidente. Conjecturei que poderia se tratar de uma dupla de farsantes que já tentara aplicar algum golpe nos moradores do edifício. Quando ele limpou a garganta e disse:
— Veja bem ...
Percebi que a explicação deveria ser bem mais complexa do que eu estava esperando. O síndico era um senhor grisalho, morador antigo, acostumado a lidar com todo tipo de situação que ocorre em condomínios. Pelo visto, inclusive essa. Sua fala pausada e seu olhar atento indicavam que prosseguia de acordo com minhas reações. Procurei manter a calma para conseguir chegar ao fim daquela estória que, seguramente, ele já havia contado mais de uma vez.
Segundo ele, todo ano, no mesmo dia e na mesma hora, uma senhora segurando a mão de uma criança batia à porta do apartamento no qual eu estava morando. Subiam sabe-se lá como, pois nunca passaram pela portaria. Isso acontecia há pelo menos cinquenta anos sem que alguém conseguisse explicar o motivo. Permaneciam inalteradas em cinco décadas de visitas. Mesmas roupas, penteados e idade aparente. Dois ou três anos após o início desse fenômeno D. Lourdes, a proprietária na época, vendera o imóvel justamente por não suportar o assédio dessa dupla que, segundo ela, só podiam vir de outro mundo. A partir daí foi uma sucessão de compras e vendas até chegar no ano passado, quando alguém adquiriu a propriedade como investimento. Nunca colocara os pés lá. Estava interessado apenas no rendimento da locação.
— O senhor não estranhou o valor do aluguel? - perguntou o síndico.
— Na verdade estranhei sim. Pensei que fosse porque precisasse de algumas reformas. Jamais me passou pela cabeça que pudesse ser por algo desse tipo.
Por via das dúvidas revisamos as gravações das câmaras e, de fato, elas não passaram pela recepção. Também não apareciam descendo comigo no elevador, nem passando pelo saguão. Simplesmente um mistério.
Passei o resto do dia desencaixotando minhas coisas distraidamente. Até hoje encontro objetos que guardei no lugar errado e que por muito tempo dei por perdidos. Não me saia da cabeça a expressão aparvalhada da senhora nem a palidez da menina, com seu olhar perturbadoramente vazio.
Na manhã seguinte, ao sair para o trabalho, encontrei minha vizinha no corredor ao lado de uma mala de rodinhas. Pelo seu embaraço ao me ver concluí que retornava de uma curta viagem, cujo objetivo era estar longe dali na data fatídica. Posteriormente fiquei sabendo que vários moradores faziam o mesmo.
— Tudo bem com o senhor?
O tremor na sua voz só não era maior que o das suas mãos tentando encaixar a chave no buraco da fechadura.
— Tudo tranquilo. A viagem foi boa?
— Foi sim. Maldita chave!
— A senhora conhece a história da velhinha e da criança que visitam esse prédio?
O som metálico do chaveiro batendo no piso de ladrilhos fez coro ao primeiro soluço. Com a mão cobrindo o rosto ela sinalizava que me afastasse. Sua reação me desconcertou e achei melhor ir embora para não piorar a situação.
— Ela sabe de alguma coisa, caso contrário não ficaria tão abalada - resmunguei apertando com força o botão P do elevador.
Depois da janta, naquela mesma noite, acessei a Hemeroteca Digital pela Internet e comecei a desvendar uma estória que até hoje me deixa arrepiado.
Demorei mais do que gostaria para encontrar alguma coisa nas centenas de páginas digitalizadas que consultei, pois dispunha de poucos elementos para subsidiar minhas pesquisas. Só tive sucesso por ser persistente e porque consegui perceber uma relação entre as duas visitantes e um crime de grande repercussão, ocorrido em 1972. Navegando nas páginas da revista Manchete encontrei uma extensa matéria que detalhava os fatos escabrosos relacionados ao desaparecimento de várias crianças. Ilustrando a chamada, uma foto de D. Lourdes e outras pessoas em frente ao edifício. Ao fundo, olhando diretamente para a câmera, estava a minha vizinha!
Talvez por morar num apartamento assombrado, talvez por fazer perguntas incômodas, comecei a perceber que os demais moradores me evitavam. Indiferente a todos, continuei tateando as cegas, lentamente juntando as partes desse intrincado quebra-cabeças. Já havia alinhavado um quadro geral dos acontecimentos, faltava apenas encaixar aquele fragmento que daria sentido ao todo. E casualmente encontrei a peça-chave no corredor, em frente a minha porta.
Recém havia chegado em casa quando tocaram a campainha.
— Espero que não sejam elas novamente!
Espiei pelo olho mágico para confirmar que não eram. Em compensação, minha vizinha aguardava ressabiada que eu abrisse a porta.
— Oi - disse ela - vim me desculpar pelo outro dia.
Não havia o que desculpar e a convidei para entrar. Servi um chá e conversamos sobre amenidades. Quando percebi que estava mais a vontade lancei a pergunta que segurava desde que chegara:
— Posso te mostrar uma foto?
Por um instante pareceu que ela iria dizer não e sair correndo.
— Claro. Que foto seria?
Peguei a pasta com o dossiê que havia montado (sim, eu montei um dossiê que guardo até hoje) e separei a página da revista onde ela, supostamente, aparecia.
— Nossa, que foto antiga. E essa é mamãe! Sempre disseram que somos muito parecidas.
Pelo menos um mistério estava resolvido. Faltava todo o resto. Ao devolver o papel ela confessou que o fato de ter alguém com quem conversar sobre o fenômeno era um alívio. Ela crescera num clima de terror por causa disso. Em sua casa, o tema era tabu e ela nunca compreendeu exatamente como os acontecimentos se sucederam por ser muito pequena.
— Eu tinha uns oito anos na época e era muito amiga da Bete, que morava nesse apartamento.
Um gole de chá para criar coragem.
— Quando a Bete completou nove anos, sua família resolveu dar uma festinha para comemorar. Convidaram as colegas da escola e outras crianças da vizinhança.
— A festa correu sem incidentes, a não ser pela ausência da Verônica. Ela confirmara que viria, mas não apareceu.
— Ninguém achou estranho ou ficou preocupado, afinal era apenas uma festinha de crianças.
— Na segunda-feira ela também não compareceu na escola, nem na terça ou nos demais dias da semana. Foi aí que começaram a aparecer as manchetes nos jornais.
Ela contou o que sabia e pareceu bastante aliviada por tê-lo feito. Combinando esse relato com o que conseguira apurar nos artigos publicados pela imprensa, finalmente consegui montar uma versão relativamente precisa do que deve ter acontecido na ocasião.
Para começar é preciso ter em mente que na década de 1970 a frota de táxis era composta majoritariamente por fuscas. O assento do carona era removido para que os passageiros tivessem fácil acesso ao banco traseiro. Uma cordinha era amarrada na porta para que o motorista pudesse fechá-la sem sair do lugar. Esse detalhe é importante porque explica como Verônica desapareceu.
No dia da festa ficou combinado que D. Maria, avó da menina, a levaria de táxi até a casa de Bete. Desgraçadamente, o motorista que as conduziu era um pedófilo que roubara o carro com o intuito de caçar sua próxima vítima. Ao ver as duas acenando na calçada não pensou duas vezes e tratou de recolhê-las. Percebendo que a senhora não enxergava muito bem, seguiu para um endereço diferente do informado. Estacionou junto a calçada e disse que haviam chegado. A senhora ficou em dúvida sobre a localização e desceu para confirmar o número do prédio. Nesse momento ele bateu a porta e arrancou com a menina, deixando sua avó desesperada no meio da rua.
A princípio julgaram ser um sequestro e aguardaram o pedido de resgate por uma semana. Os jornais não falavam de outro assunto. Foi uma comoção nacional. Após sete dias do sumiço, encontraram o corpo de Verônica, com evidentes sinais de abuso e maus-tratos, nas margens do rio Guandu. Dois dias depois sua cabeça amanheceu nas escadarias da Igreja da Penha. Estava envolta numa fita de tecido barato, cobrindo principalmente a boca e os olhos. Um tope desengonçado arrematava o assessório.
O clamor da sociedade quase chegou ao ponto de virar histeria. Até grupos de vigilantes voluntários se formaram para proteger os pequenos das garras desse facínora. As diligências da polícia redobraram de intensidade. Mesmo assim ele ainda fez três outras vítimas, todas com menos de nove anos. Por fim uma denúncia anônima levou a captura de um provável suspeito que se escondia na Baixada Fluminense. A delegacia onde aguardava transferência para a capital foi atacada por uma multidão enfurecida que o arrancou de sua cela e fez justiça com as próprias mãos.
Quanto a D. Maria, além de viver com o peso da dor pela perda da neta, foi considerada culpada de negligência e escorraçada pela família. Segundo algumas versões, morreu de desgosto pouco tempo depois do acontecido.
Agora que os fatos haviam sido esclarecidos restava apenas uma questão: como encerrar esse ciclo de dor eterna?
Ao se aproximar o dia da visita fui ter com a vizinha para lhe pedir um favor. Depois, sai a procura de vários itens prosaicos, necessários a execução de uma ideia que havia tido. Tudo precisava estar perfeito para que funcionasse e, a partir daí, aguardei ansioso para que a campainha voltasse a tocar.
Na data prevista, às 15:04, elas chegaram. Abri a porta com a naturalidade de quem representa um papel e disse sorrindo, olhando com ternura para a garotinha:
— Entrem, estávamos esperando por vocês.
A sala atrás de mim estava ostensivamente decorada, como se de fato estivéssemos celebrando um aniversário de criança. Balões, uma faixa de felicitações e, é claro, uma mesa repleta de doces, salgadinhos, refrigerantes e um bolo.
Sentadas de frente para a porta, minha vizinha e Bete, a aniversariante, seguravam o choro para não estragar o momento. Pedira a ela que procurasse a antiga colega e explicasse do que se tratava. No início ela relutou, mas por fim concordou em participar da cerimônia.
Num átimo o semblante da menina se iluminou. As cores voltaram com força, o laço em sua cabeça sumiu. Ela estava radiante quando passou por mim correndo de braços abertos e evaporou no ar.
D. Maria permaneceu imóvel, olhando diretamente nos meus olhos, com suas pequeninas mãos cruzadas em frente ao corpo. No seu rosto havia uma expressão de alívio, própria daqueles que finalmente concluíram uma tarefa longa e penosa. Pude ouvi-la sussurrar enquanto também esvanecia:
— Muito obrigada!
Parabéns! Um conto extremamente interessante que prende nossa atenção só início ao fim. Belo desfecho!
ResponderExcluirMuito obrigado! Esse desfecho foi escrito com muito carinho como uma homenagem a todas as vítimas de violência. Especialmente crianças.
ExcluirSensitivo certeiro! Parabéns!
ExcluirMuito obrigado!
ExcluirConto bastante intereessante e cim desfecho bem humanitário.Parabéns!
ResponderExcluirMuito obrigado!
ExcluirÓtima homenagem às crianças abusadas! Parabéns!
ResponderExcluirMuito obrigado! Essa é uma triste realidade que parece longe de acabar...
ExcluirÉ um conto com momentos bem arrepiantes. No início, você não sabe o que tá acontecendo, e fica aquela pulga atrás da orelha. Creio que, pelo pano de fundo que a história tem (o assassino perseguindo crianças), poderia se estender num texto maior, talvez uma novela ou quiçá um romance. O final da história é comovente.
ResponderExcluirAgradeço pelo seu retorno, que para mim é muito importante para entender como os leitores "degustam" a história. A ideia de transformar esse enredo numa obra maior é um desafio considerável, mas creio que vale o esforço.
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