A árvore dos colchões
Faz alguns anos, fui aprovado num concurso público e precisei sair da minha cidade natal para tomar posse no Rio de Janeiro. Morei por um ano num pequeno apartamento mobiliado em Santa Tereza para depois alugar um outro, maior, num bairro da Zona Sul - do qual prefiro omitir o nome para garantir a privacidade dos envolvidos.
Eu vinha do interior do Rio Grande do Sul e não estava acostumado com a vida numa cidade grande. Demorei um pouco para assimilar vários costumes cariocas, de modo que a princípio julguei que os estranhos fatos que presenciei fossem apenas manifestações naturais de um estilo de vida diferente do meu.
Explico.
O apartamento da Zona Sul era relativamente próximo ao local onde trabalhava, então eu ia a pé até a repartição para fazer um pouco de exercício. No caminho havia uma praça, muito antiga, com um chafariz de ferro fundido importado da França no final do século XIX. Sempre que passava por ali encontrava alguns idosos passeando ou simplesmente sentados, tomando sol. Com o passar do tempo comecei a identificar os frequentadores mais assíduos por alguma característica peculiar, tipo o narigudo, o da echarpe, a que faz crochê, etc.
Passadas algumas semanas, notei um sujeito que destoava dos demais. O carioca, mesmo os mais antigos, prefere se vestir de forma simples. Camiseta, bermuda e chinelos constituem sua indumentária básica. Não era o caso desse senhor. Ele estava de chapéu de feltro, paletó e gravata. Além disso, usava um bigode que me lembrava o do Adoniran Barbosa. Fazia calor e eu me perguntei se ele não estaria suando debaixo de tanta roupa. Nos dias seguintes, apesar de passar os olhos pelo entorno da praça, não mais o vi.
Em compensação comecei a ver outros, nos mais diferente horários. Num final de tarde chuvoso, em que a noite chegara mais cedo, fui pego desprevenido por uma forte pancada d'água. Enquanto cruzava apressadamente a praça, fui abordado por um homem baixinho, aparentando estar na faixa dos setenta anos de idade. Na mão direita segurava um guarda-chuva desproporcional ao seu tamanho e com a esquerda um livro grosso de capa preta. Sou de estatura alta, então precisei me abaixar para tentar entender o que ele dizia. Quando olhei por debaixo do guarda-chuva, vi que seu cabelo estava gomalinado e os bigodes eram no estilo dos usados pelo Amigo da Onça. Trajava um terno azul-escuro de corte antiquado, camisa branca e aquelas gravatas fininhas da década de cincoenta. Apesar de meus esforços, não consegui entender patavina do que ele dizia. Antes de me retirar falei alto para ter certeza que escutasse:
— Sai dessa chuva vovô. Vai pra casa!
Cheguei ao apartamento encharcado e preocupado. Quem seria irresponsável a ponto de deixar um senhor daquela idade sair sozinho com um tempo desses? Tinha a intenção de procurá-lo no dia seguinte para saber se estava bem. Nunca mais o vi.
Com a chegada do verão fiz amizade com um vendedor de água de coco que estacionava seu carrinho na esquina de uma das ruas que levavam até a praça. Era um senhor alegre e falador, que conhecia bem o bairro e seus moradores. Certo dia, enquanto esperava meu pedido ficar pronto, notei que havia um colchão de boa qualidade encostado numa árvore da calçada. Eu já tinha visto outros, sempre na mesma árvore, mas nunca tivera a oportunidade de saber a origem daquele hábito que, para mim, era muito estranho.
— Tá olhando o colchão ali atrás?
Perguntou o vendedor, me olhando com seu olhar maroto.
— Sim - respondi. Já vi vários. Por que alguém colocaria fora um colchão praticamente novo?
— Eles vem daquela casa ali.
Disse e apontou para um sobrado muito bonito, com uma sacada no segundo piso cujas portas estavam sempre fechadas.
— É uma clínica de repouso pra gente bem de vida. Sempre que um dos hóspedes abotoa o paletó de madeira eles esvaziam o quarto e trocam o colchão, não importando o estado em que ele se encontre.
Peguei meu copo, agradeci pela informação e fui andando. No canto da praça uma senhora muito elegante em seu vestido vintage tomava sol de olhos fechados.
Eu já estava tão acostumado a encontrar essas figuras estranhas no caminho para o trabalho que nem prestava mais atenção. Aliás, eu devia ter percebido que alguma coisa não estava certa quando perguntei a um vizinho o que ele achara dos trajes de um velhinho de palheta e bengala que estava sentado próximo ao chafariz e ele disse que não sabia do que eu estava falando.
— Estranho - pensei - passamos pela praça quase que ao mesmo tempo.
Enquanto isso, junto aquela árvore, mais um colchão aguardava o caminhão da coleta seletiva passar.
Numa manhã clara de primavera, ao sair pelo portão do edifício, me deparei com uma cena insólita. Encostado na árvore de praxe, jazia um colchão king size com um rasgo que o atravessava de lado a lado. Pela irregularidade das bordas percebia-se que o corte fora feito as pressas e sem cuidado. As molas expostas, tais quis vísceras de um animal monstruoso, davam sinal de querer sair pela ferida aberta.
Não sei explicar o motivo, afinal era apenas um colchão, mas o episódio me deixou apreensivo, como se algo de ruim estivesse prestes a acontecer. Ruminando essa sensação, segui em frente até chegar à praça, onde vivenciei outro fato desconcertante. Parada sobre um canteiro próximo a via, estava uma senhora de seus noventa anos, muito magra, com um longo vestido preto, luvas até os cotovelos, fortemente maquiada, de óculos escuros e um turbante de seda ornado com um adereço no qual se destacava um falso brilhante ladeado por penas de pavão. Os cabelos retintos que escapavam sobre as orelhas denunciavam uma vaidade que não admitia os efeitos do tempo. Dos lábios vermelhos ao extremo saia uma longa piteira que ela segurava afetadamente com a mão direita. Ao passar ao seu lado senti uma fragrância exótica, que mesclava mistério e sedução. Praticamente imóvel, seguia apenas com a cabeça minha passagem. Só deixei de sentir seu olhar penetrante cravado em minhas costas ao dobrar numa esquina mais adiante.
O impacto dessa visão foi tão forte que, ao retornar, parei junto ao chafariz para tentar encontrá-la novamente, sem sucesso. Isso aconteceu numa quarta-feira e na quinta eu já estava achando graça dos acontecimentos do dia anterior. No sábado a noite voltei a praça para curtir uma roda de samba e tomar umas cervejas com amigos. A música estava animada, o papo corria solto e eu resolvi comprar um churrasquinho de gato para aplacar a fome. Ao voltar para a mesa captei no ar o aroma de um perfume exótico e conhecido. Logo atrás do rapaz que tocava cavaquinho, vi uma pena de pavão que sobressaia em meio ao público que se aglomerava junto aos músicos. Ao me aproximar, percebi que era a mesma senhora e que ela quase não se movia. De tempos em tempos tirava a piteira da boca e soprava nuvens de fumaça imaginárias, uma vez que seu cigarro estava apagado. Não tive coragem de lhe dirigir a palavra, pois percebi que toda sua atenção estava concentrada numa mesa próxima a nossa, onde quatro homens pareciam se divertir como se não houvesse amanhã. Me chamou a atenção que o mais animado deles estivesse com um jaleco amarelo, como os usados pelos atendentes da clínica de repouso. Antes de voltar para minha mesa ela olhou na minha direção e sorriu de lado. Só então percebi que, apesar de ser noite, ela continuava de óculos escuros.
Na segunda-feira, lá ia eu para o trabalho quando, ao passar pela praça, ouço uma voz rouca e sensual me chamando:
— Olá bonitão. Será que não mereço nem um oi?
Era a tal dama de turbante. Vestida exatamente como da primeira vez que a encontrei.
— Bom dia minha senhora. Estava distraído e não a vi. Tudo bem?
Ela era uma mulher bonita, a idade não conseguira apagar os traços de elegância e os modos refinados. Falava com a altivez de uma rainha.
— Mais ou menos. Eu estou procurando uma coisa que levaram de mim.
— E o que seria?
— Um colchão.
Disse e colocou a piteira com o cigarro apagado de volta na boca. Penso que me fitava por trás daqueles óculos impenetráveis, grandes demais para seu rosto miúdo.
— Um colchão? - repeti incrédulo.
— É mocinho. Um colchão. Só que esse é especial. É de molas, tem uma fita preta em volta com a grife do fabricante. Viu por aí?
— Pensando bem acho que vi sim. Me chamou a atenção porque parecia ser um item caro. Uma pena terem rasgado ele de alto abaixo.
— Verificou se estava vazio?
— Não exatamente. Vi apenas que estava cheio de molas.
— Só isso? Tem certeza? Não tinha mais nada?
— Que me lembre era só isso mesmo.
— Muito obrigada meu anjo. Era isso que eu queria saber.
Pelo tom contrariado de sua voz percebi que a conversa havia terminado. Me despedi e fui andando. Ainda pude vê-la mandar um beijo pelo ar, que apanhei com a mão, divertido. Essa foi a última vez que a vi, mas não que tive notícias dela.
Dois ou três dias depois, quando chegava em casa, percebi um alvoroço na clínica de repouso. A rua estava interditada por ambulância, polícia, repórteres, curiosos, um fuzuê danado.
Parei ao lado do vendedor de água de coco e perguntei o que estava acontecendo. Ele estava bem informado sobre os últimos acontecimentos e não se furtou de contar o que sabia.
— Parece que um dos atendentes andou servindo o chá da meia-noite pros velhinhos e se deu mal.
— Como assim?
— Sabe como são essas pessoas endinheiradas. Quando vem pra cá querem trazer tudo junto pra evitar que os parentes passem a mão no dinheiro deles. Aí esse camarada roubava os pacientes. Quando descobriam, dava um jeito para que ficassem quietos para sempre.
Nesse ponto ele fez uma pequena pausa dramática e arregalou os olhos. Depois, continuou:
— Só que dessa vez ele fez o contrário. Primeiro apagou a velhinha e depois abriu o colchão onde ela guardava a grana. A coitada vivia fora da realidade e ele encontrou apenas cédulas antigas, sem valor! Ficou tão furioso que acabou dando com a língua nos dentes. Uma enfermeira ouviu e avisou o diretor da clínica, que chamou a polícia.
Nesse meio tempo saíram da casa os socorristas carregando alguém numa maca. Era o tal que estava de jaleco amarelo na noite do samba, se divertindo com os amigos e vigiado pela velha senhora.
— Eu já vi esse sujeito - disse para o vendedor. Parece que ele está todo machucado.
— Pelo que disseram ele se queimou feio enquanto dormia. Depois da denúncia, trancaram ele num quarto para evitar que fugisse antes de ser levado para a delegacia. Deve ter deitado na cama e pego no sono. Ao que tudo indica caiu um cigarro aceso no lençol e começou um incêndio. O interessante é que, pelo que se sabe, ele nunca fumou.
Como um complemento a todos os sentimentos confusos que se abateram sobre meu peito naquele instante, soprou uma brisa morna, carregando uma fragrância forte, que mesclava mistério, sedução e adeus.
* * *
Este conto foi publicado na antologia Obsessão, da Dark Books, em 2022.
Fantástico. Sem perder uma linha da narrativa.
ResponderExcluirValeu Domenico!!
ExcluirGosto muito do tom de relato dos seus contos.
ResponderExcluirEssa veracidade que eles têm, e aqui a narração em primeira pessoa, pra mim é como ouvir a voz de alguém conhecido. Esses dias vou continuar lendo os textos do Memento Mori e me inspirando a escrever minhas histórias. Até a próxima e obrigado por disponibilizar seus textos. Aliás, a editora Prosaika estará recebendo contos com o tema "Assombrações" a partir de 20/02/2022. Acho que seria uma boa visibilidade pros seus. Caso tenha interesse, o edital e outras informações estão no perfil da editora no Instagram: prosaika.magazine
Muitíssimo obrigado por suas palavras tão gentis. Esse tom de veracidade é justamente o que procuro passar quando escrevo e, pelo seu retorno, parece que estou conseguindo! Agradeço também pela dica do edital. Já estou de olho no perfil da Prosaika :)
ExcluirMuito bom meu irmão! Narrativa intrigante e que prende nossa atenção do início ao fim! Vou passar a reparar melhor nos colchões descartados!
ResponderExcluirMuito obrigado Alex. Só verifica primeiro se tem alguma velhinha por perto !
ExcluirMuito bom, como todos Paulo! Parabéns!
ResponderExcluirMuito obrigado Cláudio!!
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