Benício e o falso medium
Lembram do Benício, o ancestral maragato notabilizado pela perícia ao aplicar a Gravata Colorada nos legalistas? Pois bem, reencontrei-o. Ou melhor, ele voltou a me procurar durante uma viagem a Porto Alegre. Surgiu pilchado, lenço vermelho no pescoço, tirador de couro sobre o chiripá surrado, garruchas e adaga atravessadas na guaiaca. Continua o mesmo fanfarrão debochado de sempre. Eu voltara à cidade para cuidar do inventário de meu recém finado pai e ele sequer aparentou demonstrar interesse ou solidariedade. Foi logo pedindo favores. Dessa vez para um conhecido tão morto quanto ele.
— Estás terceirizando minhas habilidades? - Indaguei magoado pela indiferença, ofendido pelo oportunismo.
Respondeu com a cara lavada de costume:
— Mas bah! Deixa de melindres! Comentei a respeito dos teus dons e ele pediu que intercedesse. Não me faça desfeita perante um colega!
Indignava-me a desfaçatez do antepassado. Em contrapartida, alguém no mundo espiritual pedia ajuda e eu não podia simplesmente ignorá-lo devido a sentimentos mesquinhos evocados pela falta de empatia de Benício. Permiti que me apresentasse o aflito. Em questão de minutos estávamos os três reunidos no quarto do hotel no qual me hospedara.
Resumindo: quando vivo, Thiago, o colega, fora um encrenqueiro incorrigível. Briguento, alcoólatra, viciado em jogos de azar e marido infiel. Contraditoriamente, morria de medo da mulher. Para fugir da tirania doméstica, levava uma vida dupla. Mantinha um pequeno apartamento para suas aventuras amorosas, um celular pré-pago com os contatinhos e uma conta bancária secreta. Numa noite de jogatina a sorte lhe sorriu: ganhou uma bolada! Depositou o prêmio nessa conta, planejando torrar a grana promovendo uma grande festa na boate na qual era freguês contumaz. O destino tinha outros planos e ele infartou dois dias depois a caminho do trabalho.
Escutava calado a narrativa tentando adivinhar o propósito de Thiago. Vivera por anos na gandaia. Agora queria o quê? Participar da orgia encomendada antes de bater as botas? Entretanto, o apelo seguiu em direção completamente diferente:
— Suplico que o senhor impeça o pilantra que está enganando a Judite.
Judite era a esposa de Thiago. A partir daí a história tomou um rumo inesperado, não por isso menos interessante.
Acreditem ou não, Judite amava o cafajeste. Sentia saudades e sofria imensamente com a solidão. Compulsiva, desejava de todo coração ter a seu lado o companheiro a quem jurara amor eterno. Tamanha aflição encaminhou-a para os braços de um vigarista. Um charlatão que anunciava ser poderoso médium, capaz de se comunicar com os habitantes do pós-vida.
O amigo de Benício andava em círculos, exasperado:
— Não sei de onde tira as informações. Muito do que diz é verdade. Judite confia cegamente nas orientações do salafrário e volta lá regularmente. As consultas custam os olhos da cara e, nesse ritmo, vai desfalcar a poupança que deixei rapidinho.
Cheguei a crer nas boas intenções do mequetrefe. Obviamente havia outra motivação.
O excessivo apego da esposa à sua memória mantinha-o preso a ela. Até então suportara o jugo graças a largos intervalos de liberdade. Aproveitava esses lapsos para interagir com seus pares fantasmagóricos, rever locais importantes - a boate principalmente - e assombrar antigos parceiros de vício por pura diversão.
No entanto, a folga acabou depois que Judite passou a frequentar o templo do pseudomédium. A esperança alimentada nas consultas fortaleceu as amarras que o prendiam a ela. Os momentos de alforria ficavam cada vez menores e iriam acabar em breve, condenando-o a segui-la aonde quer que fosse. Ironicamente, ao acompanhá-la - forçosamente - a uma das sessões soube o que se passava. Viu o médium invocá-lo e falar em seu nome as coisas melosas que a esposa carente ansiava ouvir. Pior, descreveu lembranças de uma excursão a Montevidéu em 1997! Na parte emocionante da encenação começou a enrolar a língua, secou o suor da testa, esforçando-se para captar um aviso vindo do além. Ao cabo de alguns minutos, calou-se abruptamente, alegando interferência na comunicação. Tática manjada de criar suspense e manter Judite ansiosa para saber as revelações que o pretenso Thiago faria ao ser interrompido. Iludida, a pobre saiu de lá com retorno previsto para a próxima semana. Por estar com a agenda cheia, segundo a recepcionista, precisou arcar com a taxa de urgência para ser atendida mais cedo.
Ia prosseguir, mas evanesceu. Benício debochou:
— Judite tá cheirando as roupas dele novamente!
A situação tinha um viés cômico, contudo imperava desmascarar o impostor.
Chamou-me a atenção a descrição pormenorizada da rotina do casal. Certamente levantava a ficha corrida das vítimas utilizando algum ardil. Questionado, Benício deu de ombros. Nunca vira o tal médium. Soubera do caso através de Thiago.
— Precisamos visitar esse farsante, Benício.
Cínico, encarou-me daquele jeito sotreta, típico de sua índole duvidosa, e sussurrou:
— Vai tu!
Sumiu sem nem se despedir...
O endereço fornecido por Thiago permitiu localizar o sujeito. Comecei a rastrear suas atividades analisando os perfis mantidos em redes sociais e página na Internet. A julgar pelas fotos, ocupava uma casa vistosamente decorada com um São Jorge lutando contra o dragão em tamanho natural. Atendia a clientela em horário comercial. Atendimentos após as dezoito horas, nos feriados e fins de semana sofriam um acréscimo de 50%, aplicado sobre o valor básico.
Roído pela curiosidade, fiz uma reserva por telefone e, na data aprazada, lá estava eu, de pé, esperando pacientemente na recepção apinhada de crédulos saudosos dos entes que se foram ou ansiosos por resolver pendências financeiras herdadas dos falecidos. Recebi um formulário a ser preenchido com dados pessoais. Ao ser chamado, introduziram-me num recinto burlesco, repleto de estampas e ídolos divisados com dificuldade na semiobscuridade. Uma coleção heterodoxa de símbolos sagrados de diferentes religiões ao redor do planeta. Sincretismo absurdo, difícil de assimilar. Encontrei o "médium" sentado atrás de uma mesa redonda. Usava túnica multicolorida bordada em dourado, um medalhão e um turbante encimado por uma bijuteria espalhafatosa completavam o figurino.
Ele iniciou a consulta com perguntas genéricas. Respondia com base num enredo fantasioso, criado para dar credibilidade a demandas inventadas. Por diversas vezes o vi colocar as indicadores nas têmporas, fingindo interceptar vibrações do universo. Então, inesperadamente, irritou-se, pegou o medalhão com a mão direita e resmungou interjeições incompreensíveis. Encerrou a sessão e dispensou-me sumariamente, sem direito a reembolso. Na saída, a recepcionista alegou que uma leve indisposição perturbara o mestre, por isso não sintonizara a frequência espectral naquela ocasião. Sai de lá com a impressão de que não me queriam de volta.
Ao chegar no hotel surpreendi Benício de tocaia no elevador. Divertia-se subindo e descendo, atento às conversas dos hóspedes alheios a sua existência. Olhei-o com ar de censura. Displicente, mal esperou chegarmos no quarto para contar as barbaridades que escutara naquele ínterim.
A travessura não chegava a ser uma maldade. Na verdade, abriu-me os olhos para uma hipótese que valia a pena testar. Expus a ideia ao Benício. A implementação da estratégia dependia da sua boa vontade e ele se negava peremptoriamente. Decidiu cooperar quando o convenci da relevância de sua participação e o prejuízo que causaríamos aos patifes. Em outras palavras, o aspa-torta topou não por ser moralmente correto e sim porque iríamos achincalhar o esquema dos farsantes.
No dia seguinte, enquanto degustava uma fatia de torta de damasco e um expresso numa cafeteria do Moinhos de Vento, o nefando parente apareceu. Sentou-se a minha frente, esticou as pernas e cruzou os braços. Pela expressão marota do rosto sabia que trazia novidades. Fiz-me de desentendido para provocá-lo. Impaciente, praguejou:
— Oigalê lesma lerda! Termina isso duma vez ...
Voltamos para o hotel em busca de privacidade. Como todos sabem, não é aconselhável ser visto falando sozinho por aí...
O relato de Benício confirmou a hipótese. A artimanha montada pelos golpistas era ridiculamente elementar, porém eficientíssima. A meu pedido, ele inspecionara o prédio do falso médium e descobrira um gabinete contíguo ao consultório com diversos aparelhos instalados. Por desconhecer a tecnologia moderna, liguei a tecla SAP para entendê-lo:
— Arranchado numa saleta um vivente labutava com essas estrovengas que tu usas...
Por estrovengas entenda-se computadores, tablets e celulares. De posse dos dados obtidos no cadastro da recepção, o operador pesquisava por referências dos clientes na Internet, sobretudo em redes sociais. Repassava as informações coletadas via rádio para o "médium" - não precisei queimar os neurônios para deduzir que o turbante escondia fones de ouvido e o medalhão era um microfone disfarçado. Além disso, ficou claro porque ele não conseguira estabelecer contato durante a consulta. Eu preenchera o formulário com respostas fictícias. Nenhuma postagem pode ser encontrada.
Parte do problema fora resolvido. Restava desmoralizar o bando e, de preferência, entregá-los às autoridades.
A princípio cogitei marcar nova consulta para que Benício fizesse uma surpresa tenebrosa. Descartei o intento por ser óbvio demais. O contexto requeria uma ação enérgica, uma lição exemplar para os meliantes bem como para os incautos sem juízo, dispostos a acreditar naquele espertalhão que afirmava comunicar-se com os mortos.
Solicitei a Benício que chamasse Thiago para arquitetarmos o ataque. Demorou um pouco em virtude da fixação da esposa. Finalmente pudemos nos reunir no quarto do hotel, transformado em QG de Operações.
Judite agendara consulta para dali a quatro dias, tempo suficiente para engendrarmos os preparativos. O plano era simples. No decorrer da sessão, Thiago se materializaria na presença de Judite e desmascararia o médium, avisando tratar-se de um engodo. O resultado não foi o planejado. A primeira complicação foi a inépcia do fantasma neófito se tornar visível. Benício passou um cortado ensinando os fundamentos dessa técnica. Obteve apenas efeitos minimamente satisfatórios. A segunda adveio de uma falha de avaliação. Quase que o tiro sai pela culatra!
Aconteceu assim.
No dia fatídico, às 16h30, Judite aguardava na recepção lotada acima de sua capacidade, totalmente alheia aos acontecimentos futuros e ao espetáculo preparado especialmente para ela. Eu também comparecera, fazendo-me passar por cliente. Éramos tantos que os funcionários nem se aperceberam do meu regresso.
Aproximadamente às 17h00 Judite foi chamada e teve início a consulta. Tudo correu normalmente até o momento em que Thiago tentou se manifestar conforme o combinado. Nervoso e inexperiente, materializou-se parcialmente, exibindo sua figura translúcida e agitada sem emitir qualquer som. Emudecera! Consequentemente obtivemos o oposto do pretendido. Apesar de assustada, Judite acreditou que o falsário invocara o espírito do marido. É de admirar a frieza do sujeito que conduzia a sessão. Impávido, aproveitou para enaltecer seus poderes mediúnicos e cobrar um valor adicional pela fabulosa exibição.
Benício permanecia comigo. Discretamente, mostrei a ele os ponteiros do relógio de pulso. A sessão demorava mais que o normal, sem que ocorresse o tumulto que planejáramos promover. O gaudério tem sangue quente. Bufou, bateu com o rebenque na bota de garrão e desapareceu. Irrompeu ao lado do amigo. Judite, maravilhada com as manifestações sobrenaturais, confundiu a esfuziante aparição com a estátua do gaúcho que recebe os viajantes em Porto Alegre:
— O Laçador! Exclamou apontando para Benício.
— Laçador é a p* que te p* (impublicável)!
Dito o impropério, distribuiu generosas doses de patadas e rebencaços. O ímpeto guerreiro renascera com furor incontrolado. No desespero da fuga, o médium desvencilhou-se do turbante, expondo os equipamentos de escuta. Thiago gesticulava freneticamente. Tentava desembuchar ou aplacar a fúria de Benício? Ninguém sabe. Judite encolhera-se num canto, apavorada. No auge do frenesi, Benício chutou a divisória que ocultava o operador, revelando o funcionamento do esquema.
Nesse instante entramos, eu e a turma da delegacia de crimes informáticos e defraudações, no recinto. Os membros da gangue foram presos em flagrante e os presentes encaminhados para prestar esclarecimentos. Enquanto esperava ser chamado, vi Thiago amparando a esposa, atônita e chorosa.
Aguardei Judite ser liberada e convidei-a para um café no boteco da esquina. Precisava conversar com calma e explicar o motivo da confusão daquela tarde. Almejava convencê-la a seguir adiante:
— O Thiago cumpriu sua missão na Terra. Só falta fazer a passagem.
Ela manteve-se firme em sua convicção de continuar amando, e mantendo presa, a alma do ordinário. Mãos postas sobre o peito, elevou a cabeça, mirou o teto de lambris. Suspirando, soltou essa pérola:
— Ele voltou por minha causa!
Naquela hora entendi que não havia jeito. Ela cultivava a imagem de um homem perfeito. Provavelmente ignorava as safadezas perpetradas sorrateiramente pelo cônjuge.
Chegando ao hotel, conjurei Thiago e o adverti severamente:
— A honestidade é a única forma de cortar os laços que te prendem à Judite.
— Ela vai me matar!
— Já estás morto Thiago. Que diferença faz?
Encerrados os trâmites do inventário, visitei alguns parentes. Retornaria logo ao Rio e temia que Benício trouxesse novas pendências de seus pares. Não fui rápido o bastante. Escutei sua voz ao jogar a mala na cama. Trazia notícias da dupla Judite e Thiago:
— Vancê convenceu ele a abrir o bico pra patroa, não foi? Pois contou tudinho.
Ria a socapa, o safado. Joguei uma peça de roupa dobrada na mala e perguntei:
— Que passa tchê?
— A Judite ficou uma fera. Não quer nem ouvir o nome dele. Entonces tá livre, leve e solto. Aliás, ela tá vendo com o banco pra liberar o dinheiro da conta secreta. Vai ajudá na criação dos piá.
— E ele fez a passagem?
— Fez nada. Somos farinha do mesmo saco. Prefere ficar por aqui, assuntando os viventes.
Evaporou antes que pudesse retrucar. Desci com a bagagem, fechei a conta e chamei um carro para me levar ao aeroporto.
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