O matador de lobisomens
Esse causo que lhes conto é tido como verídico, embora os nomes tenham sido trocados para resguardar a identidade dos envolvidos. Foi pras bandas de Bagé, numa estância grande, próxima à fronteira com o Uruguay. Uns dizem que se passou na década de 40 do século passado, outros que foi antes. Pouco importa, porque no interior do meu Rio Grande o tempo tem uma medida diferente e as cousas demoram a se modernizar.
Perdido na imensidão do pampa, próximo ao Rincão das Mulas, havia o rancho de um peão de nome Teixeira. Gaudério talhado a facão, mais grosso que dedo destroncado, mui apegado à família. Dona Nena, a esposa, e três piazotes completavam o conjunto. O primogênito respondia por Abelardo. Idolatrava o pai e queria porque queria crescer para ser um taura macanudo como ele.
Teixeira tinha uns hábitos pouco convencionais, digamos assim. Era dado a fanfarronices. Por ocasião das carreiras organizadas pelo bolicheiro da vila colocava seu alazão para correr. O caçula fazia as vezes de jóquei. O cavalo já fora bom; infelizmente o peso da idade se fazia sentir e ele já não rendia nas pistas como antigamente. Isso não impedia Teixeira de provocar confusão, alegando alguma irregularidade na disputa. Era bom sujeito, mas mau perdedor.
Orgulhava-se de ser campeiro. Andava sempre com o facão três listras e o "fala verdade" (um .38 com cabo de madrepérola que era o xodó do vivente) na cintura. Inclusive na hora da janta, para desgosto de Dona Nena. As maluquices de Teixeira acompanhavam o ciclo lunar. Por exemplo, ao se aproximar o período de Lua Cheia, a pobre senhora já se preparava para o pior. Nessa época, era batata. A qualquer momento durante a refeição, o marido saltava da cadeira, sacava o revólver e saia porta a fora gritando:
— Lobisomem!
Dava tiros para o alto e sumia no breu. Voltava com os primeiros raios de Sol, estropiado, coberto de imundícies, não raras vezes esfarrapado, como se de fato tivesse travado uma batalha de vida ou morte com esse ente das trevas.
É claro que as crianças ficavam assustadas. Abriam o berreiro e era um trabalho medonho acalmá-las. Os menores, porque Abelardo, depois que despontara o buço, ensimesmava por horas, olhando para o recorte escuro da porta por onde o pai correra para o pátio. Atarantada, D. Nena ignorava o comportamento do rapaz. Se desse a devida atenção, a tragédia poderia ter sido evitada.
A história do Rio Grande do Sul é pontilhada de conflitos armados. As refregas serviram para demarcar os limites das fronteiras em peleias duras contra os castelhanos (uruguaios, argentinos, paraguaios). Tais disputas também ocorreram internamente, pondo irmão contra irmão em embates sangrentos. Por essa razão é relativamente comum as casas de fazenda guardarem vestígios desse período na forma de pistolas, fuzis, sabres e adagas. Aqui dava-se o mesmo. No domingo em que o padre veio da cidade, todos se pilcharam a preceito e partiram para a sede da fazenda para participar da celebração de uma missa em homenagem ao aniversário de bodas do Patrão. Abelardo ficou para trás, alegando um sabe-se lá o que. Foi direto para o potreiro, pegou a pá de catar estrume, entrou na baia da égua Estrela e cavou no canto direito, seguindo as instruções segredadas pelo avô ao bater as botas. Ali encontrou uma caixa de madeira aferrolhada, protegida por várias voltas de oleado. Dentro da dita, uma garrucha antiga e sete cartuchos intactos, municiados com projetis de prata. Os olhinhos do fedelho brilharam antevendo o gozo do estampido. Queria ser igual ao pai: matador de lobisomens.
Teixeira ensinara ao filho tudo que sabia sobre armas de fogo. Fazia questão que crescesse versado na arte da caça e - obviamente - estivesse pronto para defender a si próprio, a família ou a estância em caso de necessidade. Entretanto, havia um porém. Zeloso com a segurança da prole, o pai não permitia que Abelardo manuseasse o armamento desacompanhado. Antes precisava criar tino, ter barba na cara e porte de homem. Por esse motivo o piá, receoso da reação do pai, escondera de todos o seu achado. Sempre que podia, em segredo, levava a caixa para um recanto esquecido do galpão e limpava a arma cuidadosamente. Em pouco tempo luzia como nova. Azeitada, regulada, pronta para ser usada.
Dizem que o Diabo ensina a fazer a panela, mas não a tampa. Sucedeu-se o que era de supor. De tanto amaciar a garrucha, Abelardo ganhou a confiança dos incautos. Começou homiziando a caixa debaixo da cama. Depois passou a carregá-la na cintura, disfarçadamente, sem munição. Finalmente, pleno de si, ao aproximar-se o ponto crítico do fatídico ciclo lunar, colocou um cartucho em cada cano (eram dois). Na terceira noite a contar desse dia, sentou-se à mesa sentindo-se adulto. Planejava surpreender o pai auxiliando-o na árdua tarefa de caçar lobisomens.
Uma Lua de prata desenhava sombras no terreiro quando se deu o esperado. Alucinado, Teixeira levantou-se de um salto, derrubando a cadeira atrás de si. Era o sinal. Abelardo ficou atento. O pai desembestou porta fora trovejando:
— Lobisomem!
Na cozinha irrompeu a gritaria. Dona Nena tentava acalmar os pequenos enquanto Abelardo aproveitava a confusão para mergulhar na obscuridade que envolvia o mundo ao rededor.
Teixeira sumira. Guiado pelos disparos desferidos a esmo, o filho buscava seguir os passos do pai. Lá pelas tantas a débil luz da Lua foi encoberta por nuvens. Tudo converteu-se em negra escuridão. Já não ouvia o som dos tiros, apenas o barulho dos bichos noturnos. Cercado pelo desconhecido, sozinho, sem saber que rumo tomar, Abelardo arrependeu-se amargamente de sua decisão. Se sobrevivesse até o alvorecer teria que enfrentar a ira do pai - que não era pouca.
Preso na indecisão de ficar ou prosseguir, Abelardo foi assaltado por uma sensação estranha. Melhor dizendo, por um cheiro forte, catinga fedida, diferente de tudo que já sentira. Era budum de animal. Um que ele ainda não conhecia.
Um estalido seco arrepiou sua espinha. Não estava tão só quanto gostaria, essa era a verdade. Apurou o ouvido a tempo de escutar a respiração pesada de um bicho grande. Outro estalo. Dessa vez mais perto. Transido pelo medo, sacou a garrucha e abrigou-se junto ao tronco de um tarumã providencial. Atento a tudo, inclusive ao pulsar do próprio coração que tentava saltar por sua boca. Pressentiu que algo se aproximava. Quis a fatalidade que um vento forte soprasse a cobertura de nuvens para longe. O luar desceu sobre a terra, revelando os contornos da mata. Abelardo aferrou-se ao tronco da árvore com o intuito de permanecer oculto pela sombra da copa. Um vulto enorme surgiu do nada. Era peludo, andava sobre duas patas. Exibia garras que lembravam adagas. Os olhos amarelos, enormes, eram dois faróis brilhando na escuridão de seu pelo negro. Farejou o ar buscando algo - uma presa por certo. Hesitou por um instante. Virou a cabeçorra em direção à árvore na qual Abelardo buscara abrigo. Avançou lentamente, procurando com os olhos o que o nariz denunciara.
Tomado de uma coragem que desconhecia, Abelardo adiantou-se um passo, parando sob uma clareira de luz. A fera percebeu o movimento e concentrou-se na figura franzina parada a sua frente. Vinha devagar, assuntando quem seria o desvairado que o desafiava assim tão abertamente.
Quando monstro e fedelho estavam a uma braça de distância, Abelardo, resoluto, ergueu a mão com a garrucha em punho. O bruto olhou sem entender. A mão firme puxou o gatilho. Escutou somente o tinir metálico do percusor. Nem um mísero traque! Por estar há muito guardada, a pólvora estragara. Um tremor suave espalhou-se pelo seu corpo. Suando em bicas pressionou o segundo gatilho. O coice recebido no braço, a fumaceira que cerrou sua visão e o uivo lancinante brotado das profundezas de uma garganta amaldiçoada comprovaram que, dessa feita, a arma funcionara.
Envolto pela polvadeira temeu não enxergar o ataque da criatura. Aliviado, soube pelo farfalhar dos arbustos que a besta fugira. Um rastro de sangue atestava a pontaria certeira. Abelardo sacou dois novos cartuchos da algibeira e municiou a arma. Com disposição renovada pelo sucesso parcial da empreitada, deu início a uma perseguição infrutífera. Seguiu o fio de sangue enquanto foi possível. A Lua escondia-se com frequência, dificultando a visibilidade. Ao despontar a aurora decidiu voltar para casa. Dona Nena, aflita ao extremo, recepcionou-o com um belo puxão de orelhas:
— Espera teu pai voltar para veres o que é bom pra tosse, moleque ordinário.
Abelardo sabia ser esse o código para lambadas com o rabo de tatu pendurado ostensivamente numa das paredes da sala. Baixou a cabeça e dirigiu-se ao quarto sem responder sequer a uma das inúmeras perguntas feitas pela mãe. Ele mesmo não sabia ao certo o que acontecera. Teve certeza de que não sonhara ao retirar do bolso da calça os dois cartuchos que sacara da garrucha. Um vazio, o outro intacto, apesar do machucado na espoleta. Deitou-se com as roupas molhadas pelo sereno. Dormiu além da conta. Acordou com o vozerio dos peões da estância. O que estariam eles fazendo lá em pleno horário de serviço?
Esgueirou-se pelos cômodos penumbrosos da casa de janelas fechadas. Da porta semiaberta que dava para o alpendre viu a mãe de costas, coberta com um xale, falando chorosa com o capataz. Pelo que captou da prosa, o pai não comparecera na lida e ele viera assuntar. Dona Nena contou que Teixeira saíra disparatado na noite anterior e não retornara.
O capataz conhecia bem as manias do empregado. Era cabeçudo, porém trabalhador e responsável. Se não voltara era porque algo grave o impedira. Avisou que retornaria à sede da fazenda e reuniria um grupo de buscas. Abelardo voltou para o quarto e esperou a mãe retornar à cozinha. Acabrunhado pela perspectiva de castigo foi até ela; sentou-se no lado oposto da mesa e tentou reconfortar Dona Nena:
— Haverá de ser nada mãe. O pai deve ter se enroscado nas macegas. Daqui há pouco tá aí ...
Dona Nena não estava para palavrórios:
— Cala tua boca e toma teu café. Depois vai ajudar a procurar teu pai.
A angústia da pobre mulher crescia conforme avançava o dia. Na hora da Ave-Maria a chegada de um chasque alvorotou a quietude da casa. Eram más notícias. Encontraram o corpo de Teixeira e o levavam para a sede da fazenda. Abelardo atrelou a égua Estrela na charretinha que levou Dona Nena até lá. Apesar de inflamados protestos, ele ficou em casa cuidando dos irmãos menores.
Dona Nena foi recebida pela esposa do Patrão em pessoa. Preocupada com a reação da agora viúva, convidou-a a aguardar a chegada do corpo com o mulherio aglomerado na cozinha da casa. Assim, não esperaria sozinha que ele fosse preparado adequadamente para ser exposto. Obstinada, desvencilhou-se das mãos que tentavam contê-la e alcançou o magote que se aproximava trazendo o que restara de Teixeira. Era uma mulher forte, vira de tudo um pouco nessa vida e não seria a morte quem iria derrubá-la. Contudo, ao se deparar com o cadáver estendido na padiola, compreendeu a relutância da Senhora do Patrão. Fora retirado de uma sanga, nu, bastante machucado, banhado no sangue que escorria de um ferimento na altura do peito. Um buraco de bala.
O velório foi concorrido. Amigos, parentes e curiosos acorreram para velar aquele homem admirado por todos. Deitaram-no numa mesa tosca, forrada com a toalha branca que Dona Nena bordara ao preparar o enxoval. Uma vela em cada canto. Teixeira, pilchado com trajes de festa, incluindo fatiota, chapéu com barbicacho e guaiaca, parecia dormir. A família encabeçou o cortejo que o levou ao cemitério, localizado no topo de uma colina. Depois de uma cerimônia breve, cada um foi para seu lado. A peonada acolherou-se no galpão, alternando goles de cachaça e chimarrão. Entre uma rodada e outra relembravam alguma das muitas façanhas do companheiro falecido.
Dona Nena e filhos retornaram soturnos ao rancho. Abelardo conduzia a charretinha, os irmãos menores buscavam consolo nos braços frouxos da mãe. Apartada de seu arrimo, sentia-se perdida, com as ideias turbadas pela dor. Antes de partir, o Patrão tentara tranquilizá-la garantindo que permaneceriam morando na estância o tempo que fosse necessário. Ofereceu o posto do pai a Abelardo, afirmando que o rapazote chegara à idade de tomar tenência e era sabido o quanto estava preparado para as lidas campeiras. Apertou seu ombro e o sacudiu de leve, avaliando sua robustez. Falava meio engasgado pela emoção:
— É franzino - riu sem graça, arrematando o chiste:
— Nada que uns nacos de matambre e trabalho pesado não resolvam.
Naquela noite, a sopa foi servida cedo e sorvida em amargo silêncio. A alma da casa se fora. Não havia quem se levantasse gritando:
— Lobisomem!
Nem saísse porta fora dando tiros para o alto. Dona Nena pôs todos na cama, sentou-se na cabeceira da mesa com a mão crispada no peito e chorou desabridamente. Na manhã seguinte Abelardo a encontrou na mesma posição. Não dormira.
Ele viera pelo corredor a passo de gato. Viu a mãe de costas e parou no batente da porta que levava à cozinha. Dali mesmo ouviu a voz gutural, carregada de pesar, dizer:
— Enterra essa maldita garrucha no mesmo lugar em que a encontraste.
Abelardo julgava ser segredo a posse da arma. Como podia a mãe saber?
Adivinhando seu pensamento, ela estendeu o braço e abriu a mão sobre a mesa, revelando uma bala de prata raiada de vermelho.
— Foi isto que tiraram do coração do teu pai.
— Como a senhora sabe da garrucha? - Balbuciou Abelardo.
— Como não saberia, se fui eu quem a enterrou ali?
— Por que?
— Porque fiz teu avô jurar que não atentaria contra a vida do homem que eu amava.
— E por que ele faria isso?
Dona Nena virou-se na cadeira para responder, a face coberta de ódio:
— Porque era isso que ele fazia Abelardo. Teu avô era o matador de lobisomens!
* * *
Esse conto integra a antologia Malditas criaturas : livro dois, da UICLAP, em 2024.
Pobre Abelardo!
ResponderExcluirEle bem que queria, mas infelizmente não saiu igualzito ao pai ...
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