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Oficleide

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Na segunda década do século XXI, enquanto o Sul do Brasil naufragava em um dilúvio sem precedentes, os rios do Norte secavam até esturricar o solo que lhes servia de leito. Como tantos outros ribeirinhos, Anastácio tirava o sustento das águas de um afluente do Rio Negro. Agora, peregrinava a pé enxuto buscando o que restara da imensidão do rio: um fiapo barrento que minguava paulatinamente. Arrastava-se debaixo de um sol escaldante, machucando os pés calçados com velhas chinelas nas pedras expostas. Caminhava e amaldiçoava sua sina. Em casa, esposa e três curumins dependiam de sua habilidade em trazer o peixe que os manteria vivos por mais uma noite. Daquela vez foi diferente. Distraído, mirando a margem sempre distante, tropeçou feio, ferindo o dedo maior do pé direito. Maldisse seu azar numa explosão de impropérios. Ajoelhou-se para atar o ferimento com um farrapo arrancado da camisa puída, doação da paróquia local. Ao abaixar-se notou o ponto onde dera a topada, facilmente identific...

A visita

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Siá Rita acordou cedo. Varreu e ajeitou sua casinha da melhor maneira possível devido a idade avançada. Colheu flores no jardim e as colocou no vidro de café solúvel que servia de vaso. Depositou o arranjo num alvíssimo guardanapo de crochê, ornamento da mesa tosca, em volta da qual estavam dispostas três cadeiras. Vaidosa, mantinha as madeixas cuidadosamente penteadas. Apanhou a mais bela flor do ramalhete e a prendeu nos cabelos. Viver afastada dos vilarejos ribeirinhos não justificava uma aparência desleixada, segundo ela. A brancura de suas cãs denunciava o decurso de decênios e os sulcos da face amarguras de dores e penares. Olhou em torno. Sorriu, satisfeita com o resultado do seu trabalho. Debruçou-se no peitoril da janela, apreciando a paisagem. A tarde ia alta. As sombras das árvores esticavam-se na placidez do igarapé que se estendia a perder de vista. Revivia felicidades passadas. Interrompeu as reminiscências ao reparar nas ondulações suaves espalhando-se na superfície ...

Seu Olavo

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Meu sogro era uma figura ímpar. Amazonense criado solto na imensidão da floresta, acabou aprisionado na cidade grande, onde enraizou-se para constituir família, sem nunca esquecer sua origem e seu passado. Falava com paixão das aventuras mirabolantes - jurava serem verdadeiras! - vividas antes de abandonar o torrão natal. Chamava-se Olavo e transcrevo da maneira mais fiel possível este relato que, jurava ele, aconteceu tal e qual está dito. Desde cedo Olavo levava uma existência solitária, envolto pelo ambiente selvagem que o circundava. Órfão de mãe, vivia com o pai na casa dos avós. Cresceu sob os cuidados de uma tia, afamada benzedeira, com quem aprendeu o que sabia a respeito das artes do sobrenatural. Talvez sob influência dela ou predisposição inata, desenvolveu a capacidade de ver e sentir coisas que aos demais passavam desapercebidas, uma habilidade que o livrou de várias agruras ao longo da vida e o meteu em outros tantos apuros. Certa feita, ainda meninote, um enorme sapo ver...

Lei da Selva

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Inverno no Amazonas é sinônimo de chuva. E daquela feita parecia que a floresta seria alagada definitivamente, tal a quantidade de água que despencava do céu há dias. Não por acaso Firmino, um caboclo acostumado aos humores do clima amazônico, morava numa casa flutuante. Era sua forma de lidar com as constantes oscilações do nível do rio. Pressentindo a tempestade, buscara abrigo no igarapé onde se encontrava, mas até ele, que sempre fora calmo, agora se agitava num banzeiro medonho, mexido pelo peso dos pingos que despencavam céleres, se fundiam à massa líquida e o faziam aumentar perigosamente de volume.  Sentado em sua varanda, tecendo uma rede forte de malha larga, Firmino deixava as mãos trabalharem por conta própria para assuntar a paisagem em busca de algo que espantasse o tédio daquele trabalho repetitivo. Estava nessa ocupação há horas, sabendo que dificilmente algo surgiria assim do nada, naquelas condições. Contrariando suas certezas, lá pelas tantas avistou alguém reman...

Olho por Olho

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  Vista do alto, a Floresta Amazônica parece um imenso tabuleiro verde, recortado por um emaranhado de rios e áreas alagadas. Esses mananciais são tão vitais para a manutenção da vida quanto os recursos oriundos da terra, pois é deles que os habitantes tiram seu sustento. Por isso não é de estranhar que a água ocupe lugar de destaque no imaginário das diversas raças que tentaram dominar esse reino indomável. E quem desdenha o conhecimento que emana desse saber coletivo corre o risco de se tornar vítima das circunstâncias por pura ignorância dos costumes locais. Tomemos como exemplo o caso do Caboclo Chicotada, homem de corpo e alma calejados pela vida na selva. Na cidade seria desdenhado por ser analfabeto e desconhecedor das etiquetas ditas civilizadas. No seio da mata, entretanto, é o companheiro que todos desejam ter, principalmente em momentos de aperto, graças a sabedoria natural adquirida pela experiência, convívio com os filhos da terra e incontáveis aventuras. Suas estórias...

O Encantado Barbudo

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  O folclore amazônico é único, seguramente um dos mais belos e ricos dentre as diversas regiões brasileiras. Aqui, como em nenhum outro lugar, se amalgamaram os saberes e as crendices de três grandes grupos étnicos: o do indígena (natural habitante do lugar), o do branco colonizador e o do negro africano escravizado. Talvez isso explique a miríade de entidades que povoam não só a floresta, mas sobretudo o imaginário dos que ali vivem - extraindo da terra, e principalmente da água - o sustento para si e suas famílias. Embora grande parte das estórias transmitidas da boca de uma geração para o ouvido da próxima seja fruto do medo e da superstição, há manifestações reais de forças sobre as quais se conhece muito pouco, cujas evidências, entretanto, não podem ser ignoradas. Tomemos como exemplo o caso do Caboclo Chicotada, homem de corpo e alma calejados pela vida na floresta e versado nas artes do sobrenatural. Na cidade seria desdenhado por s...

O estranho caso da velha que explodiu

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O Amazonas é lugar de vastas florestas e grandes mistérios. Já estivemos por lá algumas vezes e sempre voltamos com histórias para contar.  A de hoje já foi publicada noutro blog que administro, mas é tão estapafúrdia que merece ser contada novamente. Prometo aumentar um ponto e continuar aumentando sempre que repetir o conto. Deixemos os rodeios de lado para irmos direto ao causo, recolhido numa mesa de bar entre um copo de cerveja e meia dúzia de outros. Dizia o sujeito do outro lado da mesa que há muito tempo viveu lá pros lados de Varre Vento o Caboclo Chicotada. De origem incerta - alguns dizem que ele era filho de boto e outros de cobra - o certo é que era um mateiro valente, hábil no uso do tessada (facão), versado nas artes da mandinga e capaz de enfrentar qualquer misura (assombração) sem pestanejar. Certa feita estava o Caboclo Chicotada em Manaus, negociando uma partida de pirarucu salgado que trouxera para vender na capital, quando soube que uma velha senhora, sua conte...