Olho por Olho
Vista do alto, a Floresta Amazônica parece um imenso tabuleiro verde, recortado por um emaranhado de rios e áreas alagadas. Esses mananciais são tão vitais para a manutenção da vida quanto os recursos oriundos da terra, pois é deles que os habitantes tiram seu sustento. Por isso não é de estranhar que a água ocupe lugar de destaque no imaginário das diversas raças que tentaram dominar esse reino indomável. E quem desdenha o conhecimento que emana desse saber coletivo corre o risco de se tornar vítima das circunstâncias por pura ignorância dos costumes locais.
Tomemos como exemplo o caso do Caboclo Chicotada, homem de corpo e alma calejados pela vida na selva. Na cidade seria desdenhado por ser analfabeto e desconhecedor das etiquetas ditas civilizadas. No seio da mata, entretanto, é o companheiro que todos desejam ter, principalmente em momentos de aperto, graças a sabedoria natural adquirida pela experiência, convívio com os filhos da terra e incontáveis aventuras. Suas estórias por si só dariam um livro grosso e, para quem sabe ler nas entrelinhas, seus causos são um verdadeiro tratado sobre as estratégias empregadas pelos seres fantásticos em sua eterna luta pela preservação da natureza. Mas é preciso estar atento! Em sua simplicidade, ele não hesita em produzir esse ou aquele conto puramente inventado, apenas para distrair o ouvinte.
Chicotada jura que a estória a seguir aconteceu, mas obviamente não há como comprovar sua veracidade. Enfim, quem sou eu para duvidar? Além disso, como diz o próprio, muitas das coisas que conta são verdadeiras, apenas não aconteceram ainda.
Vamos ao conto.
Não faz muito tempo, subia ele o Amazonas, levando uma carga de postas salgadas de pirarucu para vender em Manaus. Passara alguns meses no interior pescando e tratando o peixe até estocar uma quantidade que lhe rendesse um bom dinheiro.
A tarde já se anunciava quando decidiu parar numa vila que avistara junto a margem. Evitava viajar a noite para fugir dos perigos que assaltam os incautos. Assim, encostou a canoa, verificou se a carga estava protegida e dirigiu-se a casa mais próxima, onde pediu pouso. Como pagamento, ofereceu uma bela posta de pirarucu, que fez brilhar os olhinhos gulosos da dona da casa.
No coração da Amazônia é afronta grave recusar pousada a um viajante e por isso a família ofereceu dentre os seus parcos recursos o que tinha de melhor: um lugar seco para pendurar a rede e uma refeição quente. Nem é preciso dizer que a fama de Chicotada o precedia e sua presença ali era uma novidade que enchia a todos de satisfação.
Após o jantar, como de costume, a família se reuniu em volta da mesa para beber, prosear e jogar cartas. Após algumas rodadas o filho mais velho - já homem feito - entrou em transe e começou a falar com voz de curumim. Fora possuído por um Erê que vinha avisar que o caçula corria grande perigo.
Segundo o Erê, uma entidade que habitava o igarapé próximo a casa viria buscar o filho menor como forma de vingança. Disse que era preciso mantê-lo longe da água até a próxima lua cheia, caso contrário algo terrível iria acontecer.
O dono da casa era uma boa pessoa, mas não acreditava em misuras, entidades e outros temas ligados ao sobrenatural. Fazia pouco caso das estórias que o povo conta e debochava de quem nelas acredita. Em vão Chicotada tentou convencê-lo da seriedade da situação.
Apesar dos protestos da mãe – que implorava a Chicotada que levasse consigo a criança – ele fincou pé e se recusou a discutir o assunto. Contrariado e sem outra opção, o caboclo deixou a casa logo cedo para continuar viagem.
Cumpridas as obrigações na cidade, decidiu voltar à casa onde o Erê se manifestara para averiguar qual rumo os acontecimentos haviam tomado. Mas antes, por precaução, foi consultar outro ente elemental e seu amigo: o Encantado Barbudo. Encantados são seres mágicos, profundos conhecedores dos mistérios da floresta e que podem assumir a forma de um animal, nesse caso, a sucuri.
Barbudo ouviu atentamente o relato de Chicotada e não gostou nada do que ficou sabendo. Ao final de alguns minutos começou a falar:
— Isso com certeza é coisa da Iara.
— Essa entidade não é má por natureza, apenas cumpre um destino maldito, imposto contra sua vontade. Se está fazendo isso é porque alguma coisa o pai da criança fez pra ela ou pra alguma criatura do reino das águas.
— Já que pensas em voltar lá, tens que estar preparado pra enfrentar a força dos encantos dela.
Para proteger Chicotada, Barbudo o benzeu com uma reza forte, acompanhada por pancadinhas dadas com um molho de ervas umedecidas nas águas do Rio Negro.
Feito isso, revirou os olhos, assumiu sua forma atávica e rastejou lentamente de volta ao seu covil dentro da mata, sem deixar qualquer vestígio de sua presença.
Apreensivo pelas palavras do amigo, Chicotada pegou a canoa e rumou direto para o vilarejo, onde encontrou a família desolada, de luto pela morte do menino.
Foi direto ao encontro do pai, que após o triste episódio desistira da vida e se entregara aos consolos de uma garrafa de cachaça. Depois de alguns banhos frios e várias canecas de café preto amargo o homem contou que logo após a partida de Chicotada, enquanto trabalhavam na roça, o caçula se afastara da casa e desaparecera como que por encanto. Saíram todos a sua procura por dias, mas nada encontraram.
Por fim encerraram as buscas e o irmão mais velho foi pescar para reabastecer a despensa da casa. Naquele dia, sem motivo conhecido, foi a um local diferente, afastado do seu pesqueiro habitual.
Estava na canoa preparando a azagaia quando ouviu um barulho que chamou sua atenção. Parecia o espadanar de um peixe grande. Pegou o arco e começou a varrer a superfície da água com o olhar, procurando a origem do banzeiro provocado pelo que ele julgou ser um peixe. Entretanto, ao firmar a vista no ponto de onde viera o som, viu um volume enredado na vegetação.
Ao se aproximar, percebeu ser o corpo do irmão desaparecido. Após tanto tempo na água a carne já deveria estar com sinais de corrupção e marcas de mordidas de piranhas, principalmente no rosto e nas pontas dos dedos, mas não. Ele estava intacto, com aparência de quem dorme. Segundo contam, até rosadinho estava.
Enquanto Chicotada ouvia o relato daquele frangalho de gente matutava de si para consigo sobre a origem do aviso ignorado pela família. Provavelmente alguma vítima anterior que tentara evitar que outro tivesse a mesma falta de sorte que ele.
Consternado, decidiu ir ao cemitério visitar o túmulo onde descansava o corpo daquele anjo. O lugar era próximo ao igarapé e Chicotada não pode deixar de pensar que a causadora do infortúnio poderia estar por ali, de tocaia.
Estava concluindo suas preces, pedindo que aquela alminha encontrasse o caminho do paraíso, quando sentiu uma presença próxima a ele. Ergueu a vista e viu que uma bela mulher estava do lado de fora do cemitério, olhando fixamente para ele.
Versado nas artes do sobrenatural, ninguém precisou lhe dizer que se tratava de uma entidade. Resoluto e já com o tessada na mão, Chicotada foi ao encontro da criatura para tirar satisfações.
Ao perceber as intenções do caboclo a Iara – sim, era ela mesma! - começou a emitir uma vibração suave, traduzida em canto, destinada a enfeitiçar os homens e atraí-los para a água e, por fim, para a morte.
Ao dar o terceiro passo, Chicotada sentiu uma friagem percorrer seu corpo, deixando-o totalmente paralisado. Surpresa, ela redobrou a força do encantamento. Ao perceber que sobre ele o efeito seria tão somente esse, deu uma risada sarcástica e falou, sem mover os lábios, com uma voz de enlouquecer qualquer cristão:
— Vejo que tens o corpo fechado por um feitiço poderoso. Caso contrário já estarias aos meus pés, implorando pela morte.
Chicotada via e ouvia tudo que se passava ao seu redor, mas nada podia fazer. O mesmo se dava com ela, que não conseguia atrair Chicotada nem pisar no cemitério, por ser solo consagrado.
— Em respeito ao poder que te protege vou contar minha versão da estória e entenderás o meu desejo de vingança.
Contou a Iara que há algumas luas o pai da criança saíra para pescar. Até aí nada demais, pois é compreensível que as pessoas cacem e pesquem para sobreviver. É a lei da natureza.
Dizia a Iara que o pai saíra para pescar e tão compenetrado estava em flechar um tambaqui enorme que foi adentrando a água sem cuidar onde estava pisando. Como o chão permanecesse firme, a ele pareceu que caminhava sobre um tronco submerso. Engano fatal.
Ao sentir-se pisado, o "tronco" emergiu. O pai estava de pé num enorme jacaré. Apesar do susto, teve tino suficiente para pular na água e voltar para a terra antes que o animal resolvesse cobrar pela carona arrancando-lhe um pedaço do corpo.
Infelizmente a má índole do ribeirinho resolveu aparecer naquele momento e o levou a cometer um desatino. Furioso por ter perdido o tambaqui parrudo, assestou o arco para o jacaré – que estava de boca aberta – e o flechou na garganta.
O ferimento em si não era mortal, mas magoado pela dor e sem conseguir arrancar a seta, o animal não pode mais se alimentar. Acabou definhando e morrendo de fome. Ao saber dessa injúria cruel, perpetrada por puro despeito contra um súdito de seu reino, a Iara decidira não matar imediatamente o causador de tanto sofrimento e sim tirar dele a razão de viver, para que definhasse e morresse em agonia, tal qual sua vítima.
Ao concluir o relato a jovem deu as costas e foi para a margem, de onde se jogou.
Livre das amarras da entidade Chicotada foi em seu encalço, sem sucesso. Ao chegar na beira do barranco de onde ela havia saltado ainda pode ver, entre os respingos d'água, os lampejos coloridos da luz do sol refletidos nas escamas e na cauda da sereia.
Antes de guardar o tessada na bainha, o caboclo passou o polegar pelo fio da ferramenta enquanto jurava que essa estória não terminava aqui.
* * *
Texto selecionado para a antologia Mistérios Sob as Águas, da Estante Amazônica.
Sensacional. Muito bom esses relatos e são verdadeiros na vida deles que vivem nesses locais. ❤
ResponderExcluirMuito bom meu irmão! Não vou pescar mais sem minha tessada!
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