O Encantado Barbudo

 


O folclore amazônico é único, seguramente um dos mais belos e ricos dentre as diversas regiões brasileiras. Aqui, como em nenhum outro lugar, se amalgamaram os saberes e as crendices de três grandes grupos étnicos: o do indígena (natural habitante do lugar), o do branco colonizador e o do negro africano escravizado. Talvez isso explique a miríade de entidades que povoam não só a floresta, mas sobretudo o imaginário dos que ali vivem - extraindo da terra, e principalmente da água - o sustento para si e suas famílias.

Embora grande parte das estórias transmitidas da boca de uma geração para o ouvido da próxima seja fruto do medo e da superstição, há manifestações reais de forças sobre as quais se conhece muito pouco, cujas evidências, entretanto, não podem ser ignoradas.

Tomemos como exemplo o caso do Caboclo Chicotada, homem de corpo e alma calejados pela vida na floresta e versado nas artes do sobrenatural. Na cidade seria desdenhado por ser analfabeto e desconhecedor das etiquetas ditas civilizadas. No seio da mata, entretanto, é o companheiro que todos desejam ter,  principalmente em momentos de aperto, graças a sabedoria natural adquirida pela experiência, convívio com os filhos da terra e miles de aventuras. Suas estórias por si só dariam um livro grosso, daqueles que param de pé sozinhos na estante. É dele, por exemplo, o relato sobre o estranho caso da velha que explodiu (clique aqui para ver).

Tive a sorte, e por que não dizer a honra, de conviver com Chicotada numa das muitas viagens que empreendi pela região Amazônica. Estivemos juntos por alguns dias, durante os quais ele me colocou a par de acontecimentos bizarros, descreveu entidades fantásticas e contou, obviamente, muitas estórias de pescador - onde o exagero é a regra.

Dentre as entidades descritas pelo indômito caboclo está a do Encantado, um ser dotado de poderes sobrenaturais, cuja forma atávica é a de um animal nativo da floresta. Via de regra assumem a forma humana para poderem transitar nas aldeias e povoados sem chamar a atenção.

Sentados junto ao fogo, cuidando um ventrecho de pirarucu que fazia chiar o braseiro com grossas gotas de gordura, jogávamos conversa fora quando, depois de um largo trago de pinga, Chicotada desembestou a falar de um grande amigo seu, o Encantado Barbudo.

— Esse era passado no alho! Aprontava cada uma que deixava qualquer cristão ensimesmado.

Acocado a maneira típica do Norte, com o chapéu de palha atravessado na cabeça e o clarão da fogueira fazendo contraste com a escuridão da noite que iniciava, parecia ele mesmo uma das misuras - ou assombrações - das quais falava com tanto gosto.

— O Barbudo fazia uma coisa que deixava todo mundo de boca aberta.

Nesse ponto Chicotada aproximou o palheiro da boca e deu uma longa tragada. Desculpa para uma pausa dramática no desenrolar da trama.

— Fazia o quê esse tal de Barbudo?

Perguntei para incentivar o moço a continuar a narrativa.

— Quando a gente ia pra Manaus, pegava um barco de linha e ia subindo o rio. Quando chegava na altura de Varre Vento, mais ou menos metade do caminho, era batata.

Outra tragada.

— Ele sumia um instante e voltava só de roupa branca, daquelas feita em casa, com pano de saca de farinha, e uma sacolinha com a roupa que estava usando dobrada dentro.

— Pra que isso?!

Perguntei realmente curioso.

— Calma que você já vai entender. Ele fazia isso por gabola que era, pra espantar os descrentes e divertir os amigos - como esse que vos fala.

Outra tragada.

— Ele chegava num desavisado qualquer e pedia que segurasse a sacolinha pra ele.

— Porque?

Perguntava o desavisado.

— Pra não molhar. Me devolve ela no porto.

Dizia enigmático o Barbudo e ploft! Pulava na água, na frente do barco.

Baforava o Chicotada.

Com um graveto reavivei o fogo enquanto olhava de soslaio para o caboclo. Ele percebeu e deu uma risadinha, daquelas de mostrar o dente de ouro que instalara mais por vaidade que necessidade.

— Pois então, quando o barco chegava na cidade já estava lá o Barbudo, sequinho, esperando o desavisado pra pegar a sacolinha de volta!

— Mas porque dissestes que ele fazia essas coisas, Chicotada? Ele não faz mais?

Chicotada baixou os olhos, tirou outra baforada, bebeu um gole de pinga e limpou os lábios com as costas da mão. Tudo isso para disfarçar a sombra de uma lembrança dolorosa que perpassara seu rosto talhado a facão.

Acontece que esse Barbudo era um Encantado que fora gerado junto com uma irmã gêmea - fato completamente inédito nesse universo. Entretanto, o mais assombroso ainda estava por vir.

Ainda no útero, sabe-se lá a razão cósmica desse feito, o bem e o mal se dividiram e foram destinados cada qual para uma criança. O primeiro para o menino, o segundo para a menina.

Uma vez paridos, desde as primeiras horas de vida, já manifestavam o pendor para o qual foram predestinados. Se ele era a bondade em pessoa a outra era a encarnação da maldade, que tudo fazia para perturbar e desgraçar a vida de qualquer um, fosse ele pessoa, planta, animal ou entidade.

Conforme a menina crescia, cresciam também suas habilidades em praticar o mal. Suas atividades tornaram-se mais frequentes e mais cruéis. Durante anos o único propósito na vida do Barbudo foi o de desfazer, na medida do possível, as crueldades perpetradas pela irmã. Infelizmente nem sempre obtinha sucesso e a esteira de infortúnios deixada por ela não parava de crescer. Enquanto ele reparava um estrago aqui ela se encarregava de fazer outras tantas vítimas acolá, de modo que a existência de Encantado se resumiu a viver em função da irmã.

Até que um dia aconteceu o impensável. A maléfica criatura começou a matar crianças! Sem dó nem piedade, atraía os filhos dos ribeirinhos para afogá-los nos igarapés próximos as casas. 

Barbudo já estava cansado de tanta iniquidade, mas esse ato profano e bárbaro contra alminhas inocentes foi o que bastou para transtorná-lo e fazer transbordar em fúria o seu comportamento até então pacífico. E foi como uma enorme sucuri (sua forma atávica) que ele saiu em busca da irmã. Quem assistiu a esse encontro disse que o embate fez o chão tremer por dias. As duas serpentes se entrelaçavam, cada uma tentando esmagar a oponente. No início a irmã levou vantagem, pois sua natureza aliada a prática constante da maldade havia extinguido qualquer resquício de misericórdia que por ventura tivesse existido. O Barbudo, movido pela força da justiça e apoiado por todos a sua volta, fazia o possível para não sucumbir ante o poder que enfrentava abertamente pela primeira vez.

De tanto se embolarem nessa disputa insana, os combatentes acabaram por se entranhar na mata e desapareceram, deixando a todos apreensivos sobre o resultado da luta.

Quando o urro das bestas e os tremores de terra cessaram, Chicotada reuniu um grupo de corajosos e se puseram a seguir as marcas deixadas pelos irmãos para tentar descobrir o resultado do confronto. Encontraram uma clareira enorme, com os troncos das árvores esmagados e tingidos de sangue. O rastro de apenas uma cobra grande - que seguia floresta adentro e sumia nas profundezas de um rio - indicava o único resultado possível: o vencedor devorara o vencido. Consumir o corpo e assimilar o espírito do derrotado é a única forma de assegurar que um encantado não voltará para vingar-se.

Por semanas a falta de certeza sobre o resultado da contenda atormentou os habitantes daquela região. Todos torciam pela vitória do Barbudo, mas temiam sobretudo a volta da megera.

Numa tarde mormacenta e úmida, enquanto enfardava juta para despachar para a cidade, Chicotada recebeu uma visita inquietante. Um velho índio trazia importante mensagem de um poderoso pajé, amigo seu, o qual mandava avisar que alguém havia se refugiado na parte mais fechada da mata e pedia o seu auxílio. Naquele instante Chicotada teve certeza que o Encantado Barbudo sobrevivera, mas certamente sofria com as consequências do seu feito. Seguindo as indicações recebidas, em poucos dias se acercava cautelosamente do local, cantando como um uirapuru para alertar o Encantado de sua presença.

Guiado pela força mística do Barbudo, Chicotada não tardou a encontrá-lo prostrado sobre um manto de folhas, enfraquecido pela luta e com graves ferimentos no corpo e na alma. A índole da irmã era tão diabólica que mesmo após a morte ainda tinha forças para tentar dominar o irmão. Rapidamente o caboclo colocou em ação seus conhecimentos de mateiro e proveu o enfermo de abrigo, fogo, água e alimento.

Passado algum tempo, após já ter recuperado boa parte de suas forças, o Encantado confessou a Chicotada que de fato matara a irmã e a devorara, por não haver outra solução. Transtornado pelo ato bárbaro a que fora levado cometer, havia se isolado na floresta disposto a morrer sozinho para espiar seu pecado. Porém, na última lua nova, enquanto aguardava a visita da morte, teve uma iluminação súbita: a floresta e seus habitantes ainda estavam impregnados pelo mal que sua irmã havia deixado e era preciso corrigir isso. 

Decidira então continuar vivendo como um ermitão, colocando todo seu conhecimento de cura a disposição de quem precisasse.

— Viver com os bichos foi o castigo que ele impôs a si mesmo por ter matado a desgraçada.

Disse Chicotada cuspindo para o lado.

O ventrecho estava pronto e cada um colocou uma boa porção em seu prato. Depois de aberta a lata de farinha deu-se início aos trabalhos e nada mais foi dito.

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