Dia de colheita
Zeca era um menino sadio e feliz, na faixa dos seus onze anos de idade. Vivia com a família numa casa simples e sem maiores preocupações. Como era comum na década de 1960, passava boa parte do dia na rua jogando bola, andando de bicicleta, brincando de polícia e ladrão, essas coisas que as crianças de hoje em dia já não fazem mais.
Talvez por ser assim tinha a alma pura e tranquila. Pelo menos até o dia em que, num final de tarde, atravessou o corredor, abriu a porta e entrou no dormitório que dividia com mais dois irmãos. Antes que pudesse acender a luz viu nitidamente, envolto pela semiobscuridade, a figura de um homem - pelo menos foi o que lhe pareceu - vestido com uma longa túnica e um capuz a cobrir seu rosto. A aparição parecia flutuar no ar e isso lhe deu a impressão de estar olhando para um enforcado.
Apavorado Zeca correu em direção a sala para contar a seus pais que havia alguém pendurado sobre sua cama. Infelizmente ninguém pode lhe dar atenção. Naquele momento seu tio, que era padre, vinha comunicar o falecimento de seu avô, há muito adoentado.
Perdido entre lágrimas e preparativos para o velório, Zeca acabou por esquecer o incidente e voltou a ser quem era. Com uma pequena diferença: ao abrir a porta do quarto fechava os olhos e só os abria novamente após ter acendido a luz!
O tempo passou sem maiores incidentes, até que uma noite Zeca acordou e viu aos pés da cama a figura silenciosa do Enforcado. Quando ia esboçar uma reação a luz subitamente acendeu e sua mãe entrou no quarto chorando. Sua tia acabara de passar dessa para a melhor e era preciso que todos se preparassem para o velório que ocorreria longe dali. Por isso a necessidade de partir imediatamente, no meio da noite.
Espremido entre os dois irmão no banco de trás do carro, Zeca se perguntava se deveria contar o que vira. Por fim, acabou desistindo da ideia e cochilou da melhor forma que pode.
Certo dia, quando já era um rapazote e praticamente esquecera a existência do Enforcado, Zeca abriu a porta do quarto e entrou de olhos bem abertos. E lá estava ele, como a esperar pela chegada do menino. Dessa vez estava com os pés no chão e as mão unidas na altura da cintura. Zeca percebeu então que não se tratava de um condenado a forca, mas sim da personificação da própria morte. Ele estava na presença do temível Ceifador de Almas.
Estarrecido com a descoberta, Zeca, justificadamente, acreditou ter chegado a sua hora. Com gotas de suor gelado escorrendo pelo corpo todo, afastou-se lentamente da porta, caminhando de costas para não tirar os olhos daquela figura apavorante.
Quando julgou ter se afastado o suficiente, correu em busca de alguém que pudesse ampará-lo em seus momentos finais. Ao chegar a sala sua mãe abria um telegrama recém entregue.
— Quem morreu?
Perguntou Zeca, que começava a entender o quê estava se passando.
Sua mãe o fitou com surpresa e disse, já com os olhos vermelhos:
— Sua tia Lucinda. Como você sabia que alguém havia morrido?
— Não faço ideia ...
Zeca voltou mais que depressa ao quarto, mas o Ceifador já havia partido. Deixara no ar, como uma mensagem, um sentimento que mesclava cansaço e profunda solidão. A morte estava só e precisava de um amigo.
Profundamente impressionado com a sensação de abandono que sentira naquele dia, Zeca passou a nutrir algo próximo da simpatia pelo encapuzado. Aos poucos essa sensação foi crescendo até chegar ao ponto dele desejar rever a sinistra figura. Infelizmente a morte tem seus próprios desígnios e, mesmo com o correr de vários anos, não se fizera mais presente, pelo menos para ele.
Mas Zeca não se chateava com esse comportamento esquivo da morte porque sabia que ela estava sempre próxima a ele. Várias e várias vezes logrou vê-la num lampejo fugaz, espreitando nas sombras de um beco, escondida no lusco-fusco das longas tardes de outono e até mesmo nas margens das muitas rodovias que percorria em suas viagens. O Ceifador era, para ele, um amigo tímido que tinha receio de se manifestar.
Certa feita, já adulto e casado, acordou no meio da noite e lá estava ele, novamente aos pés da cama.
— Temos que parar de nos encontrar assim.
Brincou Zeca enquanto se levantava e vestia um roupão. Era inverno e a noite estava gelada.
Instintivamente olhou para a esposa para verificar se ainda estava dormindo. Por um instante um pensamento sombrio cruzou sua mente e ele se perguntou se a visita do velho conhecido teria algum propósito prático. O semblante sereno da mulher não havia se alterado. Ela ressonava tranquila e alheia aos insólitos acontecimentos que se desenrolavam no quarto.
Com o coração apaziguado, foi até a sala e sentou no sofá. O Ceifador permaneceu de pé. Sem emitir um som, falava com eloquência sobre os motivos de suas visitas.
Zeca ficou sabendo que na verdade a Morte e o Ceifador eram duas entidades diferentes. No início dos tempos essa distinção era clara e inquestionável. A função da Morte sempre fora a de encerrar o ciclo do vivente na Terra e a do Ceifador colher e conduzir a alma recém liberta ao seu destino - daí o seu nome.
Conforme progredira o avanço da civilização a humanidade tornara-se cada vez mais racional, fazendo com que a distância entre o mundo material e o espiritual aumentasse exponencialmente - até tornar-se um abismo intransponível. Por fim os homens perderam a capacidade de interagir com o imaterial e esqueceram a existência das entidades que regiam sua existência, tanto num plano quanto no outro. Até mesmo a importância da sua mortalidade foi relegada ao esquecimento. E foi assim que o Ceifador, outrora adorado como um deus, era agora encarado e temido como a mais repugnante das criaturas.
Por milênios ele aceitara esse destino por considerá-lo imutável, até que um dia sentira uma vibração especial, há muito esquecida, que emanava da alma de Zeca. A princípio julgou ser um engano, mas quando percebeu que Zeca podia enxergá-lo entendeu que sua intuição estava certa. Novamente caminhava sobre a Terra alguém que mantinha aberta a conexão entre os dois mundos.
Um ser com tal capacidade não podia ter vindo ao mundo por acaso e o Ceifador conferiu a si mesmo a missão de descobrir qual seria o propósito dessa criatura. O que certamente não foi fácil. A hora de Zeca ter o seu encontro com a Morte já havia passado há um bom tempo sem que nada de especial fosse revelado. Com o argumento de que sua singularidade o tornava único, o Ceifador havia conseguido mantê-lo a salvo das inúmeras investidas da sua colega de trabalho.
— Por diversas vezes estive junto a ti para proteger-te da inevitável sina de todo ser vivo.
Zeca podia jurar que havia emoção no tom da "voz" do Ceifador.
— Mas hoje é diferente. O propósito finalmente foi revelado.
— Há mais alguém como tu, Zeca, e dele virá a descendência que irá restaurar o equilíbrio perdido. Portanto, já não há desculpas para manter-te livre do beijo fatal.
Ao ouvir essa parte da narrativa um calafrio ainda mais gelado que a noite percorreu a coluna de Zeca.
— Meu filho!
Seu último pensamento como ser humano foi para a criança que dormia no quarto ao lado e que havia completado onze anos naquela semana. O sopro gelado que sentira era o hálito da Morte encerrando seu tempo de vida no plano material.
Zeca olhava para si mesmo, sentado imóvel e de roupão no sofá da sala, enquanto se deixava envolver por uma atmosfera morna e agradável.
Então o Ceifador lhe estendeu a mão e disse:
— Vamos?
Estou com os pelos arrepiados e com calafrios em todo corpo!
ResponderExcluirEsse é de arrepiar mesmo!! Vamos ver como será o próximo ... (risada sinistra)
ExcluirUm dos contos mais emocionantes que já li sobre tal assunto. Que venham mais, parabéns!
ResponderExcluirMuito obrigado! Esse é um tema que sempre suscita fortes emoções ...
ExcluirGostei da ideia dos encontros no quarto. É como um portal pro "outro lado".
ResponderExcluirCom certeza! O quarto é a parte mais íntima da casa e é onde o Ceifador se sentia a vontade para "falar" com o menino.
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