Um brilho na escuridão
"Almas perdidas são como mariposas atraídas pela luz que emanam as pessoas iluminadas"
* * *
Tobias era um homem simples, a quem a vida não reservara muitas surpresas. A perda inesperada de um irmão durante um almoço de família era seu maior mistério. A causa da morte nunca fora determinada e o fato permaneceu na memória de todos que estavam a mesa naquele momento pelo resto de suas vidas[1].
Havia nascido e morado no extremo sul do país, com ocasionais viagens a trabalho ou lazer. Dessa feita viajara para Salvador, sede de um simpósio do qual participaria como palestrante, com todas as despesas pagas pela empresa. Como chegara no sábado e o compromisso era apenas na segunda-feira decidira fazer um tour pelo centro histórico no domingo. Essa seria uma boa maneira de aproveitar o tempo.
Seguindo recomendações de amigos que já haviam visitado a cidade, contratou o serviço de uma guia local - de confiança - segundo atestaram todos a quem consultou. Uma baiana filha da terra que se apresentava como profunda conhecedora das histórias e mistérios de Salvador.
Encontraram-se no saguão do hotel e Tobias ficou impressionado com a figura que o aguardava junto ao balcão. Era uma mulher na força dos seus trinta e poucos anos, alta, forte e de sorriso cativante. A julgar pelas guias que se viam pela gola semiaberta da blusa do uniforme, era filha de santo e versada nas artes do sobrenatural.
— Bora meu rei!
Expressava-se de forma franca, com aquele sotaque soteropolitano tão estranho aos habitantes do Sul.
— Tem muita coisa pra ver nessa Bahia de meu Deus.
Completou rindo e sinalizou para Tobias embarcar num carro estacionado na calçada. O tour era privativo e ela fazia as vezes de guia e motorista.
Depois de algumas paradas em pontos turísticos tradicionais, ela perguntou se Tobias teria interesse em conhecer um mosteiro que havia sido aberto há pouco para visitação pública. Era uma construção antiga, da segunda metade do século XVI e que teria abrigado uma das primeiras áreas de armazenamento de escravizados africanos no Brasil.
— Parece interessante - assentiu Tobias. Porque abriram para visitação somente agora?
— Sei não, visse? Provavelmente medo de assombração!
A guia respondera com sua peculiar franqueza, encerrando a frase com uma gargalhada gostosa, que fez Tobias se perguntar se ela brincava ou falava sério.
O mosteiro era de fato interessante. Fora cuidadosamente restaurado e remobiliado conforme a época de seu apogeu.
Como o tour era privado e havia tempo, Tobias aproveitou para perambular pelos enormes salões com calma. Ao entrar num corredor que levava a outra ala do prédio viu uma placa indicando que os sanitários eram no andar de baixo.
— Bem na hora!
Seguindo a indicação logo encontrou uma passagem que dava para uma escadaria. Tobias desceu rapidamente para o piso inferior e não teve dificuldades em encontrar o banheiro masculino. Mais leve ao sair, percebeu que havia outra passagem, semelhante a anterior, na qual também havia uma escada que levava a um piso ainda mais abaixo. Atraído por uma curiosidade que não lhe era natural, desceu até chegar a um corredor comprido e escuro. A luminosidade oriunda da abertura onde terminavam os degraus não alcançava seu final. Intrigado para saber quão extenso seria, Tobias prosseguiu até ser tragado pela escuridão.
Como não conseguia enxergar um palmo a frente do nariz, ativou o modo lanterna no celular e continuou avançando sempre envolto pelas trevas. Por mais que andasse via sempre a mesma parede de pedras. Era como se caminhasse sem sair do lugar. Ali embaixo o ar era gelado, bem diferente do calor característico de Salvador. Havia tanta paz na frieza daquele silêncio que Tobias se deixou envolver e foi vagando sem saber aonde ia. Aconteceu então o inevitável. Ele perdeu a noção do tempo, ficou desorientado e sem condições de encontrar o caminho de volta.
Ao perceber a situação em que se encontrava, Tobias procurou manter a calma. Todos os programas de aventura que assistira na TV afirmavam que em situações de perigo é fundamental evitar o pânico. E era isso que ele tentava fazer naquele momento.
Inicialmente fez meia volta e tentou refazer o caminho que o levara até aquele ponto. Talvez ele tenha feito uma curva errada ou entrado num corredor lateral sem perceber. O fato é que, por mais que tentasse localizar-se, ficava cada vez mais inevitavelmente perdido. Seus olhos buscavam quase em desespero ao menos uma réstia da luz da entrada daquele labirinto macabro.
Tobias vagou aleatoriamente até que lhe faltaram as forças. Exausto física e mentalmente sentou-se no chão, com as costas apoiadas na parede de pedra. Ao perceber que não sairia dali sem ajuda pegou o telefone para ligar para a guia em busca de auxílio. Infelizmente não havia sinal e não pode completar a chamada.
— Será que ela já deu pela minha falta?
— Espero que alguém lembre de me procurar aqui embaixo ...
— Nada de pânico!
Estava imerso nesses pensamentos sombrios quando a luz do celular começou a piscar e por fim apagou.
— Pronto. Agora não falta mais nada. Devia ter ficado no hotel!
Recriminava-se tão veementemente que nem percebeu o par de pernas emergindo a seu lado.
— Não devias de estar aqui.
O súbito ressoar daquela voz grave, pausada e perfeitamente calma fez com que Tobias olhasse em volta e descobrisse que tinha companhia.
O recém-chegado era um sujeito alto, um pouco magro, com o rosto parcialmente oculto pela sombra da aba de um chapéu fora de moda. Tobias ficou tão aliviado por ter alguém com ele naquela escuridão que ignorou a reprimenda. Aliás, a euforia de ser encontrado era tanta que nem lhe ocorreu perguntar como o estranho chegara sem chamar a atenção. Tampouco lhe incomodou o fato de conseguir enxergar alguém num local totalmente desprovido de luz.
— Me desculpe - balbuciou - de fato eu não devia estar aqui. Quis dar uma olhada nos corredores e acabei me perdendo. O senhor é guia do mosteiro?
— Guia sim, mas não do mosteiro. Pode-se dizer que pertenço ao lugar - o estranho exibia um sorriso enigmático no olhar. E acrescentou:
— Deves me acompanhar agora, para que possas voltar ao seu tempo.
Ato contínuo o estranho começou a caminhar. Tobias, sem melhor alternativa, foi seguindo atrás, aliviado porque alguém finalmente viera resgatá-lo daquela situação ridícula.
— Muita gente se perde por aqui? Perguntou Tobias, ao que o estranho respondeu, sem se virar.
— Aqui só vem quem tem que aqui estar. Preciso averiguar com o porteiro por que vosmicê conseguiu passar.
A resposta pareceu um tanto rude. Além disso Tobias não fazia ideia de que porteiro poderia ser esse. No momento sua maior preocupação era sair dali e por isso achou melhor permanecer de boca fechada. Após algum tempo de caminhada, finalmente avistaram o brilho que vinha da abertura que levava ao piso superior.
— Só posso vir até aqui Tobias. Daqui em diante deves ir sozinho.
— Agradeço pela ajuda!
Aliviado por encontrar a saída, Tobias correu em direção à luz sem olhar para trás. Ao chegar ao sopé da escada virou-se, contudo viu apenas o vazio.
— Que estranho. Para onde será que ele foi?
Nesse momento o celular começou a vibrar, indicando uma ligação.
— Alô?
Ao levar o aparelho ao ouvido Tobias percebeu a luz da lanterna acesa e se perguntou como seria possível uma vez que a bateria descarregara ...
O silêncio foi quebrado pela inconfundível voz da guia:
— Olhe, tá na hora visse? Temos que ir meu patrão!
O tour terminara e era hora de voltar ao hotel.
Vencer os dois lances de escada que levavam ao piso superior exigiu de Tobias um esforço extraordinário. Cada degrau parecia mais pesado que o anterior. A sensação era de estar levando um grande fardo as costas.
Conforme ia subindo, a agitação remanescente do susto de há pouco ia desaparecendo e na sua mente começavam a brotar indagações que somente agora chamavam sua atenção.
— Se havia carga na bateria, porque a luz apagara daquele jeito?
— Como o rapaz sabia o meu nome se em momento algum eu disse a ele qual era?
— E afinal, quem era ele e de onde tinha vindo? Não usava uniforme, nem lanterna trazia consigo ...
Ao chegar no átrio do mosteiro, Tobias se apoiou no batente do portal para recuperar o fôlego e apertou os olhos até se acostumar com a luz forte do dia que lhe cegava a visão. A guia esperava encostada no carro, verificando alguma coisa em seu celular. Assim que Tobias se aproximou ela ergueu os olhos, subitamente apreensiva, e ficou olhando para ele por alguns instantes que pareceram longos demais.
O olhar penetrante da guia era inquietante. Para quebrar o constrangimento que o dominava, Tobias colocou a mão na porta do carro e falou com voz arrastada:
— Então, vamos?
— Vamos sim e é agora meu rei.
A guia conhecia bem a geografia de Salvador e era boa motorista, porém dirigia rápido demais.
Pálido e suando em bicas, Tobias se agarrava como podia para minimizar os sacolejos enquanto passavam pela Baixa dos Sapateiros. Mesmo sendo um turista, reparou que o caminho que ela tomara não levava ao hotel e juntou forças para perguntar:
— Para onde vamos? O hotel fica para outro lado ...
A guia o interrompeu enquanto ziguezaveava pela pista, abrindo espaço entre os demais veículos.
— Se avexe não meu rei. Você vai voltar direitinho pro seu hotel. Antes vamos dar uma paradinha no terreiro de Mãinha.
— Não sabia que fazia parte do roteiro - estranhou Tobias.
— E não faz. Só que você não pode voltar pra casa com esses eguns agarrados em suas costas meu rei. Tem alma aí pra umas dez reencarnações!
— Assim que Mãinha terminar a limpeza você vai me contar tudinho. Quero saber aonde o senhor andou se metendo pra voltar desse jeito.
Tobias ouvia calado as palavras da guia, misto de assombro e preocupação. Desejava muito entender o quê acontecera lá embaixo e talvez ela, ou Mãinha, pudessem ajudá-lo.
Enquanto ziguezagueavam pelas ruas da capital baiana um sussurro interior o alertava que essa podia ter sido a primeira, mas certamente não seria a última experiência sobrenatural de sua vida e que ali nascia uma amizade destinada a perdurar por toda a eternidade.
[1]A tragédia pessoal de Tobias está descrita na terceira parte do causo A Porta Verde (clique aqui para ler). Voltar
Moral da história: nunca meta o nariz onde não é chamado! (kkkkkkk)
ResponderExcluirA curiosidade matou o gato, já dizia o velho ditado ... ;)
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