A Porta Verde - parte III
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Mercado Público de Porto Alegre |
Uma descoberta muda tudo
O que não tem remédio, remediado está. Por absoluta falta de alternativas aceitei a ajuda de Anastácio e, por fim, ficamos amigos. Eu trabalhava para ele na cafeteria e ele me ajudava a construir uma vida nova.
É claro que sentia falta de tudo que havia deixado para trás - no futuro. Quer dizer, quase tudo. Alguns aspectos da minha vida anterior não faziam tanta falta assim. Principalmente o trabalho no escritório, burocrático e repetitivo. Bem diferente das minhas novas atribuições na cafeteria. Cada dia era diferente do outro. Descobri que atender os fregueses era muito divertido, pois cada um tinha uma história para contar, mesmo sem pronunciar uma palavra. Eu era bom em ler as pessoas e nunca teria sabido disso se não tivesse recuado vinte anos no tempo.
Ao fechar a loja, Anastácio e eu íamos jantar num dos muitos restaurantes do Mercado Público. De preferência numa mesa afastada, onde podíamos conversar livremente sobre nossas teorias a respeito da Porta Verde.
Sempre apreciei muito a comida de um dos restaurantes mais tradicionais do Mercado e de Porto Alegre — um estabelecimento centenário, muito conservador com relação a seu cardápio. Ele também é famoso por servir um delicioso mocotó, conhecido pelos frequentadores assíduos como "o terrível", por ser forte e espancar o frio! Por motivos óbvios era servido somente no inverno.
Na primeira vez que fomos jantar lá a noite estava gelada. Logo ao sentar chamei o garçom e pedi em alto e bom som:
— manda "o terrível" no capricho.
O pobre homem ficou me olhando sem entender e sem entender fiquei também eu, pois esse prato era carro chefe do restaurante há décadas. Como que o garçom não o conhecia?
Anastácio percebeu minha confusão e emendou um pedido mais ortodoxo, que o garçom pareceu aliviado em atender. Depois, tentou contemporizar, alegando que talvez esse prato deveria existir apenas na minha época.
— Não pode ser - disse sem muita convicção - "o terrível" é a principal atração da casa há gerações!
O jeito foi deixar a vontade de lado e comer o pedido que Anastácio fizera.
Talvez esse tenha sido o primeiro sinal de alerta, mas eu ainda era um recém chegado a essa realidade e não soube interpretá-lo corretamente.
Mesmo com o passar do tempo, nunca deixei de pensar nesse incidente. Até porque a ele vieram se somar outros, pequenas alterações que não chamariam a atenção se eu não tivesse sido despertado para a possibilidade desse tipo de ocorrência. Coisas simples, como nomes de ruas, monumentos e até obras de arte que eu conhecia e sabia que não deveriam ter mudado em vinte anos estavam diferentes.
A confirmação de que essas mudanças eram reais aconteceu graças a uma ideia surgida durante uma de nossas conversas. Na teoria era simples. Bastaria avisar meu eu mais jovem para evitar a galeria naquela data específica. Parecia um bom plano e topei de imediato.
Na semana seguinte, num domingo, cedinho estava no ônibus rumo a uma pequena cidade do interior, onde moravam meus pais naquela época. Foi uma emoção muito grande rever a casa onde nasci - vim ao mundo pelas mãos de uma parteira. Engraçado que até chegar aos pés do portão eu estava animado e ansioso por rever minha família, principalmente a minha versão criança. No entanto, toda a animação inicial se perdera e agora eu não sabia mais o quê fazer.
— Vão achar que sou louco - dizia para meus botões.
E uma forte dúvida surgiu em minha mente, travando meus movimentos: o que aconteceria quando as duas versões da mesma pessoa se encontrassem frente a frente?
— Isso é no mínimo um paradoxo - repetia para mim mesmo.
Foi quando a porta da frente se abriu e surgiram meus pais e meus irmãos em suas melhores roupas para irem à missa. A visão daquele momento tão trivial para eles, mas tão significativo para mim quebrou a apatia na qual me encontrava e me deu forças para continuar.
Além do casal vinham duas crianças. Foi quando percebi que algo não estava certo.
— Mas éramos três nessa época - pensei contando mentalmente.
Disfarcei o embaraço, me aproximei do grupo e puxei assunto com meu pai.
— Bom dia, estão indo a igreja?
— Sim e o senhor não?
Meus pais sempre foram muito rigorosos em matéria de religião. Eu era um completo estranho e ele deve ter estranhado minha presença. Mesmo assim queria se certificar de que eu era um bom cristão.
— Vou claro. É que sou novo na vizinhança e não sei onde fica.
— Então venha conosco - disse mamãe com um sorriso encantador.
— Vocês formam uma bela família - disse tentando disfarçar a emoção.
— Esse é o Maneco e aquele o Tobias - minha mãe afagava a cabeça do meu irmão mais velho e apontava para meu irmão mais novo ao citar seus nomes.
Mas e eu? Porque não estava ali com eles?
— Pretendem ter mais filhos? - ao terminar a pergunta já me arrependera de tê-la feito ao ver os olhos marejados de lágrimas de minha mãe.
— O que houve? - perguntei constrangido.
— Perdemos nosso filho do meio há alguns meses - disse meu pai enquanto me arrastava pela manga do casaco. Continuou quase num sussurro:
— Foi muito estranho. Estávamos almoçando e ele simplesmente desabou sobre o prato. Ninguém conseguiu determinar a causa da morte.
Me esforçando ao máximo para conter a ansiedade continuei conversando com meu pai e descobri que o falecimento do segundo filho se dera na mesma data - e possivelmente na mesma hora - que eu transpusera o portal.
Ofereci meus sentimentos a todos e fui embora o mais depressa possível, tentando afastar o turbilhão de emoções que ameaçava transformar minha abalada sanidade em loucura.
* * *
A partir desse capítulo, a coisa começa a tomar contornos ainda mais estranhos.
ResponderExcluirPartindo agora pro derradeiro.