Visagem noturna
Esse causo é verídico e sucedido. Posso afirmar com certeza por que eu estava lá e testemunhei em primeira mão tudo que aqui se diz.
Antes de contar a estória é preciso dizer que tudo aconteceu no final da década de 80, do século passado. Nessa época eu morava numa área intermediária entre o urbano e o rural em Viamão, um município da grande Porto Alegre - que em área é maior que a capital, mas escassamente povoado, principalmente no interior. Também é importante que os leitores e amigos saibam que a Revolução Farroupilha foi uma guerra que durou dez anos (1835 a 1845) e que durante esse período tropas leais ao Império montaram acampamentos na região. Por aqui foram travados intensos combates entre os Farrapos e os Imperiais. Muito sangue foi derramado nos campos viamonenses com perdas significativas em ambos os lados. Marcos e cruzes de pedra permanecem de pé, como testemunhas silenciosas desses confrontos, honrando a memória dos que caíram no campo de batalha.
Dito isto, vamos ao causo.
Era junho e decidimos - minha companheira e eu - fazer uma festa de São João com tudo que se tem direito: bandeirinhas, pipocas, quentão, chimarrão e, óbvio, uma fogueira. Depois de viver anos em apartamento a perspectiva de ter um pátio só nosso justificava o desejo de assar batata-doce nas brasas, sob as estrelas.
Naquele ano o dia 24 de junho caiu num sábado, assim nossos convidados puderam vir e ficar até tarde, uma vez que não trabalhavam no dia seguinte.
Conforme a noite avançava, a lenha se convertia em brasa e o número de presentes ia se reduzindo, até sobrar apenas um casal de convidados. Lá pelas tantas a moça manifestou desejo de ir embora. Argumentei que era muito tarde e não havia transporte público naquele horário (eles tinham vindo de ônibus e não havia Uber naquela época), então seria melhor que passassem a noite ali em casa mesmo. Havia acomodações para todos.
Entretanto, essa minha amiga tinha um compromisso de família inadiável no domingo e não queria faltar.
— Sem problemas - disse eu - levo vocês de carro.
O carro nesse caso era um fusca tipo Fafá de Belém carinhosamente apelidado de Caramelomóvel devido a sua peculiar cor de caca de bebê.
Devia ser pouco antes da meia-noite quando saímos, eu e o casal, rumo ao bairro de Itapuã, também localizado em Viamão, onde morava a minha amiga.
A distância entre as duas casas era de aproximadamente 40 km, a serem percorridos numa noite escura, com longos trechos de estrada de chão batido, sem iluminação pública. Em outras palavras, uma aventura!
Conforme nos aproximávamos do destino a paisagem ia mudando de campo para litoral, pois Itapuã fica às margens do Lago Guaíba. Dos dois lados da estrada a paisagem era formada por extensas áreas planas, cobertas por vegetação rasteira, alguns capões de mato e uma neblina quase agarrada ao chão. Mais ao longe, à direita, recortado contra o céu noturno, nos acompanhava a silhueta das elevações que fizeram da região o lugar perfeito para os Farrapos organizarem suas emboscadas contra os Imperiais.
Aos poucos a neblina foi subindo, ficando cada vez mais densa, prejudicando sensivelmente a visibilidade. A luz dos faróis refletia e se dispersava nas gotículas de água, criando um belo efeito de luz difusa.
A essas alturas eu já havia diminuído consideravelmente a velocidade por questões de segurança. Foi quando ao longe, envolto pela névoa, avistamos uma mancha que parecia mover-se em direção a nós.
— Acho que é um caminhão com faróis apagados - disse o meu amigo.
Por via das dúvidas desviei para a direita para dar mais espaço e fui avançando lentamente, de olho naquela sombra que se aproximava igualmente devagar.
Quando nos aproximamos um do outro, a figura tornou-se mais clara e percebi que eram duas coisas distintas. Uma eu fiquei na dúvida sobre o quê poderia ser e a outra certamente era alguém montado a cavalo - o que não é de todo incomum no interior do Rio Grande do Sul, diga-se de passagem.
Estávamos os três fixados naquela aparição e eu parei o carro para não assustar a montaria. Com o motor do fusca silenciado pudemos então ouvir nitidamente o típico ranger de um eixo de carro de boi.
Passo a passo eles vieram tomando forma na imensidão da névoa e da noite. Era de fato um carro de boi, com duas enormes rodas de madeira, sendo puxado por um pesado animal atrelado a ele, e, ao seu lado, a modo de escolta, um cavaleiro. A carreta era conduzida por um homem, sentado sozinho no banco da frente. Na parte da carga, numa tábua ajeitada para servir de banco e forrada com pelegos, estavam duas jovens com longos vestidos e arrumadas como quem vai para uma festa - apesar do adiantado da hora. Tanto o cocheiro quanto o ginete vestiam uniforme militar da cor azul, no exato feitio daqueles utilizados pelo Exército Imperial Brasileiro que combatera os revoltosos na primeira metade do século XIX.
A aparição daquela visagem foi por si só impressionante e inesquecível. Entretanto o que mais me chamou a atenção foi a reação dos quatro viajantes. Simplesmente não tenho palavras para descrever a expressão que se destacava naqueles rostos quando passaram por nós. Se nós três estávamos intrigados em vê-los, eles pareciam completamente abismados, como se nunca tivessem visto um automóvel. E o guincho agudo do eixo de madeira tornava o clima ainda mais sobrenatural.
De dentro da cabine do fusca ficamos a olhá-los até serem engolidos pela névoa. Mesmo após desaparecerem, o rangido do eixo permaneceu no ar e foi sumindo aos poucos, como uma melancólica canção de despedida.
Ficamos por um bom tempo em silêncio, até que virei a chave para dar a partida no Caramelomóvel. Deixei meus amigos em casa e voltei pelo mesmo caminho. Ao retornar já não havia mais névoa, nem carreta, nem cavaleiro.
Tornei a ver o casal de amigos inúmeras vezes depois disso, mas jamais tocamos no assunto. Para todos os efeitos, nunca aconteceu.
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