Metrô
Era segunda-feira, primeiro dia de uma semana que prometia ser agitada. Lia estava atrasada. Havia saído cedo de casa em vão. Um acidente congestionara o trânsito e ela quase não conseguira chegar a estação do metrô que a levaria primeiro para o trabalho, depois para a faculdade e, finalmente, para casa. Ela mesma não presenciara o acontecido, mas ouvia das pessoas coisas do tipo:
— Que horror, como pode uma desgraça dessas?
— Ele estava fugindo da polícia e levou um tiro.
— Parece que o carro subiu na calçada e atropelou alguém.
— Uma tragédia!
Estava tão preocupada com o horário que nem percebeu quando passara pela roleta. Enquanto descia a escada em direção a plataforma ouviu um burburinho vindo de fora e virou o rosto para verificar a causa daquela agitação. Foi nesse momento que percebeu o jovem que estava ao seu lado. A princípio isso não deveria ser estranho, pois no horário de pique é comum várias pessoas descerem a escada ao mesmo tempo. O quê primeiro chamou a atenção de Lia foi a inexpressividade de seu rosto, a seguir o fato dele olhar para ela com grandes olhos vazios e por fim a maneira desengonçada como se movia. Por alguma razão ela teve a nítida impressão que ele a estava acompanhando propositalmente. Acelerou o passo e o rapaz também o fez. Já um pouco alarmada, ela evitava o olhar daquela estranha figura, toda vestida de preto, e pensava numa maneira de livrar-se do incomodo acompanhante.
— E sem máscara!
Pensou Lia, indignada com a falta de consideração social do rapaz nessa época de pandemia.
Chegaram juntos a plataforma e ela acelerou o passo, sempre de olho para ver se estava sendo seguida. Aliviada, constatou que o rapaz havia parado próximo a escada, embora continuasse a olhar em sua direção com o semblante apático. Ela achou melhor manter distância e continuou caminhando, agora um pouco mais devagar.
As pessoas foram chegando e ocupando o espaço que havia entre eles. Mesmo assim Lia não o perdia de vista. Ele era mais alto que a maioria e seus movimentos pouco naturais o destacavam ainda mais da multidão. Ele olhava fixamente para ela e não parecia ligar para o que acontecia a sua volta.
— Sujeito esquisito.
Nesse meio tempo encostou uma composição e as pessoas se dirigiram rapidamente para as portas dos vagões. Muitos desceram, todos embarcaram, menos Lia e o homem de preto. Lia havia decidido aguardar que o estranho embarcasse para só então seguir na próxima viagem. Não gostara do jeito dele e tinha medo que ele a abordasse no trem.
O fato dele não ter embarcado aguçou os sentidos de Lia, que agora olhava ostensivamente para aquela figura escura, que parecia mover-se como um boneco de pau.
Imersa nesses pensamentos, Lia não percebeu a chegada de outra composição.
Num piscar de olhos o rapaz já estava junto à faixa amarela, aguardando que a locomotiva parasse e as portas se abrissem.
Lia, por sua vez, recuou até encostar na parede, de modo a ficar próxima de um dos bancos existentes na estação. Num dos assentos desse banco estava sentada uma senhorinha que olhava para ela com vívido interesse.
Nesse momento abrem-se as portas dos vagões. Lia volta sua atenção para a plataforma e descobre que ela está vazia! Ao que parece, todos embarcaram, mas ninguém desceu.
Um pouco confusa, Lia reparte sua apreensão com a senhora:
— Que estranho. A essa hora a estação deveria estar apinhada de gente.
A senhora, que continua a olhar para ela, tem agora um terço em suas mãos.
Estranhamente o metrô se demora a partir, como se aguardasse uma ordem ou alguém.
Percebendo que Lia não sabe o quê fazer a senhora se levanta, a encara nos olhos, e diz serenamente, com uma firmeza que não admitia contestação:
— Você precisa embarcar nesse trem minha filha.
— Porque? Não é para onde eu quero ir.
— Por que não há mais nada para você aqui. Seu destino agora é outro. Embarque e vá em paz.
— Mas e aquele homem de preto? Ele já embarcou e acho que está me seguindo.
— Esqueça isso. Nada de mal vai lhe acontecer. Além disso, ele vai descer numa estação bem diferente da sua ...
Lia não fazia ideia de como a velha senhora poderia saber em qual estação cada passageiro iria descer. De qualquer forma aceitou o conselho e entrou no vagão que estava a sua frente, que imediatamente cerrou as portas e seguiu adiante.
Havia muitos lugares vagos, mesmo assim ela preferiu ficar de pé no corredor, próximo a porta. Se o homem de preto aparecesse ela saltaria na próxima parada e pediria socorro. Pelo menos esse era o plano.
Estranhamente o metrô ia recolhendo poucas pessoas no caminho, sem que alguém descesse. Cansada e um pouco entediada pela viagem que parecia mais longa que o normal, Lia começou a prestar atenção no circuito interno de TV.
— Que coisa deprimente. Ficam mostrando cenas de CTI's, pessoas entubadas, gente hospitalizada, crimes horríveis e acidentes ...
Lia interrompeu seus pensamentos ao ver as cenas de uma perseguição policial que estavam sendo exibidas na pequena tela presa a parede do vagão. A filmagem mostrava um carro em alta velocidade e terminava quando o motorista invadia uma calçada e depois batia em outro veículo, que estava parado. De acordo com o narrador, o acidente teria sido causado por um meliante em fuga, abatido a tiros pela polícia após atingir - e matar - uma jovem que passava pelo local.
Lia suspendeu a respiração ao ver sua foto - reproduzida a partir de sua carteira de identidade - e, ao lado dela, a do homem de preto. Ela era a vítima do atropelamento, ele a do confronto com os policiais.
A força do choque dessa revelação brutal teve a intensidade necessária para remover o véu que cobria a percepção de Lia num só golpe. Agora ela enxergava nos rostos dos passageiros as faces que a TV ia mostrando a cada notícia e tudo começou a fazer sentido. O circuito interno de televisão era apenas mais um serviço do pós-vida para orientar os recém desencarnados.
Gostei muito. Continue escrevendo. O texto flui deliciosamente bem.
ResponderExcluirMuito obrigado! São retornos como esse que dão força para continuar escrevendo. Semana que vem tem mais, não perca!
ExcluirParabéns brother! Mais uma história instigante!
ResponderExcluirMuito obrigado Alechandre Joseh!!
ExcluirMe identifiquei com parte da história! Parabéns
ResponderExcluirQualquer semelhança com fatos e pessoas pode não ser mera coincidência ...
ExcluirEssa chega a dar calafrios. A ideia do vagão com as imagens é bem original.
ResponderExcluirJá é um dos meus contos favoritos no MM.
Sempre que ando de metrô evito olhar para essas telas. Sabe-se lá o que estão passando ...
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