A Porta Verde - parte II

Segunda parte do causo. Aconselhamos a ler desde o começo (clique aqui!)

Viajando e fazendo amigos


Não há como descrever a sensação de quem subitamente percebe que foi jogado vinte anos para trás no tempo. Esmagado pelo peso da constatação, arrastei meu corpo até a parede mais próxima e me deixei ficar ali, tentando processar os últimos acontecimentos.

Aos poucos fui me acalmando e comecei a pensar com mais clareza. Não precisei gastar muitos neurônios para perceber que provavelmente a passagem ocorrera ao entrar na cafeteria.

— Maldita porta verde - falei mais alto do que gostaria e alguns passantes me olharam com cara de poucos amigos.

Voltei sobre meus passos e parei no topo da escadaria. Na minha mente brotavam com incrível rapidez toda sorte de dúvidas sobre os últimos acontecimentos: se eu cruzasse a porta no sentido contrário seria devolvido a minha linha temporal? Mas para poder fazer isso eu teria que entrar novamente. Nesse caso voltaria outros vinte anos? E porque nada aconteceu quando eu saí pela primeira vez da cafeteria?

Nisso o rapaz que me atendera apareceu no umbral e acenou, pedindo que me aproximasse.

— Pode vir, não há mais perigo - disse ele.

— Como assim? - perguntei quase ofendido. 

— Então você sabe o que aconteceu?

— Sente-se, acalme-se e tome outro café, por conta da casa como o primeiro.

— Mas eu paguei pelo primeiro - balbuciei atônito.

— Com dinheiro da sua época - respondeu rindo, enquanto me alcançava as notas que eu havia deixado sob o pires momentos antes, e arrematou:

— Vai demorar até que tenham valor ... Assim que as vi percebi que você não era daqui, desse tempo.

— Tentei lhe chamar, mas você não respondeu. 

Enquanto tomava minha segunda dose de café, ele contava uma história que levei muito tempo para digerir.

Pelo que entendi, os relatos sobre o estranho fenômeno começaram na segunda metade da década de 30 do século passado. Quando o prédio estava em construção circularam boatos de estranhos desaparecimentos e de aparições de almas enlouquecidas. Até um padre veio abençoar o canteiro de obras numa tentativa de acalmar os ânimos dos operários.

O mais provável é que o portal existisse desde tempos imemoriais, permanecendo fora do alcance das pessoas devido ao desnível do terreno (a entrada da Rua dos Andradas fica num patamar bem mais elevado que a da praça). Ficara isolado, suspenso no ar, até o dia em que o piso da galeria fora construído, deixando-o acidentalmente ao alcance dos frequentadores do local.

Por volta de 1936, seu avô - que era sapateiro - instalara uma oficina onde agora era a cafeteria. E em 1941 ele chegara para trabalhar e simplesmente desaparecera. 

Com a ausência do avô, seu filho - pai do meu novo amigo - decidira instalar ali um café e levara Anastácio - o atendente - para trabalhar com ele. Por vários anos tudo correu bem e não houve notícia de novos incidentes. Entretanto, por diversas vezes Anastácio percebera, através do vão da porta, uma súbita transformação da vitrine da loja que ficava em frente. Mas era algo tão sutil, tão fugaz, que ele preferiu acreditar em alucinações. Para evitar ser tachado de louco, jamais contou sua descoberta para alguém - nem mesmo para o pai.

Até que um dia algo inexplicável e inesquecível aconteceu. Estavam os dois trabalhando na loja quando o pai precisara sair. Anastácio estava olhando ele se afastar em direção à porta quando percebeu que a vitrine da loja do outro lado da passagem estava diferente. Ainda tentou alertá-lo para que parasse, mas já era tarde. Ao passar pela porta o corredor voltara a ser o que era e o pai simplesmente sumira sem deixar vestígio.

Desde então Anastácio ficara atento à porta, vendo o fenômeno se repetir, na esperança de entender seu funcionamento para tentar resgatar o pai. Por isso já imaginara o que havia acontecido comigo quando entrei pela primeira vez.

— É totalmente aleatório - disse ele.

— Já vi acontecer inúmeras vezes, mas sempre muito rápido. Dessa vez foi diferente. A passagem ficou aberta por mais tempo e você conseguiu passar. Apenas um passo aqui dentro e já não havia mais volta. 

— Por isso não avisei. Não queria assustá-lo.

Ficamos algum tempo em silêncio, cada um assimilando a realidade a sua maneira. Por fim levantei e fiz menção de sair.

— Aonde vai? - perguntou Anastácio.

— Não faço ideia - respondi com toda sinceridade.

— Vou fechar daqui há pouco - continuou ele - se você quiser, pode dormir no quartinho dos fundos, pelo menos até achar um lugar melhor.

Naquela noite, enquanto depositava a cabeça no meu casaco que fazia as vezes de travesseiro, olhei para aquele teto desconhecido e desejei nunca ter nascido. Mal sabia eu o quanto havia de profético naquele desejo. 

* * *

Causo em quatro partes - para ler a primeira parte clique aqui
A terceira parte foi ao ar no dia 15 de março. Para vê-la, clique aqui.

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