A Porta Verde - parte I

Uma viagem sem volta


Você conhece a Galeria Chaves, em Porto Alegre? Quem ainda não visitou não sabe o quê está perdendo e quem passa por lá é bom prestar bastante atenção à minha história, para que não seja vítima da mesma presepada que o destino achou por bem me preparar.

Pois bem, essa galeria é uma joia da arquitetura neoclássica e está localizada no coração da cidade. Ela faz a ligação da Rua da Praia com a Praça XV de Novembro, dois pontos vitais na geografia afetiva da capital gaúcha, sendo ela mesma um ponto de atração turística muito frequentado.

Durante os anos 70 eu trabalhava num escritório na Av. Otávio Rocha - próximo dali - e tinha por hábito tomar um expresso depois do almoço. Cada dia num lugar diferente. Tinha até um caderninho onde anotava o nome do estabelecimento, se havia sido bem atendido, qualidade do café, essas coisas. Era uma fuga da rotina burocrática do trabalho e uma forma de fazer exercício, pois era comum ter de caminhar um bom pedaço até encontrar uma cafeteria que ainda não tivesse frequentado.

O fato, digamos assim, que eu quero registrar como um aviso para os incautos, se deu num dia frio e chuvoso de agosto - se não me falha a memória. Vinha eu apressado pela Rua da Praia, molhado pela garoa fina que encharcava a cidade, quando resolvi cortar caminho pela Galeria Chaves. Parei assim que passei pelo pórtico, sob o olhar zombeteiro de um manequim com calças "boca de sino" e camisa aberta até o umbigo.

— Será que alguém usa isso? - pensei desiludido com o mau gosto dos estilistas ditos contemporâneos.

Sacudi a água da gabardine e fui caminhando lentamente pelo imenso corredor. Ao chegar na escada que dá acesso ao nível da Praça XV parei intrigado ao avistar, a esquerda de quem vai, ao fundo, uma porta verde de madeira. Estava semiaberta e de seu interior era possível sentir o indisfarçável aroma de um delicioso café.  

Passara por ali miles de vezes e não lembrava de ter visto a lojinha ao lado da escadaria.

— Como posso não ter notado isso antes? - murmurei enquanto ia em direção à porta.

Entrei sem hesitar. Era uma pequena cafeteria, cujo interior aconchegante estava muito bem decorado com móveis de época. Ao menos foi o que me pareceu no momento. 

O atendente me olhou de maneira estranha, como se nunca tivesse visto alguém de gabardine molhada, e perguntou o que eu queria.

— Um expresso e o jornal do dia - respondi distraidamente.

— O café já está saindo e o jornal o senhor pode pegar naquela prateleira - respondeu ele apontando para uma parede no fundo da sala.

Estávamos sozinhos - o que era estranho para aquele horário. Peguei o jornal e sentei numa banqueta alta, ao lado do balcão.

Estava admirando o mobiliário antigo quando o rapaz colocou a xícara na minha frente e se retirou.

Ia levar a xícara aos lábios quando meus olhos caíram sobre a primeira página do jornal. Era um exemplar do Correio do Povo, que anunciava em letras garrafais uma tragédia qualquer. Mas o quê realmente chamou minha atenção foi a data. A edição era de 1951.

— Como está bem conservado - pensei - tem cara e cheiro de jornal novo!

Tomei o café e deixei o dinheiro sob o pires. Já havia descido as escadas e ia saindo pelo outro lado da galeria quando ouvi o atendente da cafeteria me chamar e falar qualquer coisa sobre o pagamento.

— Esse cara não deve ter visto o dinheiro que deixei - resmunguei enquanto fechava o casaco e deixava a galeria em direção à praça.

Como estava com pressa adiantei o passo e acertei o rumo para ir direto ao prédio onde ficava o escritório. Enquanto estava no interior da galeria, que é muito antiga, tudo parecia normal. Entretanto, ao ganhar a rua senti uma forte sensação de estranhamento. Os passantes me olhavam furtivamente, virando o rosto quando eu fazia menção de perguntar qual era o problema. Aliás, quando eu prestei atenção nas pessoas a minha volta eu também comecei a olhá-las com indisfarçável espanto. Seria impressão minha ou todos estavam a caráter para contracenar num filme de época? E ao passar dos pedestres para o cenário a minha volta a surpresa foi ainda maior.

Muitos prédios eram os mesmos da década de 70, mas estavam novos! Os poucos carros que passavam eram modelos antigos, de deixar qualquer colecionador babando. E a estação do bonde na praça estava cheia de gente esperando para embarcar na condução. O bonde estava funcionando!

— O jornal! - gritei em pânico ao perceber a situação na qual me encontrava. 

Naquele instante me dei conta que ele parecia novo porque era de fato a edição do dia. Ao cruzar os marcos daquela maldita porta eu voltara vinte anos no tempo.

* * *

Causo em quatro partes - a segunda foi ao ar no dia 12 de março (clique aqui para ler).

Comentários

  1. Comecei a ler esse porque o título me chamou atenção.
    É uma história bem curiosa até esse final da parte 1.
    Vou continuar agora a parte 2.

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