A Porta Verde - parte IV

Quarta e última parte do causo. Aconselhamos a ler desde o começo (clique aqui!)


Uma difícil decisão

No dia seguinte, já de volta à Porto Alegre, esperei ansiosamente a chegada de Anastácio na cafeteria para lhe contar que meu eu mais jovem morrera assim que eu cruzara o portal. 

Precisava com urgência compartilhar o enigma que me atormentava desde a revelação feita por meu pai. Mas com quem? Além de Anastácio havia mais ninguém. Se eu ousasse contar minha história para outros no mínimo seria tachado de louco e internado no Hospício São Pedro[1].

Assim que ele chegou pedi que sentasse e fiz meu relato da melhor forma possível. Anastácio ouviu entre incrédulo e abismado, mas procurou manter a calma. Depois de algum tempo em silêncio, levantou-se e começou a caminhar em círculos. Por fim também me levantei com a intenção de coar um café - talvez a cafeína ajudasse a clarear os pensamentos. 

A presença de alguém que podia entender como me sentia trouxe a serenidade e a coragem necessárias para externar a pergunta para a qual eu ainda não tinha resposta.

— Se meu eu mais jovem morreu naquele dia, como posso ainda estar vivo? - perguntei enquanto me preparava para ligar a máquina de expressos.

Infelizmente a situação era grave demais para um simples café. Sem responder, Anastácio sinalizou com a mão para que parasse. Ato contínuo foi então chamar um chileno que “morava” há alguns anos debaixo do balcão. Era um cabernet encorpado, de boa safra, cujo espírito nos guiou até chegarmos a conclusão de que eu não viajara apenas no tempo. 

— Esse portal é interdimensional. Não há outra explicação!

Pelo calma com que Anastácio proferiu essas palavras entre um gole e outro inferi que a ideia já havia passeado por sua cabeça. 

— Ele te trouxe para uma realidade paralela e não para o passado, como supúnhamos até então.

— O engano se deu porque essa realidade deve estar defasada no tempo em relação a tua.

Partindo do princípio que a teoria de Anastácio tivesse algum fundamento - afinal eram só conjecturas - tudo indicava que minha presença nesse universo afetara o paralelismo entre as duas realidades.

Com certeza não era a primeira vez que ocorria esse tipo de conflito na história deste universo. Isso explicaria tanto a morte súbita do meu eu mais jovem quanto a série de pequenas incongruências que já havia notado - como a inexistência do "terrível" no cardápio do restaurante, por exemplo. Em outras palavras, personalidades paralelas não poderiam coexistir na mesma realidade sem causar algum tipo de desequilíbrio. O desaparecimento do "duplo" nativo gerava as distorções que havia notado. Se o eliminado fosse o "duplo" visitante nada mudaria, visto que sua presença ali nada mais seria que uma aberração.  

Novas perguntas iam surgindo conforme a garrafa ia sendo esvaziada: se eu havia migrado de um universo para outro, quantos mais universos poderiam existir? Haveriam outros portais? O portal que conhecíamos ligava sempre os mesmos dois universos? Seria ele uma via de mão dupla?

Estas questões sem resposta me custaram noites e noites de vigília, sem que pudesse chegar a uma conclusão satisfatória.

O passar dos anos trouxe a rotina, mas não a resignação. Continuei trabalhando na cafeteria e construí uma vida nova graças ao apoio de Anastácio. Apesar de bem adaptado a essa realidade que agora é a minha, não constitui família aqui para não ter a quem me apegar, uma vez que sempre mantive acesa a chama da esperança de voltar. Anastácio é um bom amigo e sei que apoia minhas decisões. E o mais importante: se a simetria entre os universos é real, então o portal deverá se abrir novamente no dia e hora em que - maldição - resolvi passar pela porta verde.

* * *

Nada detém a marcha inexorável do tempo e o dia finalmente chegou. Estou na cafeteria, sentado na mesa em frente à porta, aguardando ansiosamente a mudança da vitrine do outro lado para dar início a uma nova viagem rumo ao desconhecido.

Anastácio está ao meu lado, me olhando de soslaio. Sei que está preocupado, mas estamos num ponto sem retorno. Planejamos por muito tempo o que faríamos quando a hora chegasse e não há porque voltar atrás agora.

Somos os únicos que conhecem o fenômeno - pelo menos até onde sabemos. Não há como prever se haverá outra oportunidade, então decidimos explorar, e mapear se possível, sua ocorrência em quantos universos conseguirmos alcançar. Talvez com as informações coletadas possamos estabelecer uma forma de viajar com segurança, indo e voltando entre as realidades como quem passa de um cômodo a outro.

Ficou decidido que essa missão é para somente um de nós, por isso vou atravessar o portal sozinho. É uma empreitada difícil e perigosa. Nada garante que haverá sucesso, mas tenho muito a ganhar se conseguir voltar e bem pouco a perder se não conseguir. Além disso, Anastácio tem esperanças de que eu possa ao menos contatar o pai dele para saber se está bem.

O portal deve se abrir a qualquer momento. Assim que cruzar a porta verde perderei o contato com tudo e todos que conheci ao longo desses vinte anos. Não verei mais esse Anastácio, mas bolamos um jeito para nos comunicarmos que de tão maluco é provável que funcione. Em todo universo que eu passar deixarei o relato de minhas aventuras e, acreditamos, o Anastácio de cada universo irá perceber ao que estou me referindo. Não há garantias de sucesso, mas agora é tarde para novas ideias.

* * *

Se você está lendo isso, Anastácio, saiba que encontrei seu pai e ele precisa lhe falar!


Fim do causo nesse universo


[1] Hospício São Pedro é o nome popular do Hospital Psiquiátrico São Pedro, renomada instituição dedicada ao tratamento da saúde mental, localizada na cidade de Porto Alegre, Rio Grande do Sul.

Comentários

  1. Muito criativo mesmo. Me lembrou o filme "De Volta para o Futuro".
    Me senti atraído pelo título e fui lendo curioso pra saber o final.
    Gosto dos diálogos e arrisco dizer que poderia haver mais, principalmente no último capítulo.
    Já é minha favorita do Memento Mori.

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    Respostas
    1. Muito obrigado F C. Souza. Essa é uma das minhas preferidas também! Fique a vontade para dar pitacos, pois eles são importantes retornos que sinalizam se o texto está atingindo o leitor como o esperado, ou não.

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