O estranho caso da velha que explodiu

O Amazonas é lugar de vastas florestas e grandes mistérios. Já estivemos por lá algumas vezes e sempre voltamos com histórias para contar. 

A de hoje já foi publicada noutro blog que administro, mas é tão estapafúrdia que merece ser contada novamente. Prometo aumentar um ponto e continuar aumentando sempre que repetir o conto.

Deixemos os rodeios de lado para irmos direto ao causo, recolhido numa mesa de bar entre um copo de cerveja e meia dúzia de outros.

Dizia o sujeito do outro lado da mesa que há muito tempo viveu lá pros lados de Varre Vento o Caboclo Chicotada. De origem incerta - alguns dizem que ele era filho de boto e outros de cobra - o certo é que era um mateiro valente, hábil no uso do tessada (facão), versado nas artes da mandinga e capaz de enfrentar qualquer misura (assombração) sem pestanejar.

Certa feita estava o Caboclo Chicotada em Manaus, negociando uma partida de pirarucu salgado que trouxera para vender na capital, quando soube que uma velha senhora, sua conterrânea, havia partido desta para a melhor enquanto visitava parentes na cidade.

Consternado pela notícia foi apresentar seus respeitos aos poucos familiares reunidos num pequeno velódromo (lugar onde se velam os mortos, velório). Entre os suspiros das mulheres e o murmúrio dos homens, ficou sabendo que nenhum barqueiro queria levar o corpo da defunta para ser sepultado em sua aldeia, como manda a tradição. Supersticiosos ao extremo, alegavam ser mau agouro transportar um caixão em seus barcos pois isso atrairia má sorte. Foi aí que os parentes da finada avozinha resolveram apelar ao Chicotada, confiantes que com sua coragem e senso de honra teria peito para completar essa macabra empreitada.

Sensível ao sofrimento daquela pobre gente e alheio ao medo que costuma assolar aqueles que temem o sobrenatural, Chicotada não se fez de rogado e aceitou a missão. Assim, ao raiar do outro dia, um pequeno cortejo deixava o velódromo rumo a uma pequena praia no Rio Negro, onde Chicotada e outros quatro caboclos aguardavam para dar início ao transporte daquela carga inusitada.


Feitas as despedidas, lá se foram os canoeiros remando debaixo de um sol forte rumo ao Campo Santo de Varre Vento. Na Amazônia tudo é grande, principalmente as distâncias, por isso não é de estranhar que Chicotada e seus amigos levaram dois dias para alcançar o seu destino.

Como o nível do rio estava baixo devido a época do ano, ao chegarem em Varre Vento os remadores tiveram dificuldade em localizar um ponto de atracação que facilitasse o transporte do esquife. Por isso, decidiram desembarcar primeiro os remadores para procurarem o melhor caminho rumo ao Cemitério. Para evitar qualquer imprevisto, deixaram Chicotada tomando conta da canoa com a defunta e se embrenharam mata a dentro.

Cansado pelo tanto que havia remado para chegar até ali e afogueado pelo calor, o caboclo começou a sentir um aperto de fome a subir pelas entranhas. Conhecedor dos segredos da mata, não tardou a localizar um ingazeiro carregado de frutas que estendia seus ramos sobre a água. Sem perda de tempo remou mais alguns metros e começou a se fartar com aquela delícia que a mãe natureza oferecia.

Entretido em matar quem estava lhe matando, mal percebeu quando um assobio agudo cortou o silêncio que reinava no local. Lá se foi um ingá goela adentro e mais outro e outro e enfim dezenas de ingás já haviam se passado quando o assobio se fez presente, desta vez mais forte:

 Fiuuuuuuuu ...

Agora Caboclo Chicotada escutara bem escutado. A mão direita segurava mais um ingá rumo a boca, mas estava parada, suspenso o movimento no meio do caminho. Que diacho de assobio era aquele? Em toda sua vida, Chicotada nunca escutara nada igual. Bicho não era. Misura também não ...

 Fiuuuuuuuuuu ...

Desta vez o barulho foi mais alto. Chicotada levou a mão ao tessada e fez menção de levantar, mas um poderoso estrondo o fez cair na água, junto com a tampa do caixão!!

Ainda aturdido pela violência do choque, Chicotada segurou numa das alças da tampa do caixão e se deixou flutuar enquanto o banzeiro (agitação) provocado pela explosão se espalhava pelo igarapé. Ao sentir o pitiú (cheiro forte) que empesteava o ar compreendeu logo o que havia ocorrido. A pobre senhora passara desta para a melhor há mais de três dias e o calor que haviam enfrentado na viagem devia ter apressado a decomposição. Como o caixão estava bem fechado, os gases formados durante este processo foram se acumulando até que a madeira não pode mais suportar a pressão.

O barulho foi tão forte que os companheiros voltaram correndo assustados, a tempo de encontrar o Caboclo Chicotada tentando voltar para dentro da canoa enquanto recitava seu vasto repertório de impropérios e palavrões que fariam corar até mesmo um frade de pedra!!

Fechado o caixão do jeito que foi possível, a comitiva de remadores seguiu rumo a última morada daquela pobre senhora que hoje é mais lembrada pelas circunstâncias de seu enterro do que pelas benfeitorias feitas em vida.

Quanto ao Caboclo Chicotada, contam que seguiu rio acima em busca do portal de acesso ao povo que vive no centro da terra. Mas isto já é uma outra história ...

In memoriam

Dedico esse texto à memória de Tia Consa, que ao contrário da personagem da história, se foi como num sopro. Descanse em paz.

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