Lei da Selva


Inverno no Amazonas é sinônimo de chuva. E daquela feita parecia que a floresta seria alagada definitivamente, tal a quantidade de água que despencava do céu há dias. Não por acaso Firmino, um caboclo acostumado aos humores do clima amazônico, morava numa casa flutuante. Era sua forma de lidar com as constantes oscilações do nível do rio. Pressentindo a tempestade, buscara abrigo no igarapé onde se encontrava, mas até ele, que sempre fora calmo, agora se agitava num banzeiro medonho, mexido pelo peso dos pingos que despencavam céleres, se fundiam à massa líquida e o faziam aumentar perigosamente de volume. 

Sentado em sua varanda, tecendo uma rede forte de malha larga, Firmino deixava as mãos trabalharem por conta própria para assuntar a paisagem em busca de algo que espantasse o tédio daquele trabalho repetitivo. Estava nessa ocupação há horas, sabendo que dificilmente algo surgiria assim do nada, naquelas condições.

Contrariando suas certezas, lá pelas tantas avistou alguém remando contra a corrente, lenta e compassadamente. Como abrigo contra os açoites da chuvarada, tinha apenas a copa das árvores já alcançadas pela cheia, um velho chapéu de palha e a roupa encharcada. Na cintura, o tessada - ou facão -  completava a indumentária simples daquela figura que se recusava a sucumbir ao poder da intempérie.

Ao passar pela casa flutuante, atada a um tronco da floresta alagada, levantou displicentemente o chapéu a modo de saudação. Firmino acenou de volta, apertando os olhos na tentativa de reconhecer o canoeiro que se distanciava a cada remada. Sua curiosidade era plenamente justificada. Afinal, que caboclo em sã consciência se aventuraria naquele casco frágil, navegando rio acima? Só mesmo alguém muito habilidoso, destemido, louco ou desesperado para seguir viagem num dia ruim como aquele.

— Por certo que é o Barbudo - disse a esposa de Firmino, que viera conferir o que se passava.

— É ele, não há dúvida.

Barbudo era conhecido em toda região. Muitos o procuravam em busca de alívio para suas dores e sofrimentos. Seu conhecimento de ervas, aliado a sua sagacidade para detectar a causa dos males que afligiam as almas que lhe pediam auxílio, já salvara muita gente da morte certa - e até de coisa pior.

Por não ter residência fixa, era comum vê-lo assim, vagando de um lado para outro em busca de um canto onde pudesse pendurar sua rede. Mas não hoje. A razão que o levava a navegar tão perigosamente era outra e ele se afastava o mais possível de todos porque sabia que ninguém entenderia os motivos pelos quais iria fazer o que tinha de fazer.

O que o motivava naquela tarde aguacenta era a fome.

Não uma fome qualquer. Era imensa, como se um buraco se abrisse no universo para tudo engolir e esse universo fosse o seu estômago. Estava em busca de algo grande o suficiente para saciar essa gana que não dava mostras, assim como a chuva, de arrefecer.

Barbudo vinha remando desde cedo. Já passara por quilômetros de mata sem vislumbrar uma caça digna de si. Até os jacarés, tão abundantes, pareciam pressentir suas intenções e haviam desaparecido.

Foi quando ele avistou uma porção de terra mais elevada e teve a intenção de tentar a sorte caminhando. Para chegar lá, precisava passar por um apertado labirinto formado pelas árvores semisubmersas. Infelizmente o emaranhado de galhos e raízes abaixo de sua canoa escondia uma formidável sucuri, que, como ele, padecia com a escassez de caça trazida pelo mau tempo.

Sorrateira, ela aguardou o momento certo para saltar sobre o incauto e, quase que instantaneamente, envolvê-lo num abraço mortal.

Barbudo era filho da floresta e estava mais que acostumado a lidar com inconvenientes desse porte. Entretanto, dessa vez, a sorte parecia favorecer a natureza. A cobra o imobilizara de tal maneira que prendera seu braço esquerdo junto com o tessada. Desarmado e aturdido pela fúria do animal, a ele só restou esticar o braço que ainda estava livre e agarrar firmemente um galho próximo. Tal manobra impediu que a serpente completasse seu plano sinistro: levar Barbudo com canoa e tudo para baixo, de modo a afogá-lo.

O caboclo era forte, mas a sucuri ainda mais. Logo ficou claro que só havia um final possível para esse cabo de guerra e o vencedor não seria ele. Firmemente ancorada em alguma raiz submersa, ela tinha domínio completo da situação. Enquanto puxava, ia constringindo sem dar tréguas o corpo de Barbudo, que já não conseguia respirar direito.

Por ser um ente da mata, Barbudo hesitava em lançar mão do único recurso que poderia salvá-lo. Aquela sucuri atendia ao chamado do instinto. Como ele, precisava matar para comer. Essa era a lei da selva e nem ele estava acima dela. Apesar da angústia e da aflição que sentia, parecia errado atentar contra a vida de um semelhante que o atacava por pura necessidade.

Somente quando suas costelas gemeram, prestes a quebrar, Barbudo tomou a derradeira decisão. Revirou os olhos e recitou em silêncio uma prece que ouvidos humanos não podem escutar. Em instantes, era o seu corpo - virado em cobra grande - que se enroscava no da oponente. Barbudo era um Encantado.

Cego pelo calor da luta, Barbudo fez o que toda cobra grande faz com aqueles que ousam lhe afrontar: estrangulou a sucuri até esmigalhar todos os seus ossos. Constatada a morte, arrastou seu corpo para as profundezas e a engoliu com inusitado prazer.

Dias depois, ainda sentado em sua varanda, Firmino avistou a canoa que levava Barbudo rio abaixo. Ao ver que o amigo lhe acenava efusivamente, retribuiu o cumprimento e comentou com a esposa, que se achegara para também saudar o passante:

— Donde será que esse cristão tira tanta energia?

Comentários

  1. Personagens bem curiosos, principalmente Barbudo.
    Também gostei dessa ambientação chuvosa, da descrição do Amazonas.
    Pra mim é como se fosse outro mundo, já que eu moro no Recife, do outro lado do mapa.

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    Respostas
    1. Tive oportunidade de viver, e conviver, um tempo com o clima do Amazonas e posso garantir que a descrição dessa chuva é baseada em fatos reais! Encantado é uma categoria dentre os entes fantásticos que habitam o imaginário da região. Ouvi muitas histórias sobre eles, que hoje procuro reproduzir nas aventuras do Barbudo, que aliás é um dos meus personagens amazônicos preferidos!!

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  2. O maior come o menor, é a lei da natureza!

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