Seu Olavo


Meu sogro era uma figura ímpar. Amazonense criado solto na imensidão da floresta, acabou aprisionado na cidade grande, onde enraizou-se para constituir família, sem nunca esquecer sua origem e seu passado. Falava com paixão das aventuras mirabolantes - jurava serem verdadeiras! - vividas antes de abandonar o torrão natal. Chamava-se Olavo e transcrevo da maneira mais fiel possível este relato que, jurava ele, aconteceu tal e qual está dito.

Desde cedo Olavo levava uma existência solitária, envolto pelo ambiente selvagem que o circundava. Órfão de mãe, vivia com o pai na casa dos avós. Cresceu sob os cuidados de uma tia, afamada benzedeira, com quem aprendeu o que sabia a respeito das artes do sobrenatural. Talvez sob influência dela ou predisposição inata, desenvolveu a capacidade de ver e sentir coisas que aos demais passavam desapercebidas, uma habilidade que o livrou de várias agruras ao longo da vida e o meteu em outros tantos apuros.

Certa feita, ainda meninote, um enorme sapo verruguento veio sorrateiramente postar-se a sua frente no mais absoluto silêncio. Olavo estava sentado no último degrau da escada de madeira que dava acesso ao alpendre da casa onde morava e podia facilmente dar uma pernada para afugentar aquele bicho nojento. Contudo, o olhar do animal revelava uma sensação de enorme sofrimento e suplicava ajuda. Comovido, segurou-o com cuidado para examiná-lo de perto. Constatou que a boca estava costurada com uma linha fina, porém resistente. Se a entrada estava fechada a saída também devia estar obstruída, pensou, e, de fato, o orifício apresentava idêntica sutura.

Olavo tinha consciência que isso era obra de mandinga braba. Sabia que interferir no trabalho de outra pessoa acarretaria graves consequências. Em contrapartida, não podia deixar o bichinho sofrendo daquele jeito. Tomou da faca que sempre trazia consigo e cortou os lios.

Sentindo-se livre das amarras, o sapo cuspiu um pedaço de papel babado no qual se destacavam alguns traços em vermelho e tratou de afastar-se o mais rapidamente possível. Vencendo a repulsa, Olavo pegou o manuscrito, desdobrou-o e descobriu tratar-se de um nome feminino. O mesmo nome de sua outra tia, a que vivia com o marido alguns quilômetros rio acima.

Enquanto tentava assimilar o impacto daquela descoberta macabra, um odor acre penetrou suas narinas, afastando-o de seus pensamentos. Sem que pudesse dizer de onde, viu surgir uma linda morena vestida com um manto que mal lhe cobria as curvas voluptuosas. Ela ondulou suavemente em sua direção, deixando transparecer em seus olhos a fúria que a consumia internamente.

Meu sogro nunca vira nada igual. Naquela época ainda não tivera contato com divindades afro-brasileiras, razão pela qual teve dificuldade em identificá-la. As evidências sugerem tratar-se de uma Pomba Gira. Seja como for, aquele Exu revestido de formosura era maldade pura. Certamente fora a ela que invocaram com o despacho que ele desfizera. Apavorado, permaneceu sentadinho no degrau da escada, rezando para que a tia benzedeira surgisse e o livra-se daquela enrascada, o que não aconteceu. Depois de alguns intermináveis minutos, a entidade falou com voz suave e envolvente:

 Não devias ter feito isso. Por tua interferência nos meus assuntos irás te arrepender amargamente.

Feito o anúncio, a mulher simplesmente desapareceu. Olavo até suspirou aliviado, confiante que nada de tão grave assim iria acontecer. Ledo engano. A partir desse momento, a cada hora grande, passou a ouvir o lúgubre repicar de sinos - fato desconcertante, se levarmos em conta que ele escutara esse tipo de som uma única vez em Manaus, na missa de sétimo dia de um parente distante.

Para quem não sabe, é bom esclarecer que o ato de costurar a boca de um sapo objetiva condenar o desafeto a uma morte lenta e agonizante, em paralelo ao definhar a que está condenado o animal, impossibilitado de se alimentar e evacuar. Anos mais tarde soube-se que o arranjo fora encomendado pela amante do marido da outra tia, mas essa história será contada oportunamente. E "hora grande" são as horas cheias: 06:00, 12:00, 18:00 e 24:00.

A última badalada de cada noite anunciava a chegada da bela morena. Agora o olhar de fúria convertera-se em meiguice exagerada. O tom de voz suave, quase carinhoso, destinava-se a subjugar a vontade do pequeno Olavo aos desejos daquele ser das trevas. Ficava a seu lado até despontar a aurora, discorrendo sobre as maravilhas do reino que governava, localizado no fundo das águas barrentas do rio Amazonas. Descrevia as riquezas de seu castelo, os banquetes, a música e a alegria perene daqueles que lá viviam. Felizmente ele ouvia essas lorotas e compreendia bem seu significado oculto. A feiticeira tentava convencê-lo a entrar no rio para morrer afogado!

Olavo começou a ficar agitado. Não conciliava o sono, gritava desesperado no meio da noite, alarmando as pessoas da casa. Deixou de frequentar a escola. Parou de cometer as estripulias típicas de um menino de sua idade. Perdeu a fome. Emagreceu visivelmente. Desistira de tentar explicar os motivos dessas transformações. Sabia ser inútil. Ninguém acreditava nele.

Ninguém é força de expressão. A tia benzedeira percebeu que algo - ou alguém - atormentava o sobrinho. Só não podia imaginar o tamanho da encrenca na qual se metera. Convenceu o irmão que uma mudança de ares poderia ser benéfica. Assim, o embarcaram em uma canoa e o deixaram aos cuidados da outra tia, aquela cujo nome estava na origem do problema.

Obviamente a manobra fracassou. Entidades não dependem de GPS para localizar suas presas. Elas estão em sintonia com a energia vital emanada pelos seres vivos, bastando seguir sua trilha para encontrá-los. Na primeira noite da mudança, a aparição surgiu na hora costumeira, sorridente, melíflua. Já não falava mais do castelo. Preferia evocar visões aterradoras, converter sonhos em pesadelos, atormentar a alma da criança até que ela explodisse em berros lancinantes que cortavam a madrugada.

A índole do tal marido deixava muito a desejar. Logo a pouca paciência que dizia ter esgotou-se e começou a descontar no garoto. Inicialmente de forma discreta, para não levantar suspeitas. Posteriormente, com a permanência dos escândalos noturnos, os cascudos ganharam força. Numa ocasião em que dormiu particularmente mal, aplicou um corretivo mais pesado. Naquela noite a visagem encontrou Olavo prostrado na rede, coberto pelas marcas da sova que levara. Profundamente irritada pelo que fizeram a uma vítima que considerava ser exclusividade sua, ela prometeu que os dois teriam o que mereciam:

 Ele por ter abusado da força, ela por permitir que isso acontecesse.

A manhã do dia seguinte ainda não terminara quando o casal iniciou uma discussão por um dá-cá-aquela-palha. Das palavras duras partiram incontinente para a ação. Num gesto rápido o marido sacou a faca da bainha e armou a estocada. Atenta a movimentação, a esposa catou o que estava ao alcance e arremessou na direção do oponente. Para infortúnio dele tratava-se da machadinha de rachar lenha para o fogão. Graças a imprecisão do arremesso, a ferramenta atingiu sua cabeça com o lado oposto ao fio, deixando-o atordoado. Refeitos do susto, ambos concordaram que era melhor livrar-se daquela peste que os estava enlouquecendo. Após o almoço, desceram o rio remando sem proferir palavra. Despejaram o pobre Olavo na prainha que servia de embarcadouro e partiram sem dar satisfações ao restante da família.

Já era sabido que a mudança de local não alterava os eventos que se desenrolavam a partir da meia-noite. O menino continuava assombrado, acordando a todos com seus gritos de puro pavor. Aflita com o estado do sobrinho, a tia benzedeira fazia de tudo que estava a seu alcance para mitigar sua dor, inutilmente. A essas alturas todos concordavam que Olavo estava perdendo o juízo e algo precisava ser feito com a máxima urgência. Para fazer frente a gravidade da situação, o avô resolveu intervir apelando a uma solução pouco ortodoxa.

Quando jovem, o avô ganhava a vida como seringueiro. Cruzava os cursos d'água de uma vasta região em busca das cobiçadas árvores-da-borracha, que na época encontravam-se espalhadas pela floresta. Hábil na função, ganhou dinheiro suficiente para comprar as terras onde estabelecera sua fazenda. Passava semanas embrenhado na selva, vivendo meramente de seus talentos como mateiro. Em meio a essas andanças, envolveu-se com um misterioso eremita, famoso por seus poderes de cura. Via de regra, um curandeiro extrai da flora os remédios utilizados para mitigar as mazelas de seus pacientes, servindo-se dos conhecimentos ancestrais transmitidos de geração a geração de pajés. Esse ia além. Corria o boato que possuía poderes sobrenaturais, que era um Encantado capaz de dominar forças elementares da natureza. O avô raramente tocava no assunto. Certo dia, tendo bebido uns copos a mais que o habitual, comentou tê-lo encontrado as portas da morte devido a ferimentos resultantes de violenta batalha travada contra um ente maligno. Sobreviveu graças aos cuidados recebidos e jurou socorrer seu salvador sempre que necessário.

Angustiado com a sina que afligia o neto, o avô tratou de colocá-lo na voadeira e aprestou-se para partir, levando consigo parca matalotagem. Entretanto, antes de dar partida no motor da embarcação, viu aproximar-se uma canoa com um viajante solitário. Um homem alto, magro, com vasta barba a cobrir-lhe o peito. Era o amigo que vinha em seu socorro.

O Encantado pediu que todos se afastassem, pois precisava ficar a sós com o afligido. Levou Olavo para o interior da floresta, onde construiu um abrigo rústico, acendeu uma fogueira e preparou uma beberagem destinada a acalmar a agitação do jovem. Meu sogro desconhecia o que se passou na ocasião. Lembrava apenas de acordar em sua rede, sentindo-se tranquilo e descansado como não se sentia desde que encontrara o bilhete na boca do sapo.

O repique dos sinos a cada hora grande havia sumido. Infelizmente isso não evitou que à meia-noite a entidade fizesse sua última visita. Vinha com redobrada fúria. Postou-se ao lado da rede, lutando contra uma vontade insana de destroçar aquele pirralho mirrado que a fitava assustado. Então, sibilou entredentes:

 Fizestes uma tremenda confusão, impedindo-me de concluir o trabalho para o qual fui chamada e que me daria imenso prazer realizar. Considera-te afortunado, desditoso. Somente a interferência de um poder superior ao meu tolhe o desejo de aplicar-te o castigo que mereces. Apesar disso, deixar-te-ei uma lembrança.

Ato contínuo, aplicou-lhe um vigoroso tapa na bunda, que o fez dormir durante dois dias e duas noites. Olavo estava finalmente livre da maldição.

* * *

Esse conto foi publicado na antologia Causos que os mais velhos contavam, da Editora Casa de Prometeu, em 2023.

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