Gravata colorada
Por isso, ao perceber o brilho fosforescente que se insinuava através da abertura da porta, gelei. Começou fraco para logo em seguida assumir uma proporção raramente vista. Sem esconder uma ponta de irritação, exclamei em alto e bom som:
— Tenha a santa paciência!
Não era para menos. A forte luminosidade indicava a presença de uma visita inesperada que trazia uma demanda a ser atendida, conflitando com meu desejo de fechar as malas e retornar ao Rio o mais cedo possível. Vesti o roupão apressadamente e espiei o interior do quarto, buscando a origem da emanação. Levei um susto ao constatar que se tratava de um típico gaúcho, trajado a rigor, nos moldes do final do século XIX.
Estava apoiado no batente da janela, naquela pose imortalizada pela estátua que fica no Parque da Redenção. Usava um lenço roto, vermelho, atado rente ao pescoço com o característico nó dos maragatos. Estava sem chapéu e com botas de garrão. Na cintura, duas garruchas atravessadas na guaiaca. No peito do pé direito despontava a roseta de uma espora, posicionada para servir como arma numa peleia mano a mano. Brincava displicentemente com uma adaga e, ao constatar que eu o via, abriu os braços e largou um sonoro:
— Mas bah! Faz uma eternidade que estou te procurando!
Escancarei a porta e respondi seco, de cara amarrada.
— Seja o que for, vai ter que esperar.
— O que é isso paisano. É assim que tratas um parente?
Olhei bem para o rosto da figura. Não me reconheci naqueles traços rudes. Ele deve ter percebido, pois acrescentou:
— A Ernestina era minha irmã.
Dito isso, arregalou os olhos e ficou encarando, como se essa informação desfizesse qualquer mal-entendido.
Tenho uma noção vaga a respeito do ramo materno de minha ascendência, porém sei que há uma Ernestina em algum lugar do passado. Esse desconhecimento, em parte, se deve ao fato de que minha mãe e minha avó ficaram órfãs muito jovens. Foram criadas por tios, minha avó, e por uma irmã mais velha, minha mãe. Olhando para aquela figura pilchada para a guerra comecei a desconfiar que os fatos poderiam ter sido omitidos propositalmente, por vergonha ou receio de vingança. A dúvida virou certeza ao lembrar das conversas sussurradas entre as duas, minha mãe e minha tia, sobre fatos obscuros atribuídos a um antepassado distante. Se bem lembrava, numa dessas ocasiões falaram de alguém que havia servido nas tropas revoltosas durante a Revolução Federalista - ou Guerra da Degola, como ficou tristemente conhecida esta mácula na história do Rio Grande do Sul, meu Estado natal. O fato da entidade estar segurando uma adaga era, seguramente, um aviso.
Dando-me por vencido, sentei na beira da cama e perguntei:
— Como me encontrastes?
— Percebi tua presença há uns cinco ou seis dias. No início era um sinal fraco. De vereda as comichões aumentaram e me dei conta de que eras sangue do meu sangue. Quando cheguei na Capital foi fácil seguir teu rastro. Eu simplesmente sabia aonde ias e vim para cá.
— É óbvio que precisas de auxílio. Em que posso ser útil?
A objetividade com que expressei a pergunta tirou-lhe a iniciativa. Enquanto procurava as palavras, aproveitei para examiná-lo. A lâmina da adaga era tão escura que parecia negra. A forma como o lenço fora trespassado indicava uma tentativa de ocultar algo, provavelmente um ferimento. Trajava camisa de algodão grosseiro, velha e puída. Por cima do chiripá, um tirador de couro surrado, com manchas de perder a conta tal a quantidade, cada uma numa tonalidade diferente de vermelho. Antes que ele começasse a falar novamente eu tentava adivinhar o propósito de sua presença e temia não poder ajudá-lo.
Ele deu algumas voltas, organizando os pensamentos. Só então contou sua história.
Lá pelos idos de 1893 estourou uma revolta em terras gaúchas. De uma hora para outra a Província foi dividia entre Maragatos e Pica-paus. Os maragatos eram os revoltosos federalistas, liderados por Gaspar Silveira Martins, e identificados por lenços vermelhos. Os pica-paus, de lenços brancos, eram fiéis ao Presidente da Província, Júlio de Castilhos, por esse motivo também chamados de legalistas.
A bem da verdade, Benício, o fantasma, estava mais por fora do que língua de enforcado em matéria de política. Vivia com a mulher e a filhinha numa estância perdida no pampa, onde foi recrutado pelo patrão e forçado a se alistar nas fileiras federalistas. Um simples detalhe determinou o que aconteceu dali para a frente. Na lida campeira, era encarregado de carnear gado para fazer charque, função na qual se destacava pela habilidade em manusear a faca e a frieza com que abatia animais de qualquer porte. Jamais poderia sequer imaginar que a competência com que exercia seu ganha-pão teria consequências tão devastadoras.
Seus dias como conscrito começaram calmos. A rotina se resumia em tediosas marchas a cavalo, acampar ao relento e comer a ração magra que serviam no fim da tarde. Ao cabo de uma semana sua sorte virou. Recebeu o batismo de fogo num confronto em que seu pelotão se sagrou vencedor. A maioria dos derrotados escapou, mas não todos. Um pequeno grupo aguardava angustiado as barbaridades destinadas aos vencidos. Os chefes discutiam a quem caberia o duvidoso privilégio de dar cabo daqueles miseráveis. A situação virara um impasse porque ninguém queria assumir o trabalho sujo. Até que o comandante da tropa, o mesmo que o arregimentara, ordenou sem admitir contestação:
— Tragam o Benício.
Naquele dia foram cinco. No primeiro ele hesitou e o corte foi mal feito. O pobre se debatia no solo, demorando a morrer.
Um sargento que acompanhava as execuções encerrou a agonia do supliciado com um tiro na testa. A seguir, colocou a unha do polegar no próprio pescoço e deslizou a mão num gesto rápido, deixando uma marca vermelha na pele suada. Ensinava a Benício o princípio básico do ofício que mudaria o curso de sua vida:
— Tem que ser de orelha a orelha estrupício!
E foi assim que o pacato peão de estância conheceu a degola, ou gravata colorada. Na contramão do que seria lógico supor, tomou gosto pela carnificina e logo se distinguiu pelo zelo com que cumpria sua missão. No inverno do ano seguinte, sua fama alcançava os mais distantes rincões da Província. Acreditava ter eliminado não menos de trezentos pica-paus e mais outros tantos desafetos. Todos pelo fio de sua adaga.
Ele falava alto, animado. Por um lado, descrevia com orgulho as atrocidades cometidas. Por outro, evitava chegar ao desfecho que, certamente, não fora o que gostaria.
Embrutecido pelos combates e pela macabra distinção que lhe concedera o posto de degolador, Benício vivia solitário. Seus colegas de farda o evitavam, receosos de seu temperamento agressivo. Seus inimigos o juravam de morte, convencidos que sua destreza no uso da faca só podia ser obra de mandinga.
— Que mandinga que nada!
Benício estava indignado. Agitava a adaga no ar, como se cortasse pescoços a granel.
— Era prática tchê! Passei mais de ano degolando gente. Nem nos domingos conseguia descansar ...
Em junho de 1894 legalistas e federalistas trocaram armas na localidade de Pulador, distrito que hoje pertence ao município de Passo Fundo. Foi uma luta desigual. A tropa legalista contava com uns 3.000 homens, contra apenas 1.600 revoltosos.
— Sabíamos ser causa perdida - os olhos de Benício estavam em brasa -, porém não arredamos pé. A refrega teve início na alvorada e foi até o sol se por. A tardinha ninguém mais tinha pólvora e nos atracamos corpo a corpo. Estripei uns quantos. A ordem, dos dois lados, era não fazer prisioneiros. Ao final, meu comandante mandou tocar a retirada e, na confusão, todo mundo se escafedeu como pode. Apartado de meus companheiros, vaguei sem rumo na escuridão até dar de cara com as luzes de uma casa grande.
Enquanto seguia com a narrativa, reproduzia em gestos as reações que tivera durante o desenrolar da ação.
— Encontrei a propriedade desprotegida. Deixaram um velhote e um piá sem barba tomando conta daquilo tudo. A peleia foi rápida. Eles não eram páreo para um guasca traquejado como eu. Depois de atacar a despensa - eu estava morrendo de fome -, vasculhei os arredores e encontrei três mulheres que haviam se escondido num potreiro, afastado da sede. A mais velha, que devia ser a mãe, bem que tentou defender as filhas. Com o calor da batalha ainda pulsando nas veias, poupei a mais nova e dei cabo das outras do jeito que melhor sabia fazer. Degolei-as sem dó nem piedade.
Feito isso, Benício arrastou a sobrevivente para uma baia vazia e fartou-se até não poder mais. Disse que enquanto rasgava o vestido da moça para dar início a diversão - palavras dele - ainda podia ouvir as duas estrebuchando entre golfadas de sangue. Por fim, exausto, bêbado - ele sempre levava uma guampa com cachaça a tiracolo -, dormiu ali mesmo, sem se importar com a presença da jovem, a quem julgou incapaz de qualquer reação. Ele havia amarrado seus pulsos, contudo deve ter sido descuidado. O fato é que acordou manietado como um bezerro prestes a ser marcado, com as partes de fora, cercado pelo pai da garota e meia dúzia de peões.
Benício sabia de antemão o que iria acontecer. Castrar os condenados era prática comum. Uma forma de humilhação extrema para uma raça tão ciosa de sua masculinidade. Ele mesmo o fizera inúmeras vezes por puro deleite de seu comandante. Para começar, castrava o infeliz, deixando-o vivo para que a malta se divertisse maltratando-o de todas as formas. Só depois de saciada a sanha dos vencedores, degolava. Era essa a sina que lhe estava reservada.
Estacou a narrativa e baixou a cabeça, acabrunhado. Um constrangido silêncio indicava que isso era tudo. Tentei reatar a conversa:
— Normalmente lido com espíritos que precisam resolver pendências nesse plano. A julgar pelo entusiasmo demonstrado durante o relato, é evidente que não te arrependes das mortes que causastes. Nem da forma cruel como as conduzistes. Do que se trata afinal?
— Calma vivente, que eu chego lá. Depois que concluíram o serviço demorou um tempo para que eu morresse. Tempo suficiente para ver que o estancieiro colocou meus pertences num pote de chimia e atarraxou com força.
— Ele colocou teus testículos num vidro de geleia? Por que ele faria isso?
— Pra guardar como troféu. Eu deflorei a filha dele e ele fez isso por vingança.
Benício olhava para mim com uma serenidade rara de se alcançar, principalmente em entidades tão perturbadas quanto ele.
Em resumo, meu antepassado não se envergonhava da vida que vivera, nem como morrera e muito menos se preocupava com o fim que esposa e filha tiveram após terem sido abandonadas. A questão era que ele não podia encerrar sua estada aqui na Terra estando incompleto. Era preciso, pelo que entendi, recuperar as partes perdidas para que pudesse descansar em paz.
O problema é que o fato ocorrera há mais de 120 anos! Supondo que o frasco com as preciosidades de Benício ainda existisse, era praticamente impossível determinar seu paradeiro atual. E por último, mas não menos importante, como reunir o que fora separado? De acordo com ele, seu corpo fora descartado numa sanga, insepulto, como derradeiro insulto a sua memória.
— Estamos bem arrumados - resmunguei ao retirar o notebook da valise. Precisava dele para acessar a página do Arquivo Público e agendar uma pesquisa no acervo.
Com base no que pude extrair de Benício, fiz um levantamento das propriedades onde poderia ter ocorrido sua morte. Selecionei três e, a partir da documentação levantada no Arquivo Público, tracei a linha de sucessões, partilhas, compra e venda de cada uma delas.
O próximo passo foi entrar em contato com os atuais proprietários e convencê-los a abrir suas porteiras à minha curiosidade. Para todos os efeitos, tratava-se de um estudo sobre locais que serviram de cenário para as batalhas que sacudiram o Estado no final do século XIX. Como o povo gaúcho é cioso de sua história e tradições, foi relativamente fácil obter as permissões. A bordo de um carro alugado, nos dirigimos ao distrito de Pulador, dando início a uma busca que se revelou infrutífera.
Apesar de bem recebido pelos atuais moradores das fazendas visitadas, ficou evidente que eles pouco sabiam do que realmente havia se passado em suas terras. Perdi tempo ouvindo relatos - alguns fantasiosos, outros imprecisos -, vendo quadros e móveis de época. Lamentavelmente, nada que fornecesse sequer um indício da localização do vidrinho.
Durante os deslocamentos, Benício permanecia mudo, com o rosto voltado para fora. Por vezes reconhecia esse ou aquele pedaço de paisagem. Nada definitivo. Até que nos deparamos com uma figueira monumental, destacada no descampado que margeava a estrada de chão batido. Benício ficou agitado e pediu que parasse a charrete (o carro). Antes de encostar o veículo ele já havia sumido. Desci para investigar o que estava acontecendo com meu carona. Não havia cercas. Segui a pé campo adentro até ser acolhido pela sombra daquele gigante. Encontrei Benício andando de um lado para o outro, murmurando:
— Foi aqui. Foi daqui que avistei as luzes da casa grande. Parei para descansar escondido nas raízes e vi o lume dos lampiões nas janelas!
Falava com firmeza, convicto que a lembrança era real. Estávamos sem opções e não havia nada a perder. Valia a pena investigar.
— Consegues lembrar onde exatamente estavas quando avistastes as luzes?
Benício rodeou o tronco algumas vezes e se postou de pé, de costas para a rodovia.
— Foi lá que eu vi - apontava ele para um capão de mato.
Ao chegar no local indicado nos deparamos com uma tapera. Era a tal casa, agora virada em ruína. Não era tão grande quanto parecera na versão que Benício contara, mas certamente fora sede de uma fazenda. Vagamos no entorno sem encontrar vestígios do potreiro onde ocorrera a tragédia.
A luz amarelada do entardecer alertou que era hora de procurar abrigo. Benício preferiu ficar por ali mesmo, revivendo os acontecimentos que o transformaram em alma errante. Nem discuti, pois seria ótimo passar uma noite sozinho, para variar. Dirigi até o distrito de Pulador, onde, por sorte, achei uma pousada com quarto disponível para o pernoite.
Enquanto preenchia a ficha de entrada, aproveitei para puxar prosa com o proprietário. Lidando com o sobrenatural, aprendi que a resposta para o que procuramos frequentemente está a nossa frente, basta saber reconhece-la. Ele não se fez de rogado e foi enfiando causo atrás de causo, revelando tudo que eu levara horas tentando descobrir. Calhou ser ele um dos organizadores da encenação da Batalha do Pulador, evento que ocorre anualmente. Meu anfitrião conhecia a tapera que encontráramos e não se furtou a contar o que sabia. O lugar fora revirado por toda sorte de gente: curiosos, saqueadores, pesquisadores e turistas. Nada de valor havia sobrado. Animado com o interesse que demonstrei pelo tema, forneceu-me o endereço de um historiador aposentado que morava em Passo Fundo e que talvez pudesse ser útil. Antes de servir mais um copo de licor de figo, ligou para esse amigo e agendou minha visita.
O acervo do historiador era realmente impressionante. As paredes do escritório no qual me recebeu estavam cobertas por estantes repletas de livros, documentos, ilustrações e objetos antigos. Antes de se aposentar, fora catedrático na Universidade Federal, em Porto Alegre, onde fizera Doutorado em História do Brasil, com ênfase na Revolução Federalista. Por essa razão mudara para o município onde ocorrera a mais importante e sangrenta batalha desse conflito. Enquanto ainda trocávamos amenidades, avisou que estava a par de minhas atividades paranormais. Com o olhar cético de quem aprendeu a questionar tudo, perguntou:
— Sei que tem algo por trás desse teu interesse na revolução. Prefiro que sejas sincero.
Sem entrar em pormenores, expliquei que o objetivo era reaver uma relíquia perdida desde 1894. Uma descrição sucinta da peça fez com que ele cofiasse a barba e me olhasse divertido.
— Essa relíquia não seria por acaso um pote de chimia?
E desatou a rir, deixando-me completamente embasbacado. Não esperava que mais alguém conhecesse o segredo de Benício. Depois que se acalmou, assumiu um ar pretensamente sério e perguntou:
— O senhor faz ideia do conteúdo desse vidro?
Antes que pudesse responder, continuou:
— Trata-se de uma das lendas mais obscuras do imaginário gaúcho. Contam que sua origem está ligada à morte do maior e mais cruel assassino que pisou o pampa.
Dei graças por Benício continuar sumido. Imagino o que faria se escutasse o que veio a seguir:
— Durante a Revolução Federalista houveram muitas mortes de lado a lado, boa parte delas devido a prática da degola. Cada facção tinha sua própria equipe de carrascos, homens sádicos, peritos na arte de matar com um talho profundo na garganta. Despachavam os adversários sem um disparo, economizando a escassa munição.
Enquanto falava, ia servindo café em duas xícaras de porcelana. Pegou uma para si e passou a outra para mim, sem interromper o que estava dizendo:
— Dentre todos os membros dessa elite macabra existiu um que deixou sua marca escrita a ferro, sangue e lágrimas. Destacou-se tanto pela habilidade no manejo da faca quanto pela perversidade com que tratava suas vítimas. Paradoxalmente seu nome foi esquecido. A única certeza é que pertencia aos quadros federalistas. Seus contemporâneos acreditavam que tinha feito um pacto com o Tinhoso para tornar-se invencível, por isso evitavam nomeá-lo abertamente. Como até os registros oficiais se abstiveram de citá-lo, sabe-se o que a tradição oral preservou até hoje.
Fez uma pausa para bebericar o café e fitou com olhar perdido a capa de um caderno que estava na mesinha de centro.
— E o que diz a voz do povo? Perguntei para trazê-lo de volta a realidade.
— Que apesar de ter o corpo fechado, enrabichou-se por um rabo de saia, filha de um estancieiro, e que isso anulou a proteção da qual gozava. Surpreendido por um piquete legalista, sucumbiu numa emboscada durante a Batalha do Pulador. Ao se aproximar do corpo, o chefe do grupo reconheceu quem haviam matado e decidiu levar uma lembrança do seu feito. Nesse ponto as versões divergem. Uns dizem que ele cortou as orelhas, outros que foram os dedos. Noutra, que ele teria guardado o sangue do falecido com a intenção de bebê-lo na esperança de herdar as habilidades que o tornaram famoso.
Não pude deixar de sorrir discretamente, imaginando o que diria o professor se soubesse qual era o verdadeiro conteúdo do frasco. Aproveitei a deixa para tentar descobrir o que ele sabia e ainda não havia contado:
— Será que existe alguma verdade nisso? Digo, será que há alguma prova da existência desse frasco?
— Para mim isso é irrelevante. Prefiro lidar somente com aspectos históricos e deixar o folclore para outra classe de especialistas. Dito isso, talvez lhe interesse saber que há sim evidências de que essa relíquia ainda existe.
Pegou o caderno que estivera fitando há pouco e folheou algumas páginas. Eram anotações de campo, com desenhos e fotografias. Mostrou-me uma delas. Um homem atarracado, com um bigode desproporcional na cara redonda, segurava um objeto escuro, difícil de discernir. Ao fundo, um salão com prateleiras abarrotadas de artigos indistinguíveis. Segundo o professor, o retratado era um colecionador de reputação duvidosa, conhecido por saquear sítios arqueológicos e vender bugigangas como se fossem antiguidades. Devolvi a foto e peguei o papel dobrado que me alcançou em silêncio, dando a entender que a entrevista estava encerrada. Abri o bilhete e li, quase eufórico, o endereço do bigodudo. Agradeci pela gentileza com a qual me recebera, pelo café e pela conversa. Na despedida, ao apertar sua mão, retribui com o que tinha de mais precioso:
— Benício. Ele se chamava Benício.
Pelo tremor que percorreu seu corpo, ficou claro que entendera a quem me referia.
Entrei no carro e tomei o rumo da tapera onde deixara Benício. Parei sob os galhos da figueira e não precisei esperar para que aparecesse. Surgiu calado, meio distante.
— Está tudo bem contigo? Perguntei apontando para a mão direita, que agarrava o entrepernas.
— É só uma coceira.
Dali partimos para a Capital. Tinha pressa de confrontar o colecionador e - quem sabe! - encerrar a pendência que mantinha-me ligado à Benício. Devido ao adiantado da hora, tive que adiar para o dia seguinte.
A noite foi tranquila, ao menos para mim. Parecia que meu parceiro fantasmagórico havia contraído alguma moléstia venérea, a julgar pela maneira como se coçava. Estava inquieto. Portava-se como uma fera enjaulada, sempre andando e esfregando a mão por baixo do tirador. Minutos antes da meia-noite, irritado com aquela agitação, pedi que fosse assombrar qualquer outro quarto do hotel. O dia fora corrido e eu precisava descansar.
Tornei a vê-lo algumas horas depois, no refeitório. Continuava naquela aflição medonha, fazendo sinais para que me apressasse. Por sorte permanecia invisível. Caso contrário, tiraria o apetite dos demais hóspedes que tomavam tranquilamente o café da manhã.
Para alívio de Benício, em instantes estávamos na rua, indo ao encontro do colecionador. Ele morava numa chácara localizada no Passo do Vigário, interior de Viamão, município vizinho a Porto Alegre. Preferi ir sem avisar. A natureza do assunto era delicada e o fator surpresa nos propiciava alguma vantagem. Guiava seguindo o GPS e pensava se teríamos dificuldades para encontrar o endereço. Ao cruzar a divisa dos municípios, uma sequência de cartazes ao longo da estrada anunciava como chegar lá. Ele tinha uma loja e fazia questão de ser encontrado.
Uma porteira com um letreiro espalhafatoso indicou que chegáramos ao destino, um galpão rústico, erguido com troncos que sustentavam um telhado de capim santa-fé e fechado com paredes de madeira. Construções como essa são comuns no Rio Grande do Sul e visam reproduzir o estilo de vida tradicional dos antigos gaúchos. Nesse caso, uma forma esperta de criar a atmosfera adequada para expor seus produtos. Era ali que recebia clientes interessados em adquirir os frutos de suas rapinagens.
Benício sumiu antes que estacionasse o carro. Estava no auge da aflição e saiu sem dizer aonde ia. Entrei no antiquário e de imediato identifiquei o local que aparecia na foto mostrada pelo professor. Circulei entre prateleiras repletas de itens os mais variados. Uma miscelânea de antiguidades legítimas com frascos de perfumes baratos e quinquilharias de todo tipo. Nada que justificasse uma visita ao lugar.
— Posso lhe ajudar? Perguntou o gordote da foto, proprietário do estabelecimento, vindo sabe-se lá de onde.
— Vim indicado por um amigo. Ele garantiu que o senhor tem o que procuro - menti descaradamente.
— E o que seria? Seus olhinhos brilhavam, antevendo uma boa venda.
Descrevi, utilizando a versão contada pelo historiador, a relíquia que buscava. Ele hesitou, avaliando se deveria confiar em mim. Devo ter uma cara honesta, pois ele convidou-me a passar para o setor privativo da loja, um recinto sem janelas, imerso na escuridão. No instante em que as luzes se acenderam, levei um choque. Ali estava um tesouro arqueológico de valor inestimável. Espadas, cristais, mosquetes, fardamentos, adagas, moedas, artefatos indígenas, ferramentas diversas, documentos e uma infinidade de outros objetos que não tive tempo de catalogar mentalmente. Séculos de história gaúcha jaziam naquela sala. Indiferente ao meu espanto, ele se dirigiu a um cofre e voltou trazendo uma caixa de madeira com araucárias marchetadas na tampa. Era um belo trabalho, sem dúvida. Colocou-a em cima da mesa que fazia as vezes de escrivaninha e abriu com cuidado. Em seu interior, envolto por um lenço que ele desdobrou com solene reverência, descansava o cobiçado pote de chimia.
Fiz menção de tocar no objeto e ele me estendeu um par de luvas. Calcei-as e avaliei o pote contra a luz. Era um vidro ordinário, com uma tampa de latão que, muito possivelmente, não era a original. Estava maltratado por fora. Por dentro, uma massa escura, indefinível, de aspecto desagradável, era o que restara da hombridade de Benício. Ao examinar o item obtive a confirmação de sua autenticidade.
— Estou certo de que é o que procuras - disse o homenzinho - e que podemos chegar a um acordo quanto ao pagamento ...
De repente sua voz foi mermando. Seus olhos miúdos, arregalados ao extremo, viraram duas bolitas, refletindo o brilho azulado que surgira atrás de mim.
— Bem capaz que vou pagar pelo que é meu!
Benício falava com frieza na voz. No mesmo timbre que gelava o sangue de quem aguardava a vez de ser agraciado com a gravata colorada. Empunhava a adaga com mão firme e encarava o pescoço de seu oponente como se avaliasse onde deveria posicionar o instrumento para realizar o corte.
Apavorado pelo espectro de quem ele bem sabia de quem se tratava, o gordote tomou o frasco de minhas mãos, tornou a envolvê-lo com o lenço, recolocou-o na caixa, fechou-a com a tampa marchetada e a empurrou em minha direção, sem desgrudar os olhos de Benício.
— É tua. Por favor, leve isso daqui.
Não ficou claro se ele se referia à caixa, ao Benício, ou ambos. Seja como for, saímos dali o mais rápido possível.
A posse da relíquia resolvia metade do problema. Retornamos pelo mesmo caminho, discutindo como encerrar o imbróglio na íntegra. Benício estava sereno, livre da coceira que o atormentava desde o dia anterior. Talvez por essa razão conversasse como uma pessoa civilizada:
— Quem sabe levas contigo para o Rio. Ninguém vai pensar em procurar por lá.
Arrepiei com a ideia, mas respondi sem demonstrar:
— Tem que ser uma solução definitiva. Teus bagos não podem ficar rolando indefinidamente.
Sepultamento estava fora de cogitação porque não havia mais corpo. Além disso, alguém poderia exumar os restos e se apropriar do frasco. Tínhamos que ser criativos.
Dirigi por alguns quilômetros, até passar por uma venda. Parei para examinar as mercadorias expostas na entrada. Incluindo uma grelha que disparou uma sucessão de imagens em minha mente, até chegar numa proposta que apresentei e pareceu agradar Benício.
Desci e comprei, entre outras coisas, um feixe de lenha.
Por sorte, um pouco mais adiante, encontrava-se o Parque Saint'Hilaire, uma reserva natural dividida entre Viamão e Porto Alegre. Nossa próxima parada foi na área de piqueniques. Como era meio de semana, o parque estava vazio e foi fácil encontrar uma churrasqueira desocupada. Nela montei uma pira com a lenha recém adquirida, sobre a qual coloquei o pote com o que restara das preciosidades de Benício. Ele acompanhava calado cada um dos meus movimentos. Com um graveto e um trapo improvisei uma mecha. Antes de acendê-la para dar início a cremação, perguntei a Benício se gostaria de dizer algumas palavras. Naquele seu jeito rude, apontou com a mão direita para a pilha de madeira e falou com a franqueza que lhe é peculiar:
— Mas bah tchê! Acende logo essa bosta.
Eu o conhecia o suficiente para saber que essa fala debochada escondia a emoção que sentia. Sem mais delongas, encerrei a cerimônia e acendi a fogueira. Ficamos os dois admirando as labaredas lamberem o pote até que trincasse devido ao calor. O conteúdo escorreu entre as achas, chiando e levantando uma nuvenzinha fétida. Alimentei o fogo por alguns minutos para certificar-me que o procedimento estivesse totalmente consumado. Ao dar por concluído, virei-me para Benício e pedi que verificasse o resultado. Ele apalpou por baixo do chiripá com cautela. A cara de satisfação do danado denunciou que estava completo novamente.
Fiquei aguardando que fizesse a passagem. Benício continuava ali, brincando com sua adaga. O olhar enviesado indicava estar incomodado. Exibia o comportamento truculento que tivera em vida. Irônico, resmungou entredentes, num tom carregado de sarcasmo:
— Tá me olhando por que? Nunca me viu, cara de pavio?
— Pensei que uma vez resolvida essa tua pendência, irias para o outro lado.
— Tô bem aqui. Vou pro lado que quiser. Eu só queria as partes de volta!
Depois dessa ingrata manifestação, peguei a caixa e fui embora, convencido que minha presença não era mais bem-vinda. A última vez que o vi, Benício estava cuidando da churrasqueira. Naquela noite peguei um voo sem escalas para o Rio. A viagem foi agitada. Passamos por vários pontos de turbulência, de modo que mal preguei os olhos. Aterrissamos de madrugada no Santos Dumont e tudo que desejava era chegar em casa, tomar um banho e cair na cama.
Retrata bem esse episódio triste da história riograndense!
ResponderExcluirCom certeza! Infelizmente, guerras, desavenças e outras formas de violência continuam fazendo parte do dia-a-dia da humanidade
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