Jardim de Infância


O Sul do Brasil costuma ter um inverno rigoroso e chuvoso. Aquela tarde cinzenta confirmava isso. A luminosidade fraca que atravessava as vidraças não era páreo para as luzes claras que iluminavam a sala do Jardim B, realçando o colorido dos desenhos expostos nas paredes, obra dos pequenos artistas que agora faziam uma algazarra fora do normal.

Lucinda, a professora, observava em silêncio, incapaz de tomar uma atitude para apaziguar a turma que, excitada, se comprimia numa das janelas, acenando e chamando um nome em particular:

— Juju! Vem pra dentro! Tá chovendo ...

Cautelosamente ela virou o rosto de modo a enxergar o pátio. Lá fora, indiferente aos apelos de seus coleguinhas, Juju chapinhava feliz nas poças que cobriam a área de lazer da escola. Atraída pelo tumulto, Dionísia, a diretora, irrompeu à porta e perguntou antevendo a resposta:

— A Juju de novo?

Em silêncio, Lucinda sinalizou afirmativamente e baixou a cabeça. A diretora seguiu rapidamente para o corredor que dava acesso ao pátio, chamando pela aluna, sem obter resposta. Seria mais uma inocente traquinagem infantil, não fosse por um detalhe. Juju havia morrido há pouco menos de um ano, vítima de um trágico acidente, cujas circunstâncias foram particularmente dolorosas.

Quando viva, Juju frequentara a escola maternal localizada próxima ao edifício onde morava Dona Jurema, sua avó materna. Os pais da menina ali a deixavam pela manhã, a caminho do trabalho, e a avó a pegava no final da tarde, quando então a levava, via de regra, diretamente para casa, onde vinham buscá-la ao fim do expediente.

Dona Jurema possuía um apartamento espaçoso, no sexto andar. Da janela da sala era possível ver uma praça onde ela e a neta costumavam passear de tempos em tempos. Essa janela - bem como as outras - era foco de discussões quase diárias entre os pais da menina e Dona Jurema, que se recusava a instalar telas de proteção. Alegava que não havia necessidade, uma vez que ela sempre avisava a pequena para ficar longe dali, que a abertura ficava fora do alcance, que ela como avó estava sempre alerta e outros argumentos que mascaravam a verdadeira razão de sua recusa: ela temia que a colocação de telas estragasse os batentes das janelas, prejudicasse a aparência do imóvel e, por conseguinte, depreciasse seu valor.

Certo dia, ao voltar da escola, avó e neta deram uma volta pela praça. Nessa ocasião, Juju ficou encantada com um vira-latas brincalhão, ao ponto de querer levá-lo para casa a todo custo. Dona Jurema passou um cortado para separar os dois e arrastar a neta chorosa, prometendo que voltariam no dia seguinte para brincar com o totó. 

Na padaria onde pararam para comprar pão e fiambres para o café, Dona Jurema tentou distrai-la, sem sucesso, comprando uma revista em quadrinhos.

— Totó?

Perguntava a netinha, apontando com o dedinho para a capa, onde havia o desenho de um estranho cachorro azul.

Ao chegarem no apartamento, a avó dirigiu-se à cozinha para guardar as compras, deixando Juju sozinha na sala por alguns minutos. Tempo suficiente para ela arrastar até a janela o apoio para os pés que ficava em frente a uma das poltronas e subir nele, para chamar o amigo:

— Totó!

Berrava cada vez com mais força. Até que simplesmente parou.

— Finalmente Juju calou a boca - pensou Dona Jurema, aborrecida com a insistência da menina.

Enquanto secava as mãos num pano de prato, passou pela porta da cozinha e entrou na sala vazia. Viu o apoio para os pés virado, junto a parede. Um silêncio fora do comum se espalhava pela casa. Com o coração apertado, correu para a janela e olhou para os lados. Só então percebeu uma movimentação no estacionamento do edifício. Eram moradores que corriam para socorrer uma criança que agonizava sobre o lajeado tingido de sangue.

Não há como descrever o quanto esta tragédia abalou a todos que conheciam a doce Juju. No que diz respeito à família, não é exagero afirmar que a dor foi excruciante. Principalmente para Dona Jurema, a quem as acusações de negligência se juntavam ao remorso que lhe consumia por dentro. 

Aos poucos o transcurso do tempo foi amenizando o padecimento dos enlutados. Estavam quase retomando suas vidas quando surgiu algo totalmente inesperado. Começaram a circular boatos expondo as misteriosas aparições que se manifestavam na escola que a menina frequentara quando viva.

Nem os pais nem a avó deram crédito ao que julgaram ser invencionices patrocinadas pela fértil imaginação dos coleguinhas ou, quem sabe, pela crueldade de algum membro da equipe apegado à criança e que buscava torturar aqueles que julgava responsáveis pela sua morte.

Seja como for, ao final daquela tarde cinzenta, Lucinda decidiu me procurar. Ela acompanhava as inúmeras postagens que falavam das intervenções que fizera em casos relacionados ao sobrenatural e resolveu pedir ajuda. Foi graças a um comentário numa dessas publicações que ficou sabendo de minha presença em Porto Alegre por motivos pessoais e ficou de plantão no saguão do hotel, onde a encontrei pela primeira vez.

A perda de uma criança sempre é um choque muito forte, mesmo para aqueles que tomam conhecimento do fato sem estar emocionalmente envolvidos. O que dizer então dos sentimentos daquela jovem que convivera com a pequena tempo suficiente para criar profundos laços de afeição, tão abruptamente rompidos. Escutava ela contar a história, ponderando o quanto haveria de verdade naquilo. Não que duvidasse de sua sinceridade, porém sabia que tudo poderia ser fruto da perturbação oriunda do acidente. O que me fez considerar seriamente a questão, a ponto de cancelar temporariamente meu retorno ao Rio de Janeiro, foi o comportamento dos coleguinhas. Crianças dessa faixa etária são intocadas pela malícia. Podem fantasiar, porém são incapazes de mentir. Se elas, assim como a professora, diziam enxergar a amiguinha falecida era porque acreditavam realmente nisso. Uma perspectiva que merecia, no mínimo, ser investigada.

Essa conversa tivemos no final de uma sexta-feira. Na próxima segunda, por volta das 14h00, estava na sala da diretora, tentando persuadi-la de que era preciso averiguar o que se passava na escola. Ela hesitava, pois receava que, com a repercussão negativa, os pais decidissem levar seus filhos para as concorrentes. Segundo ela, seria mais um fator a alimentar as desconfianças que muitos já não se importavam em declarar abertamente. A julgar pela forma como Dionísia lidava com a situação, ficou claro que ela jamais vira o fantasma da menina. Posteriormente confirmei que o restante dos professores e funcionários reiteraram nunca tê-lo visto. Ou seja, como o fenômeno se restringia à Lucinda e seus alunos, a probabilidade de terem montado uma elaborada farsa era enorme. Aproveitei a deixa para convencê-la que era preciso investigar a fundo para ter certeza. Ela cedeu quando aventei que as visões poderiam ser o resultado de um evento de alucinação coletiva. Se fosse esse o caso, faria uma recomendação de tratamento especializado e isso acabaria em definitivo com os rumores. Sem melhores opções disponíveis, ela aceitou e pareceu conformada com a solução proposta. Eu, no entanto, durante a conversa, captava vibrações que desmentiam qualquer possibilidade de fraude. Ao sair da sala meu objetivo era descobrir por qual motivo a pequena Juju seguia nesse plano.

Durante o intervalo fui ter com Lucinda. Encontrei-a no pátio, acompanhando a movimentação de seus alunos. Ao me ver, solicitou que uma monitora assumisse seu posto e veio ter comigo:

— Então, o que disse a diretora?

— Que posso ficar, mas sem fazer alarde. A que horas ela costuma aparecer?

— Sempre depois do intervalo da tarde, quando o pátio fica vazio.

Ela estava ali, vagando entre os antigos colegas, sem fazer-se visível. Parecia serena. Curiosamente não apresentava vestígios dos ferimentos ocasionados pela queda. Entretanto, uma mancha escura cobria parte do vestidinho que usava, dando ao palhacinho bordado que enfeitava o bolso lateral uma aparência sinistra.

— O que o senhor vai fazer com ela?

Talvez pensasse que eu fosse alguma espécie de caça-fantasmas. Demonstrava sincera preocupação com a segurança de Juju.

— Vou chamá-la para brincar, respondi piscando o olho.

Lucinda pareceu entender a ironia. Nesse momento tocaram a sineta indicando o fim do intervalo. As crianças largaram seus brinquedos, dirigiram-se para o interior do prédio, atrás dos professores e monitores que as acompanhavam e que mal conseguiam disfarçar a pressa com que abandonavam o lugar. Fiquei sozinho pensando que, embora não admitissem a existência do fenômeno, nem um membro daquela escola sentia-se confortável em demorar-se ali após o final do recreio.

Sentei num banco de madeira e fiquei observando Juju arrumar a mesa para um chá imaginário. Olhei para as janelas que davam para o pátio para verificar se as crianças também podiam vê-la. Pesadas cortinas cobriam as vidraças. Ao olhar novamente para o pátio, vi que a menina servira uma xícara e a trazia para mim com o bracinho estendido. Peguei a peça com cuidado, assoprando como se quisesse esfriar seu conteúdo antes de levá-la aos lábios. Fingi tomar um gole e exclamei satisfeito:

— Que gostoso Juju!

A essas alturas ela divertia-se na caixa de areia, enterrando um carrinho de bombeiro. Suas atitudes eram perfeitamente naturais. Era uma criança como outra qualquer. Apenas estava morta.

Fiquei observando até o final do período. Ao soar a campainha, começou a movimentação das crianças que seguiam das salas para os braços de seus pais. Ela mudou radicalmente de atitude. Ficou de pé, estática, até a saída do último aluno. Quando apagaram as luzes ela fez carinha de triste e desapareceu. 

Dediquei três dias a essa fase de observação e concluí que Juju não fazia ideia do que se passara com ela. Por um lado, era um bom sinal, pois indicava que sua estada no plano material não era motivada por rancor ou desejo de vingança. Pelo que percebi, o ambiente escolar era importante para ela quando viva e ela se mantinha fiel a esse compromisso. Entretanto, na hora da saída, exibia sempre o mesmo comportamento. Parava o que estivesse fazendo e ficava alerta, como se aguardasse alguma coisa ou alguém. Em vida, ela não tinha permissão para deixar a escola sozinha. Quiçá fosse esse o problema. Ninguém aparecia para levá-la para casa.

Pedi a Lucinda que me apresentasse aos pais de Juju. Precisava saber até que ponto eles tinham conhecimento dos fatos. Dona Jurema também constava na lista de entrevistados. A avó sentia-se culpada pela morte da neta e eu antevia uma conversa amarga e dolorosa que precisava ser feita.

Como normalmente ocorre nesses casos, não foi fácil quebrar a barreira que eles ergueram a sua volta. Principalmente porque tocar no assunto os fazia reviver um acontecimento traumático, remexendo feridas não cicatrizadas. Isso sem falar no ceticismo daqueles que, sem me conhecer, tomavam-me por charlatão. Felizmente com isso eu já me acostumara.

Após várias tentativas frustradas, finalmente consegui marcar uma entrevista com Dona Célia, a mãe de Juju. No dia aprazado encontrei-me com ela, uma jovem senhora na faixa dos trinta anos, profundamente abalada com a perda sofrida. Trajava um tailleur de cores sóbrias. Uma forma discreta de manter o luto sem perder a elegância.

A primeira coisa que ela quis saber foi se havia alguma chance da filha estar viva, afinal muitos afirmavam tê-la visto na escola.

Confesso que fiquei pasmo. Essa foi com certeza a primeira vez que alguém aventou essa hipótese, provavelmente oriunda da vontade de uma mãe em rever sua filhinha.

— Lamentavelmente não, respondi com toda franqueza.

O momento era extremamente delicado e não podia alimentar falsas esperanças. Dona Célia fitou-me com seus olhos negros, umedecidos pelas lágrimas.

— Então o que estamos fazendo aqui?

Sua pergunta era justa, merecia uma resposta sincera. Expliquei da melhor forma que pude o que acontecia, falando sobre a importância da travessia para os desencarnados. Parece haver um consenso, entre os leigos, de que a morte rompe abruptamente os laços do ser com o plano material e a alma segue incontinente seu caminho. Basta um mínimo de vivência com o sobrenatural para saber o quanto pode ser difícil para o espírito fazer a passagem.

Foram precisos mais dois encontros como esse para que ela entendesse - e se convencesse - da veracidade do que ocorria. O marido apareceu na última sessão e mostrou ter a mente aberta. Sem rodeios, disse que fazia questão de ir até a escola para testemunhar a aparição da filha, no que foi acompanhado pela esposa. Esse era o meu desejo desde o início. Infelizmente havia um empecilho. A presença de Dona Jurema era essencial, mas a filha se recusava a vê-la novamente, alegando ser ela a responsável pela morte de Juju. A mágoa subjacente às palavras que Dona Célia usou para expressar sua recusa em ficar frente a frente com a própria mãe mostraram que esse obstáculo era incontornável. Para resolver esse imbróglio precisei apelar para terapia de choque.

Na semana em que o acidente que vitimou Juju completaria um ano fomos, Dona Célia, o marido e eu, para a escola. Aguardávamos o final do recreio na secretaria. Não pude deixar de notar as gotículas que escorriam pelas vidraças, indicando que uma chuva fina caia lá fora. Todas as turmas tinham sido dispensadas. No prédio, além de nós, unicamente Dionísia e Lucinda. Combináramos com antecedência manter os avisos sonoros que ditam a rotina escolar, de modo a simular uma aparente normalidade. Depois que a sirene tocou, chamando os ausentes de volta as salas de aula, esperamos aproximadamente uma hora e nos dirigimos ao pátio. Como era de se supor, Juju chapinhava indiferente ao clima. Aparentava aquela serenidade típica das crianças de sua idade. Permaneceu alheia a nossa presença, até ouvir o toque de saída. Como sempre, parou o que fazia e ficou atenta, olhando a sua volta.

Quando percebeu a presença dos pais, seu rostinho se iluminou e ela abriu um largo sorriso, mas não se alterou, conservando-se invisível para os demais. Seus olhinhos espertos varriam o pátio. Nisso, um latido chamou nossa atenção. Antes que alguém pudesse esboçar qualquer reação, um vira-latas correu em direção à menina. Tomada por uma súbita euforia, Juju se revelou a todos ao abraçar o amigo. Parada num portão lateral, Dona Jurema observava a cena junto a Lucinda. De suas mãos pendia uma guia solta. Amparada pela professora, caminhou lentamente em direção ao grupo. Seus passos eram trôpegos, um pouco pelo receio de como seria recebida pela filha e outro tanto pelo assombro de rever a neta, que não cansava de repetir:

— Totó!

Logo após a tragédia, a avó voltara à praça em diferentes momentos para refazer o derradeiro trajeto que fizera com a neta. Numa dessas vezes deparou-se com o cachorrinho que encantara a menina e resolvera adotá-lo como forma de atender ao último desejo de sua saudosa Juju.

Sabendo que seria inútil forçar a reaproximação da filha com a mãe, optei por conversar reservadamente com Dona Jurema e combinei de nos reunirmos na escola. Lucinda, é claro, teve ativa participação nesse ajuste e tudo saiu como deveria ser graças a sua intermediação.

Não sei dizer se foi intencional ou obra do acaso, o fato é que ambas ficaram lado a lado. Da parte de uma havia ressentimento, da outra remorso. Uma tensão desagradável tomou conta do grupo, até que Juju se posicionou entre elas e segurou a mão de cada uma. Ambas olharam para baixo. Viram um rostinho sorridente, sem marcas de mágoas ou de dor. Seu vestidinho estava imaculadamente branco. Ela resplandeceu por um instante e sumiu, deixando entrelaçadas as mãos de Dona Jurema e Dona Célia.

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