Chorosa : um apelo à eternidade


Daguerra é um homem de paz. Recebeu esse nome insólito por obra do escrivão quase surdo e de má vontade que atendeu seu pai na hora de fazer o registro. Ao perguntar como se chamaria o rebento a resposta foi:

— Daguerre.

Resmungando, registrou o que entendeu, ou seja, Daguerra. Teimoso, recusou-se a rasurar o assentamento, apesar das insistentes bravatas proferidas pelo velho Antônio, fotógrafo das antigas, que viu falhar seu desejo de homenagear o inventor da fotografia no nascimento de seu primogênito.

Tive o prazer de conhecê-lo logo após desembarcar de mala e cuia no Rio. Como não conhecia a cidade, pareceu-me boa a ideia de participar de passeios turísticos a pé orientados por guias especializados na história da região. Uma maneira divertida de aprender e fazer amigos como Daguerra, sócio da pequena agência que organizava esse tipo de roteiro. Mantínhamos esporádicos contatos, mesmo tendo eu deixado de participar das atividades. Passados dois anos de silêncio fui contatado através de uma rede social. Na mensagem ele perguntava se poderíamos nos encontrar para um bate-papo.

Na época em que recebi o convite minha fama se consolidara no circuito do sobrenatural. Elucidara casos complexos, de difícil solução, sendo que muitos me procuravam por terem abandonado a esperança de resolver seus problemas com os habitantes do outro mundo. Concordei em encontrar Daguerra para um chope consciente que poderia haver algum caroço debaixo desse angu. Marcamos para uma terça-feira às 18:00 no saudoso Verdinho da Cinelândia. Se sabes a qual restaurante estou me referindo é porque não cozinhas na primeira fervura!

— Seu Roberval, mais dois por favor.

Frequentador assíduo, fazia jus ao atendimento diferenciado dispensado pelos garçons. Vieram duas tulipas bem tiradas juntar-se as outras duas que jaziam sobre a mesa, vazias. A conversa prosseguia animada. Falávamos do outrora, relembrando fatos pitorescos das excursões das quais participara, personalidades exóticas que encontráramos, essas coisas que falamos ao rever um parceiro com o qual temos afetos pretéritos em comum. Evidentemente eu aguardava o momento em que meu amigo deixaria o papo-furado para entrar no cerne da questão. Lá pela metade do segundo copo, ele introduziu o tópico que motivara o convite:

— Fiquei sabendo da menina que foi presa pela mãe no sótão ...

Ele se referia ao caso de Camila, assassinada pela mãe por causa de uma gravidez indesejada (clique aqui para ler). Uma história triste, macabra até, que conseguira conduzir para um desfecho surpreendentemente feliz. Brinquei com o porta-copos, fingindo desinteresse:

— Suponho que essa reunião não seja só para beber e relembrar.

Daguerra sentia-se visivelmente desconfortável. Entendia por quê. Pessoas com pouca vivência paranormal sentem dificuldade em falar sobre experiências inexplicáveis. Mesmo se as evidências forem irrefutáveis. Tentei incentivá-lo a continuar:

— Podes abrir o jogo. Garanto que não vou duvidar ou zombar de ti.

O sorriso amarelo que brotou naquela cara disse tudo. Algo o incomodava e ele precisava desabafar:

— Há seis meses, decidimos iniciar um novo projeto na agência. A oportunidade surgiu devido a uma demanda dos alunos de geografia de uma universidade e nos deparamos com um nicho de mercado promissor.

— Sei - respondi limpando a espuma do bigode.

— Montamos roteiros que incluem visitas a cemitérios monumentais.

Ele fez uma pausa, acreditando que eu ficaria chocado.

— Levamos grupos ao São João Batista, ao Caju e ao Catumbi.

— Conheço bem os dois primeiros. O terceiro ainda não tive o prazer de visitar.

Daguerra deu uma risadinha e continuou:

— Calma! Não estou tentando vender pacotes turísticos. Na verdade, preciso de orientação num assunto cabuloso, para dizer o mínimo.

O rumo da prosa despertou meu interesse. Pedi uma porção de batatas portuguesas e agucei os sentidos.

— Acontece sempre que vou ao Catumbi. Na primeira vez que estive lá achei que fosse alguém fora do meu campo de visão. Na segunda e em todas as outras vezes o fenômeno se repetiu de forma idêntica. Tentei não dar importância. Só que isso não para! Está me deixando agoniado...

— O que sempre acontece?

— Desde que passo pelo portão do cemitério ouço uma mulher chorando desesperadamente. Levei vários grupos e aconteceu todas as vezes.

— Só quando vais em grupo? Se fores sozinho também?

— Sozinho, acompanhado, de manhã, de tarde, de noite, faça chuva ou faça sol. É só pisar dentro do cemitério que começo a ouvir a choradeira.

— E os demais?

— Isso é o mais estranho. Ninguém fala sobre isso. Perguntei a várias pessoas, inclusive aos funcionários da concessionária e todos se mostraram perplexos. Juram não saber do que estou falando.

— Como ela é?

— Nunca a vi. Escuto nitidamente o choro, identifico sua localização, mas não enxergo quem está chorando.

O relato de Daguerra não trazia surpresas. É sabido que a sensibilidade ao sobrenatural pode ser parcial. A maioria não toma conhecimento do que sucede a sua volta. Entretanto, alguns podem ver sem escutar, outros ouvir sem ver ou simplesmente sentir uma presença. Pouquíssimos tem acesso a todos os sentidos, como é o meu caso. Contei a ele que provavelmente se deparara com uma atividade paranormal. Como a narrativa continha lacunas incontornáveis, expliquei ser impossível afirmar o que se passava sem uma investigação in loco. Conformado, ele concordou e marcamos a visita para o dia seguinte.

Eram nove horas de uma manhã ensolarada. Nos encontramos em frente ao pesado portão de ferro fundido que dá acesso ao interior do cemitério. Do lado de fora, nem sinal da chorosa. Bastou cruzarmos o portal para escutarmos um choro sentido, de alguém que exprimia uma dor descomunal, inconsolável. Mesmo escolado com este tipo de ocorrência fiquei abalado com a força das lamentações. Compreendi por que ele recorrera a mim. Entrar naquele recinto era aterrador.

Percorremos as alamedas rastreando a origem do som, cuja posição mudava constantemente. Não foi preciso procurar muito, pois em instantes um espírito de feições claramente femininas surgiu a uns dez metros de distância. Uma mulher jovem, talvez com vinte, vinte e cinco anos, não mais que isso. Trajava um longo vestido escuro, cobrindo seus pés. Na cabeça, um coque cuidadosamente arranjado, cingido por um diadema digno de uma rainha. Nem mesmo a dor que manifestava tão eloquentemente maculava a sóbria beleza de sua face ou o porte aristocrático. Pensei que, quando viva, devia frequentar a elite da sociedade carioca.

Deixei que passeasse livremente, sem demonstrar que podia vê-la. Queria entender a dinâmica de seus movimentos e comecei a segui-la discretamente. Determinei a Daguerra o procedimento a ser adotado por ser difícil para ele compreender o que ocorria, uma vez que ouvia a lamúria sem enxergar a lamuriante.

Seguimos seus passos até o meio-dia. A entidade não possuía uma rota definida. Perambulava a esmo, esquadrinhando cada campa disponível. Lamentava-se ininterruptamente. Notei que periodicamente suplicava por alguém. Incompreensível no início, a constante repetição permitiu reconhecer por quem chamava:

— Amélia! Amélia! Onde estás minha filha?

A julgar pelos informes trazidos por Daguerra deduzi que executava essa rotina diariamente. Faria isso desde sempre? Com que propósito? Eram questões importantes que urgiam ser respondidas. Ao passar da capela para a parte baixa, virou-se bruscamente. Detectara nossa presença.  Calou-se por um instante, mirando-me intensamente. Aproveitei a deixa para estabelecer contato:

— A senhora está bem?

Obviamente não estava. 

— Procuro por Amélia, minha filha. A vistes?

O forte sotaque oitocentista revelou tratar-se de alguém há muito desencarnado. Aproximei-me com cautela. Espíritos perturbados podem tornar-se agressivos. Nestes casos é aconselhável uma abordagem tranquilizadora.

Pedi a Daguerra que se posicionasse a minha frente, de modo a parecer que conversávamos. Seria muito desagradável se os passantes circulando no entorno pensassem que aquele maluco (eu) falava sozinho.

— Não sei de sua filha. Podemos procurá-la juntos. Poderias descrevê-la? Separaram-se há muito?

— Fomos juntas à Igreja dos Capuchinhos. Depois disso não recordo de tê-la visto novamente.

— Na Tijuca? - estranhei porque esta igreja foi inaugurada na década de 1930.

— Não!

Retrucou como se falasse a um néscio:

— No Morro do Castelo ...

De fato, existira uma Igreja dos Capuchinhos[1] ali antes do morro ser demolido. Esclarecido o engano parti para uma abordagem direta:

— Qual a sua graça?

Feita a pergunta ela evaporou no ar, reaparecendo a uns cinquenta metros da entrada. Ficou imóvel, olhando em nossa direção. Era um apelo. Corremos até ela para atendê-lo.

Meu companheiro ficara intrigado com a mudança de pranto para diálogo. Seguia-me mecanicamente, sem compreender o que fazíamos. Parar para explicar seria arriscado. Ela poderia mudar de ideia e sumir, retomando o ciclo de dor que a atormentava.

A encontramos junto a um ossuário individual, localizado na quadra reservada a esse tipo de jazigo. Consistia numa construção de base retangular revestida em mármore, adornada com elementos em estilo neoclássico. Numa das laterais destacava-se uma coroa - símbolo reservado aos detentores de títulos de nobreza. Os olhos aflitos da dama estavam fixos na parte frontal. Além do epitáfio encontramos um nome e as datas de nascimento e falecimento. 

— A senhora é a Quitéria que aqui repousa? - perguntei.

Assentiu com a cabeça. Indiretamente confirmava estar ciente de sua condição fantasmagórica. Com voz firme, quis saber:

— E vossas mercês, como chamam?

Feitas as apresentações tentei interrogá-la com muito tato. Necessitava de particularidades de sua vida que poderiam ajudar a descobrir quem havia sido e o que acontecera para que se encontrasse naquele estado deplorável. Já sabíamos a causa de sua permanência no plano material. Buscava a filha perdida.

A entrevista não durou muito. Sem qualquer aviso, desapareceu para surgir em outro ponto, distante. Podíamos ouvir as lamentações oriundas da parte alta. Peguei Daguerra pelo braço e o arrastei para um banco na praça vizinha. Abalado, precisava descansar.

Voltei ao meu apartamento e dei início as pesquisas de praxe. Ter a identidade e o período de existência dela entre os mortais facilitou enormemente o processo. Dificilmente disponho de informações tão precisas em casos similares. Além disso, por pertencer à nobreza, D. Quitéria era citada em vários jornais da primeira metade do século XIX. De uma edição do Selecta Fluminense, de janeiro de 1839, extrai a seguinte nota:

 

"N'este momento chega a notícia do triste acontecimento que teve logar com o infeliz Barão de Nictheroy. Na tarde do dia 15 naufragou na grande bahia a Sumaca Gaivota, que levava sua esposa, filha, tripulação, escravos e um moleque. Quasi todos pereceraõ affogados devido ao mao tempo e ventos contrarios. Os corpos de mae e filha foram encontrados encalhados em hum dos escolhos contíguos á Fortaleza da Lage enlaçados em derradeiro abraço. O Rio de Janeiro chora com inextinguiveis lágrimas essa perda fatal."

 

Interessante notar que nem a morte trágica das duas foi suficiente para que seus nomes fossem citados na matéria. A confirmação de que aludia ao naufrágio que vitimou D. Quitéria e Amélia só foi possível graças a inscrição gravada no ossuário, incluindo a data da morte de D. Quitéria e um dístico proclamando ser ela esposa do Barão e Primeira Baronesa de Niterói. Detalhe curioso: a "grande bahia" citada é a conhecidíssima Baia da Guanabara. Dando continuidade à consulta, ficou evidente que o Barão não subira a bordo da Gaivota naquele dia. Pelo visto, superou a perda com facilidade, contraiu novas núpcias e seguiu em frente, vindo a falecer anos mais tarde.

Não localizei nos periódicos de 1839 referências ao sepultamento das vítimas. De uma coisa tinha certeza: sabendo que D. Quitéria se afogara uma década antes da inauguração do Catumbi[2], alguém, em algum momento, exumara seus ossos e os transladara para lá. Minhas suspeitas, baseadas na posição social do casal na época do naufrágio, é que primeiro ela e a filha foram inumadas no interior de uma igreja. Posteriormente, apenas os restos mortais de D. Quitéria foram transferidos para o ossuário.

A segunda etapa do levantamento não foi tão simples.

***

Fim da primeira parte. A continuação foi publicada no dia 1º de fevereiro de 2024 (clique aqui para ler).


Notas

1. Originalmente, a Igreja de São Sebastião do Rio de Janeiro, ou Igreja dos Capuchinhos como é popularmente conhecida, localizava-se no Morro do Castelo. Contudo, em 1922, com o desmonte do morro, a igreja foi posta ao chão. O atual Santuário Basílica de São Sebastião (Igreja dos Capuchinhos) foi concluído em 1931 e fica no bairro da Tijuca, no Rio de Janeiro. Fonte: Santuário Basílica de São Sebastião. Voltar

2. O Cemitério da Ordem Terceira dos Mínimos de São Francisco de Paula, mais conhecido como Cemitério do Catumbi, é uma das principais e mais tradicionais necrópoles da cidade do Rio de Janeiro. O primeiro sepultamento foi realizado no dia 20 de maio de 1850 e já no seu primeiro ano de funcionamento foram enterrados cerca de três mil corpos, a imensa maioria de vítimas da epidemia de febre amarela que então grassava na Corte, além de 323 irmãos da Congregação, como atestam os documentos da Ordem. Em seguida foram para lá transladados cerca de 450 restos mortais, na sua maior parte da nobreza brasileira, que estavam sepultados na igreja de São Francisco de Paula. Fonte: Wikipédia : Cemitério de São Francisco de Paula. Voltar

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