Amor de mãe : possessão
Durante os meses que se seguiram à conclusão do caso da chácara assombrada (clique aqui para ver Como Nasce um Fantasma) o assédio de solicitantes aumentou consideravelmente, ao ponto de ter que realizar uma triagem para separar os pedidos de ajuda reais daqueles que visavam pura e simplesmente saciar uma curiosidade mórbida sobre minhas habilidades paranormais. Na época em que me vi envolvido com os acontecimentos relatados a seguir, eu havia trocado o número do meu telefone na esperança de ter um pouco de sossego. O que não impediu uma senhora de me abordar assim que passei pelo portão do edifício. Pelo visto, ela ficara de tocaia, aguardando aquela oportunidade. Antes que pudesse dizer qualquer coisa ela segurou meu braço com firmeza e disse num tom suplicante:
— O senhor precisa me ajudar ...
Ela tinha os olhos pequenos e vívidos, tais como os de uma tia muito querida que não está mais entre nós. Estavam marejados e seu rosto exprimia uma preocupação sincera, aniquilando minhas tentativas de ignorar o seu apelo. Peguei gentilmente em sua mão e a convidei para tomar um café numa padaria próxima, para onde nos dirigimos de braços dados. Eu curioso para saber do que se tratava. Ela com seu passinho miúdo de quem carrega um grande peso nas costas.
D. Helena, esse era seu nome, realmente tinha uma história para contar. Era uma pessoa simples, a quem os proventos da aposentadoria combinados com a alta do custo de vida haviam empurrado para uma atividade que exercia há alguns anos. Era cuidadora de idosos. Dizia ela que no decorrer dessa prática presenciara muitas coisas estranhas, algumas inexplicáveis. Acreditava ser dotada de poderes mediúnicos e, talvez por isso, percebesse coisas que aos outros passavam desapercebidas.
Tomava meu café e escutava atendo, observando o tremor de suas mãos. Era evidente que viera até mim por estar vivenciando algo terrível que, ao menos para ela, inspirava um terror genuíno e com o qual não se sentia segura em lidar.
Ela falava olhando para o interior da xícara, como se buscasse apoio na profunda escuridão de seu conteúdo. Lá pelas tantas ergueu o rosto e, finalmente, entrou no cerne da questão que a levara a me procurar:
— A paciente por quem sou responsável atualmente se chama Nair. Fui contratada por sua curadora, uma sobrinha, pois ela não tem marido ou filhos vivos.
— No início éramos em três, eu, outra cuidadora e uma enfermeira, de modo que continuamente havia alguém tomando conta dela. Fui designada para substituir a responsável pelo turno da noite, uma vez que ela abandonara o plantão inesperadamente, sem avisar. Ao fazer a rescisão, se negou a dar detalhes de seu comportamento e alegou estar farta do comportamento irracional de D. Nair.
— Tive pouco contato com as outras duas, que também abandonaram o serviço de forma abrupta, sem dar maiores explicações. Como mais ninguém se apresentou para trabalhar naquela casa, a sobrinha propôs que eu passasse a morar com sua tia. O aumento de salário e a economia com aluguel foram suficientes para me convencer a aceitar a proposta.
— A D. Nair que conheci era lúcida, apesar de seus 90 anos. Sem dúvida uma mulher forte para sua idade, geniosa, que não admitia ser contrariada. Ocasionalmente ficava agressiva. Mais de uma vez tentou me morder! Levei alguns tapas e tive que desviar de uma comadre arremessada com força e precisão. Já havia acompanhado pacientes malcriados antes e estava preparada para lidar com isso. Dentro desse contexto, pode-se dizer que as coisas corriam de forma relativamente tranquila.
— Digo relativamente por que é comum ouvir ruídos cuja origem não consigo identificar. Por vezes parece que alguém corre pela escadaria. Os degraus são de madeira e rangem compassadamente a qualquer hora do dia ou da noite. Risinhos abafados são constantes. Vez ou outra o som é de um choro contido. Também é comum ouvir murmúrios incompreensíveis que parecem lamentos. Objetos somem ou trocam de lugar. Certa feita encontrei a dentadura de D. Nair escondida atrás do espelho do toucador. Nessa época ela ainda andava, por isso pensei que ela mesma devia estar aprontando essas traquinagens de forma inconsciente.
Nesse ponto ela fez uma pausa. Pela tensão que deixava transparecer pela sua postura, parecia estar decidindo se contava ou não algo que poderia lhe comprometer.
— E tem a questão dos machucados...
— Então era isso - cogitei internamente.
— Começaram a aparecer marcas roxas em sua pele, como se alguém a agredisse com socos e beliscões. Por mais que insista ela se recusa a dizer a origem daquelas marcas. Juro pelo que há de mais sagrado que jamais fiz algo que pudesse feri-la!
— Este ano ela completa cem anos. Sua saúde decaiu bastante, principalmente depois que um derrame lhe tolheu o movimento das pernas. Está entrevada, por isso passa os dias deitada na cama. Se está mais disposta, coloco-a na cadeira de rodas e a levo até a varanda para tomar ar fresco. Há dois dias a deixei junto a uma janela do segundo andar. Era hora do lanche e desci para buscar chá com biscoitos. Ao voltar, encontrei-a na beira da escada, lívida, com as duas mãos agarradas no corrimão. Os olhos tinham uma expressão de pavor que me deixou assustada. Faltava pouco para despencar escada abaixo, com cadeira e tudo. Estávamos somente nós duas na casa. Como sei que ela é incapaz de se deslocar por conta própria, resolvi apelar por sua ajuda. Temo que ela possa estar sendo vítima de uma entidade sobrenatural.
— Ela está sozinha agora? Perguntei verdadeiramente preocupado.
— Não! Pedi a minha filha que ficasse com ela.
O relato de D. Helena chamou minha atenção mais pelas lacunas que percebi na história do que pelo relato em si. Guardava semelhanças significativas com outros casos que fora chamado a examinar. Em sua maioria, para desgosto dos solicitantes, nada havia de assombroso nos eventos supostamente paranormais. Pessoas idosas fazem coisas absurdas, até mesmo inexplicáveis, sem que tenham consciência disso. Casas velhas estalam - principalmente se são feitas de madeira. Some-se a isso um tanto de imaginação e o quadro está completo. Entretanto, a preocupação demonstrada por D. Nair era legítima. Prometi dar uma passadinha para ver de perto a situação e - é claro - verificar in loco se as suspeitas que despontavam céleres em minha mente tinham fundamento.
A casa de D. Nair ficava numa rua calma, transversal a extremidade final da Av. Maracanã. Um lugar onde alguns casarões ainda resistem à expansão imobiliária desenfreada que assola outros bairros da cidade do Rio de Janeiro.
A residência era um sobrado de dois andares, coberto com telhas francesas. Vista por fora, tinha um aspecto sóbrio e aparentava ser uma construção sólida. Abaixo da cumeeira havia uma janela pequena. A julgar pelo estado em que se encontravam os caixilhos, imaginei que estaria fechada há alguns anos. Talvez décadas. Acima dela, uma inscrição numa moldura de cimento anunciava o ano de sua construção: 1920. Fora isso, nada tinha de especial.
— Bem conservada para sua idade - pensei ao cruzar o portão que dava para um pequeno jardim.
Toquei a campainha e fiquei aguardando. Estranhei a demora em ser atendido, pois minha presença era aguardada. Toquei novamente e nada. Voltei ao jardim e chamei por D. Helena em voz alta. Alguns instantes depois vi seu rosto espiando através das cortinas da sala. Pressurosa, destrancou e abriu a porta da frente. Veio ao meu encontro secando as mãos no avental e perguntando:
— Por que o senhor não tocou a campainha?
Expliquei que havia tocado mais de uma vez e ela retrucou dizendo que não escutara, o que era estranho. Nesse ponto da conversa estávamos dentro da casa. A sala era uma peça ampla, dividida em dois ambientes por um par de pilastras decorativas. D. Nair, em sua cadeira de rodas, aguardava ao fundo, próxima a uma janela. A seu lado estava uma moça na faixa dos 25 anos que, pela semelhança, devia de ser a filha de D. Helena.
— Essa é Olívia, minha filha - confirmou ela. Achei melhor que ficasse aqui na casa comigo, tendo em vista o agravamento da situação.
Essa última frase não foi uma surpresa, mas era, sem sombra de dúvida, preocupante. Dei uma rápida olhada em torno e descobri o motivo da campainha não ter funcionado. No alto de uma parede, acima da passagem que levava à cozinha, era possível ver o carrilhão e a extremidade desencapada dos fios que chegavam até ele.
— Por isso não deu sinal - disse apontando para a instalação desfeita.
— Essa é recente - respondeu D. Helena, um pouco ofegante.
Enquanto isso, a dona da casa parecia não tomar conhecimento de nossa presença. Seus olhos reviravam o vazio em busca de algo. Ou alguém, que com certeza não éramos nós.
D. Helena e eu saímos para examinar a casa. Buscava por qualquer sinal de anormalidade. Não havia muito o que ver, a não ser as marcas que a idade havia estampado nas paredes e na mobília, bastante desgastada. Por fim chegamos a uma saleta no segundo andar, uma espécie de cômodo de passagem. O acesso se dava por uma escada que vinha do térreo ou por um pequeno elevador utilizado para movimentar D. Nair em sua cadeira de rodas. Havia outra escada - que levava ao sótão -, bem como um corredor onde se enfileiravam as portas dos dormitórios e de um banheiro. Pedi para ver o quarto onde a dona da casa dormia. Uma extensa mancha - provavelmente uma infiltração - se destacava no fundo branco da forração de gesso. Percebendo meu interesse, D. Helena comentou um pouco embaraçada:
— Não há tinta que dê jeito. A mancha insiste em voltar.
— Examinaram o interior do forro? Pode ser consequência de alguma goteira.
— Não há como. A porta de acesso ao sótão está trancada e D. Nair não lembra aonde colocou a chave.
Voltamos a saleta, que também servia como área de estar. O cômodo era parcamente mobiliado. Apenas três poltronas dispostas em torno de uma mesinha de centro, mais um aparador encostado na parede. Pendurado acima dele, um quadro a óleo reproduzia uma típica cena familiar. Um senhor de bigodes bem aparados, elegante com seu terno risca de giz. No bolso superior despontava um lencinho branco, acessório típico da década de cinquenta do século passado. Estava sentado, com as pernas cruzadas, numa cadeira sem braços. Atrás dele a esposa, trajando um fino tailleur azul marinho, e, junto a ela, uma garotinha num vestido branco.
— É o retrato da família de D. Nair. O marido e a filha morreram há anos - informou a cuidadora.
— E quem é o responsável por isso?
Perguntei não para saber o nome do artista e sim por que alguém havia furado os olhos da mulher e riscado sobre a pintura, ao lado da menina, uma figura pretensamente humana.
— Não faço ideia. Está assim desde que cheguei.
Ao examinar o estrago que a tela sofrera ouvi, baixinho, um riso maroto, como o de uma criança que aprontou alguma arte e conseguiu escapar do castigo. Pelo olhar repentinamente alerta de minha acompanhante tive certeza de que não fora mera impressão.
Antes que pudesse sugerir que chamássemos um chaveiro para destrancar a porta que levava ao sótão, um grito vindo do primeiro andar prendeu nossa atenção.
— Mãe, é melhor vocês virem aqui - chamava a filha de D. Helena.
Descemos rapidamente e encontramos D. Nair agitada. Parecia querer sair da cadeira de rodas a qualquer custo e Olívia precisou contê-la. D. Helena foi à cozinha e voltou com um copo d'água e calmantes. Eu pedi que esperasse.
Ajoelhei-me em frente a cadeira e coloquei minhas mãos sobre os braços murchos da velha senhora. Ela parou de se mexer e começou a falar comigo, clara e pausadamente:
— Ela está aqui, eu sei que está. O senhor a viu?
— A quem a senhora está se referindo? - Indaguei.
— Àquela ingrata!
Falou como se todos os presentes soubessem de quem se tratava. Seu olhar era de fúria:
— Ela vai ver só. Não é por que estou velha que não posso dar a ela a lição que merece.
D. Helena ministrou a medicação e aguardamos alguns minutos até que D. Nair se acalmasse. Chamei a cuidadora num canto e recomendei:
— Ela não pode ficar sozinha. Em hipótese alguma. Fiquem atentas e me chamem se algo de anormal acontecer.
Dito isso despedi-me e tomei o rumo da rua. O que precisava ver estava visto. Agora era hora de fazer o dever de casa e descobrir o que se escondia por trás das palavras rancorosas da velha senhora.
As perspectivas que antevia para esse caso não eram as melhores. Era evidente que uma energia oriunda de outro plano atormentava a idosa. Mas quem? E por qual motivo? O tempo estava contra ela e temia não conseguir resolver o enigma antes que algo de ruim lhe acontecesse.
D. Nair podia ser vítima no presente, todavia tudo apontava na direção de um revide. Algum desafeto a atormentava como forma de reparação de alguma ofensa recebida no passado. Pela intensidade dos ataques, o ressentimento dessa entidade devia ter origem em algo sério o suficiente para perdurar por décadas.
A principal dificuldade foi conseguir informações confiáveis do período de juventude de D. Nair, pois não restavam familiares contemporâneos a ela. Comecei fuçando na Hemeroteca Digital. Aos poucos fui reconstituindo sua trajetória com base nas publicações que localizei em colunas sociais, obituários e até mesmo na crônica policial.
Resumindo: D. Nair era uma completa desconhecida até 1938, ano em que se casou com toda pomba e circunstância com um garboso oficial da Marinha Mercante Brasileira. A partir daí, passou a ser presença constante na high society carioca, tendo sido incluída, mais de uma vez, nos destaques da coluna que Ibraim Sued assinava no jornal Tribuna da Imprensa.
Em 1939 nasceu Camila, a primeira e - até onde se sabe - única filha do casal.
Infelizmente o temperamento irascível da jovem senhora a arrastou para menções menos honrosas nos tabloides da época. Numa dessas ocasiões, ela fora conduzida a uma delegacia para prestar esclarecimentos a respeito de uma acirrada discussão com uma vizinha. Dos xingamentos, a rusga evoluíra para a agressão física. De acordo com a matéria, D. Nair partira para cima da desafeta porque essa afirmou duvidar que a menina nascera prematura, insinuando que o motivo do parto se dar seis meses após o casamento era outro.
Em 1952 mãe e filha sofreram um duro golpe com o desaparecimento do marido e pai devido a um naufrágio ocorrido em alto-mar. A partir daí as coisas parecem ter saído um pouco do controle.
Para saber mais sobre a parte privada da vida familiar tive de conversar com a sobrinha. D. Helena se encarregou de preparar o terreno e fazer as apresentações, de modo que, felizmente, ela concordou em me receber sem fazer maiores perguntas. Por ser a filha mais nova de uma irmã do marido de D. Nair, não vivenciara pessoalmente os primeiros anos da vida do casal. Trouxe a tona apenas os comentários que ouvira de sua mãe. Eram fragmentos de memórias, mas graças a eles foi possível obter detalhes preciosos que ajudaram a compor o quadro geral.
De acordo com esses relatos, o casamento de seu tio com D. Nair nunca foi bem aceito pela família dele justamente pelo temperamento controlador e até violento da pretendente. A gravidez precoce precipitou os fatos e eles tiveram que concordar com as núpcias como forma de evitar a desonra da noiva.
A presença do marido era quem garantia uma convivência relativamente harmoniosa entre os três, pois ele conseguia fazer valer sua autoridade paterna e coibir os excessos de D. Nair. Com o seu desaparecimento, a mãe ficou livre para exercer um controle doentio sobre a filha que, pelo que se sabe, herdara dela o temperamento explosivo.
Ao completar 15 anos, Camila caiu de amores por um rapazola da vizinhança - o qual era considerado um desqualificado por parte de D. Nair. As relações entre as duas, que não eram boas, azedaram por completo. As brigas eram constantes e cada vez mais intensas. Com assustadora frequência os vizinhos, os parentes e a polícia tiveram que intervir para serenar os ânimos. Nos idos de 1954, após uma discussão que varou a madrugada, Camila sumiu. Para quem perguntasse, D. Nair dizia que ela simplesmente fugira de casa. Quem conhecia a moça sabia que isso era bem possível. Com a calma finalmente restaurada, todos se conformaram com a versão da fuga e nunca mais se falou na menina desaparecida.
De posse de todas essas informações, liguei para D. Helena e agendamos uma outra visita. Preparei uma mochila com mudas de roupas e itens básicos, precaução importante caso tivesse que permanecer na casa por alguns dias. Na data combinada estava de pé no jardim, batendo palmas. A campainha ainda não fora consertada e essa é uma forma antiquada, porém eficiente, de chamar a atenção dos moradores para a presença de um visitante.
A natureza dos fatos exigia uma abordagem cautelosa, sem garantias de sucesso. Expus meu plano para a cuidadora que demonstrou alguma relutância em aceitá-lo, alegando, com razão, que se algo desse errado a responsabilidade seria dela.
— É verdade - retruquei -, mas se não fizermos algo logo o desfecho será inevitavelmente trágico.
No início da tarde levamos D. Nair para a saleta de estar do segundo piso e a posicionamos ao lado do aparador. Ao sairmos, ouvimos ela dizer num tom que beirava o desespero:
— Não me deixem aqui sozinha!
A peça estava imersa na semiobscuridade do fim de tarde. Subitamente, uma fraca luminescência emergiu da abertura que levava ao sótão. Emanava de uma jovem de aspecto macilento, com os cabelos desgrenhados. Trajava um vestido andrajoso, de aspecto repulsivo. Na frente, uma grande mancha escura cobria a parte que ia da cintura à barra da saia.
D. Nair agarrou-se aos braços da cadeira e crispou os lábios. Era evidente que não a temia como aparição, provavelmente por tê-la visto inúmeras vezes. Seu temor advinha do fato de não ter forças para enfrentá-la, como fizera no passado.
O espectro ficou pairando em frente a ela, como se a provocasse. Pela expressão em seu rosto era possível perceber que se deleitava com a reação da velha indefesa. No momento em que ergueu os braços e fez menção de avançar sobre sua vítima, emergi das sombras e falei com voz firme:
— Olá, Camila!
O fantasma virou o rosto e nos fitou, curiosa. D. Helena estava ao meu lado, aturdida pela aparição que via pela primeira vez. Aproveitei que os efeitos do elemento surpresa ainda não haviam passado para explicar quem eu era e por que estava ali. Ela ouviu calada, sem se mexer. Ao final de minha explanação, fez um gesto com a mão, indicando que deveria segui-la.
Fui subindo os degraus da escada que levava ao sótão cautelosamente. Minha guia atravessou a porta que havia no topo. Como não foi possível localizar a chave para destrancá-la, tive que apelar para um pé de cabra.
Camila aguardava pacientemente, brilhando como um farol na escuridão. Através dela podia ver os raios de luz que penetravam pelas frestas das telhas francesas. Percebi que a mancha em seu vestido começara a esmaecer.
Pedi uma lanterna à D. Helena e sinalizei que podíamos prosseguir. O lugar deve ter servido de depósito em alguma época, considerando a quantidade de tralhas cobertas de poeira espalhadas ao acaso. Ela foi avançando indiferente a tudo, até chegar a uma parede de tijolos maciços sem reboco, onde havia uma porta de ferro trancada com um cadeado. Era evidente que ela queria que eu visse o que estava escondido ali dentro. Como o pé de cabra se mostrou inútil, recorri a um cinzel e uma marreta para quebrar a tranca. Depois de algum esforço, a porta finalmente cedeu, deixando escapar uma atmosfera nauseante, típica de lugares alijados da luz e do ar fresco. Não havia janelas e as paredes estavam pintadas de preto.
O facho da lanterna clareava a peça por etapas, dificultando a percepção do todo. Quando entendi do que se tratava, recuei horrorizado. Nem as minhas piores suspeitas foram capazes de prever os acontecimentos macabros que ocorreram naquele lugar. Camila ficara do lado de fora, de cabeça baixa, incapaz de reviver a dor daquelas memórias.
Um lampejo de luz chamou minha atenção. Era D. Helena que trazia uma extensão com uma lâmpada na ponta. Estava parada no vão da porta de entrada do sótão, creio que intimidada pela presença de Camila.
— Traga a luz mais para perto, por favor - pedi a ela.
Um tanto receosa D. Helena se aproximou e fez menção de entrar no quarto escuro. A impedi com um gesto.
— Não podemos entrar aí. É uma cena de crime.
Do ponto onde nos encontrávamos, iluminei o interior do cativeiro como pude. No chão, alguns trapos e o que parecia ser uma jarra grosseira de cerâmica. No canto a direita, uma cama de ferro presa à parede com rebites. Sobre ela, uma enxerga em frangalhos, onde tufos de palha escapavam por entre os rasgos do tecido do forro. Sentado no chão, com as costas apoiadas no estrado, o corpo mumificado de uma menina, ainda coberto com os farrapos de seu vestido de festa. No pulso esquerdo, uma algema ligada a uma corrente curta, chumbada no piso de cimento. Uma protuberância na região pélvica chamou nossa atenção. D. Helena não pode reprimir um grito de espanto:
— Meu Deus, ela estava grávida!
Com certeza estava. E com certeza a gravidez fora o motivo de sua condenação a esse triste desfecho. Restava apenas saber se ela morrera durante o parto ou se tratava de uma extrusão fetal post mortem. Por causa do estado em que se encontravam os cadáveres, nem a autópsia realizada posteriormente foi capaz de esclarecer.
A polícia foi chamada. Durante o inquérito D. Nair ainda tentou se defender alegando não saber do que se tratava. Fingiu demência e apelou para sua condição de saúde extremamente frágil. A encenação até poderia ter dado certo. Para seu infortúnio, os investigadores localizaram os arquivos que estavam escondidos no sótão. Ali, arquivados em rigorosa ordem alfabética pelo nome do fornecedor, encontraram recibos os mais variados. Inclusive os de fornecimento de materiais de construção e mão-de-obra, datados de 1954. Também foi encontrado um livro diário escrito a mão, com a caligrafia dela, onde eram lançadas as despesas da casa. Nele constava uma rubrica curiosamente chamada de "Resguardo da Honra". Era muito organizada, essa D. Nair.
Acuada pelas evidências - e talvez por estar assessorada por um advogado confiante no fato do crime estar prescrito - ela concordou em dar a sua versão dos fatos:
— Camila era uma menina difícil. Desobediente desde a mais tenra idade. Precisava de um pulso firme que a dominasse. Meu marido - que Deus o tenha - era muito apegado a ela e a protegia. Somente após a viuvez, pude dar a ela a educação que deveria ter dado desde o berço. Ou ao menos tentei. Ela estava crescida e fazia questão de me afrontar sempre que lhe dava vontade.
— Ao completar 15 anos começou a namorar um João Ninguém - realmente não lembro o nome dele. Creio que se conheceram na festa de debutante, mas isso não importa. O fato é que naquela noite maldita ela veio me pedir ajuda. Estava grávida e não sabia o que fazer. Enfurecida, tentei lhe aplicar um corretivo e brigamos feio. Por fim acertei um golpe em sua cabeça e ela desmaiou. Aproveitei para amordaçá-la e amarrá-la. A mantive presa em seu quarto até que a obra no sótão estivesse concluída.
— Não tinha intenção de matá-la. Era para ser apenas um castigo. Logo que a transferi lá para cima, tratei de prendê-la pelo pulso para que não pudesse fugir. Ao tirar a mordaça ela começou a gritar e eu tive medo que os vizinhos a escutassem e chamassem as autoridades.
— Apliquei-lhe outro golpe para que desmaiasse. Fui a cozinha e voltei com uma faca afiada, a qual usei para cortar-lhe a língua. É por isso que ela não consegue falar.
Nesse ponto os presentes ao inquérito se entreolharam sem entender.
— Achei que desse jeito seria melhor. Sem ter como falar ela não poderia mais retrucar ou me afrontar, como era de seu costume.
— Não sei dizer exatamente quantos meses a deixei presa naquele quarto. Só sei que numa determinada manhã subi para levar o café e me deparei com ela morta no chão, como vocês a encontraram. Saí, tranquei a porta e nunca mais voltei.
Após essa confissão o processo foi dado como concluído. Considerando a época em que os crimes foram cometidos, o estado de saúde e a idade da ré, não houve condenação. Por se recusar a voltar à casa, D. Nair foi internada numa clínica de repouso, onde foi tratada como doente mental até o fim de seus dias.
Pela minha experiência em casos como esse, um espírito preso ao plano material estaria pronto para seguir seu caminho assim que fosse resolvida a questão que deixara inacabada em vida. Não foi o que aconteceu com Camila. Ou melhor dizendo, o esquecimento a que fora relegada e a impunidade da mãe não eram o motivo de sua permanência entre nós. Fiquei apreensivo com os rumos que as coisas poderiam seguir a partir daí. Com a conclusão do inquérito e a internação da tia, Ester - a sobrinha curadora - poderia querer se desfazer do imóvel sem tomar conhecimento da inquilina que ocupava o sótão. Por isso a convidei para ir comigo visitar a residência.
Contei do que se tratava e ela fingiu surpresa, fez suspense e por fim aceitou. Era evidente que suspeitava que havia algo nessa história além do que veio à tona nos últimos meses.
Ao chegarmos, fomos direto para a saleta do segundo andar. Não foi preciso esperar muito para que um brilho suave anunciasse a presença de Camila. Agora ela vinha diferente. A transformação iniciada no dia em que nos conhecemos estava quase completa. Seu rosto era de uma bela jovem, embora seu semblante revelasse uma profunda melancolia. O vestido estava impecável e o cabelo arrumado lembrava o que Audrey Hepburn usara em Bonequinha de Luxo. Um pouco emocionado pela solenidade da ocasião, fiz as apresentações:
— D. Ester, essa é Camila. Sua prima.
Por um segundo pensei que ela ia surtar e sair correndo. Felizmente conseguiu se controlar e retribuir com uma breve reverência ao olhar carinhoso que lhe era dirigido. Ficamos os três em silêncio, até Camila se afastar e retornar ao sótão. Em seguida descemos e nos dirigimos a cozinha, onde D. Helena havia posto a mesa para um café. Entre um biscoito e outro, Ester concordou em manter a casa pelo tempo que fosse necessário. Camila ficaria sob a responsabilidade da ex-cuidadora de D. Nair. Aquela parte da minha missão estava concluída.
Quanto a mim, insatisfeito com a situação daquela alma atormentada, continuei frequentando a residência. Numa de nossas conversas silenciosas, perguntei objetivamente o que a prendia àquele lugar. Camila deslizou até o quadro e acariciou o rabisco que fizera ao lado de sua imagem. A seguir, colocou a mão sobre o ventre e sumiu. Pude ouvi-la descontar a frustração nos objetos que ainda estavam guardados no sótão. A gravidez despertara nela um forte instinto maternal e a morte do filho, da maneira cruel como se dera, deixara um vazio que parecia impossível de preencher. Cheguei a pensar que esse era um caso sem solução. Que ela estaria condenada a vagar com sua dor até o dia do Juízo Final. Felizmente o destino quis diferente e a ajuda veio de onde menos podia esperar.
* * *
Fim da primeira parte. Para ler a segunda parte, O Jardim dos Condenados, clique aqui.
A primeira coisa que me chamou atenção foi a escolha cuidadosa das palavras e as boas descrições de cenários. Isso ajuda bastante o leitor a entrar no clima.
ResponderExcluirFoi uma descoberta bem triste sobre Camila. Indo pra segunda parte agora.
Não foi fácil escrever sobre o destino de Camila. Felizmente nem tudo está perdido para ela!
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