Amor de mãe : o jardim dos condenados

Segunda parte do conto Amor de Mãe - para ler a primeira parte, clique aqui.



A permanência de Camila no plano material gerou em mim um profundo sentimento de frustração por não ter conseguido ajudá-la a fazer a passagem. Sabia que a decisão era única e exclusivamente dela, que seus motivos eram plenamente compreensíveis, mas nem isso afastava de mim o desejo de vê-la, finalmente, seguir seu caminho em paz.

Mantive uma rotina de visitas regulares ao casarão. A tranquilidade que reinava no ambiente proporcionava uma fuga da vida agitada e das constantes solicitações de ajuda. Antes de ir embora, D. Helena preparava um café com bolinhos, servido na mesa da cozinha. Por vezes Camila surgia e ficava observando os mortais conversando sobre trivialidades cotidianas. Ela achava graça de novidades que não chegara a conhecer, como telefonia celular, internet e sinal de wi-fi.

No comecinho do inverno recebi uma mensagem de uma amiga que estava na região serrana do Rio de Janeiro. Ela exercia uma profissão incomum na época. Era guardadora de luto. Basicamente, dedicava-se a dar destino aos bens de pessoas falecidas, colocando-os a venda em seu brechó, localizado numa galeria de Copacabana. Dizia estar com dificuldades em dar cabo de um atendimento devido a contratempos ocasionados, seguramente, por uma força sobrenatural.

— Um fantasma? - indaguei na resposta que enviei a ela.

— Difícil dizer. Venha depressa! - respondeu na sequência.

Uma mudança de ares era o que precisava para espairecer e um passeio pela região serrana é sempre bem-vindo. Nem preciso dizer que a mera sugestão de um novo mistério pesou na minha decisão de partir em seu socorro. No dia seguinte, cedinho, estava na Rio-Petrópolis, cantarolando ao volante.

Passei pelo pórtico da cidade e segui por alguns quilômetros até chegar a uma estrada secundária. Seguindo as orientações do GPS, rodei por ela outro tanto. A seguir, enveredei por uma estradinha de chão batido e cheguei ao meu destino, um sítio localizado em um vale, as margens de um regato. Para ter acesso a ele foi necessário passar por uma ponte de madeira precária, que não inspirava confiança. Era um lugar bucólico, muito bonito - e também muito isolado. Quem quer que morasse ali tinha que andar um bocado para esbarrar com um vizinho.

Avisei Fernanda, a guardadora de luto, que estava próximo e ela foi me esperar na trilha que conduzia até uma casa térrea, construída em uma clareira. Feitas as saudações iniciais, perguntei admirado:

— Como descobristes esse lugar?

— Foi indicação de um contato que mantenho na funerária que atendeu a família da falecida. Pelo visto ela gostava de morar sozinha. A casa está repleta de antiguidades. Se conseguir retirá-las daqui vou vender por um bom dinheiro.

— Imagino que por isso eu esteja aqui ...

— Pode apostar!

Ela me convidou a entrar. Avistei uma velha cadeira de balanço, muito convidativa, e me dirigi até ela. Fernanda riu e me passou um mochinho dizendo:

— É melhor não mexer aí. Senta aqui que é mais seguro.

Nos acomodamos no hall de entrada, perto da porta.

— Tem muito lixo, mas também artigos de alto valor.

Fernanda falava e olhava para os lados, como se procurasse um item específico.

— Trocaram tudo de lugar novamente.

— Quem trocou o que de lugar? - perguntei.

Para responder minha pergunta ela contou a história toda, desde o início.

Assim que recebeu a dica do olheiro, entrou em contato com a família da senhorinha recentemente falecida e ofereceu seus serviços. Quem a atendeu aceitou prontamente. Pelo visto, ela vivia afastada dos parentes e estes não faziam questão de conviver com ela. Ter alguém que se responsabilizasse pela limpeza do lugar era um alívio. Dessa forma, os herdeiros poderiam se desfazer rapidamente da propriedade e esquecer o assunto.

No dia seguinte à assinatura do contrato, viera com um caminhão e dois auxiliares para dar início à mudança. Desembarcaram, examinaram a casa, deram uma volta pela propriedade e nada de estranho foi constatado. Os problemas começaram no momento em que retiraram os pertences do lugar. Fernanda marcava as peças que os rapazes transportavam para o caminhão. Na primeira tentativa, um deles pegou um abajur e "alguém" tentou tomá-lo de volta. Ele puxou a peça com força e a levou consigo. O fenômeno se repetia cada vez que eles carregavam algo. Parecia que os artigos estavam presos a algum tipo de mola. No meio da manhã fizeram uma pausa. Ao voltarem, os itens que haviam sido acondicionados na carroceria haviam retornado para a casa. As papeletas com as marcações de Fernanda estavam espalhadas ao acaso. Enraivecido, um dos auxiliares agarrou a cadeira de balanço para tirá-la dali. Fernanda teve dificuldades em descrever o que aconteceu a seguir. Foi como se uma entidade muito forte estivesse revoltada com a presença dos três. O rapaz que tentara pegar a cadeira foi agredido com violência por uma força invisível, que o empurrou para fora da casa e o derrubou. Ao se levantar, estava arranhado, com marcas nos braços, como se alguém o tivesse agarrado com força. Durante o episódio, o outro ajudante recebeu uma pancada na cabeça. Com muita insistência, ela conseguiu que eles voltassem para o interior da casa. Bastou colocarem os pés na sala para que a reação violenta ocorresse novamente. Os dois fugiram apavorados. Antevendo a possibilidade de arcar com um tremendo prejuízo, Fernanda resolveu apelar para minhas habilidades.

— Depois disso, reparei que tudo muda de lugar sem causa aparente. Basta eu sair um instante. Quando volto, está tudo mexido.

— E esses banquinhos? Por que não há reação se estamos sentados neles?

— São meus. Sempre os trago comigo no porta-malas do carro. 

Não tinha motivos para duvidar do que Fernanda contava. Apenas achava estranho não captar qualquer vestígio dessa força misteriosa da qual ela tanto falava. Investigamos o interior da casa, sem tocar em nada, e fomos para a parte externa. O sítio não era muito grande. O terreno estava tomado pelo mato, devido a falta de manutenção desde a morte da proprietária. Resolvi concentrar minhas buscas em um pátio localizado nos fundos da residência.

Era uma área ampla, calçada com lajotas que formavam um grande círculo. Sobre ele, um caramanchão feito com pilastras de concreto e vigas de canos galvanizados. Estava coberto por algum tipo de trepadeira, parecendo ser um ótimo refúgio nos dias de calor. Completando o cenário, havia um banco de jardim no centro e nove vasos enormes dispostos na periferia do calçamento. Quatro desses vasos continham pés de antúrio. Os outros cinco, cartucheiras.

Semicoberto pelo capim, um velho galpão de madeira dava um toque pitoresco ao local. Era utilizado como depósito de ferramentas, insumos e alguns móveis que já não tinham serventia para a antiga moradora.

— Quer dar uma olhada lá dentro? - perguntou Fernanda.

— Talvez mais tarde - respondi.

Uma figura humana surgira na penumbra, junto de um cortador de grama escangalhado. Decididamente não pertencia ao plano material. Perguntava a mim mesmo se ele tinha consciência disso. 

— Consegues vê-lo? - perguntei.

— Quem? - respondeu Fernanda, dirimindo qualquer dúvida que poderia haver sobre a natureza da aparição.

Era um homem na faixa dos trinta anos. Cabelos pretos, curtos. Barbudo. Vestia roupa de trabalho,  calçava botas de borracha e um par de luvas de aparas de couro, próprias para trabalho pesado. Devia ter sido agricultor, pedreiro, algo assim. De repente sumiu. Talvez estivesse apenas curioso. Ou talvez fosse o responsável pelas atividades paranormais relatadas por Fernanda.

Pedi a ela que voltássemos a casa. Precisava fazer um teste para saber com o que estávamos lidando. Ao pisar na soleira da porta de entrada confirmei a veracidade do que ela havia dito anteriormente. Tudo que estava sobre a mobília pesada havia trocado de lugar, assim como alguns móveis de menor porte. Com exceção da cadeira de balanço. Essa permanecia do mesmo jeito que a deixara.

Disse a Fernanda para ficar do lado de fora, observando. Ao entrar na sala, senti uma forte vibração no ar, diferente de tudo que já havia experimentado até aquele dia. O responsável pela movimentação dos objetos rondava por ali e pressentia minhas intenções. Devagarinho, me acerquei de alguns jornais que estavam em uma cadeira. Sobre eles havia um cachorrinho de biscuit. Conforme me aproximava da estatueta, a tensão aumentava. Fiz que ia pegá-la e fui empurrado para fora, sem que pudesse descobrir por quem. Foi tudo muito rápido, mas arriscaria dizer que vi um clarão, como se tivesse sido atacado por uma faísca gigantesca, quase um raio. Levantei, tratei de me recompor e tornei a entrar no recinto.  Um pandemônio pairava no ar, dominando o ambiente por completo. Soava como um murmúrio enraivecido. Captei sentimentos desordenados e medo, sinais próprios de alguém que está perdido e precisa ser orientado. Entretanto, eu só poderia ajudar se a entidade se manifestasse e entrasse em contato comigo. Fiz várias tentativas infrutíferas de comunicação. Cansado, dolorido e frustrado, fui ter com Fernanda.

— Eles são terríveis!

Fernanda estava há uns cinco metros de distância. Não fora ela quem falara. Ao virar, dei de cara com o sujeito do galpão de ferramentas. Ele viera por trás de propósito, para me pregar um susto. Eu não estava para brincadeiras e falei rispidamente:

— O que está acontecendo aqui?

Quem tomou um susto foi ele! Ficou translúcido, quase sumiu. Se recompôs e pediu desculpas pela brincadeira inoportuna. Fernanda não podia vê-lo, por isso pensou que eu estivesse falando sozinho e se aproximou para averiguar o que estava acontecendo.

— Tem um sujeito aqui metido a engraçadinho. Acho que ele está se divertindo assustando as pessoas que entram na casa - expliquei.

— Não moço - disse ele - não é nada disso!

— Então desembucha logo, porque a minha paciência está no limite.

Josimar, o fantasma metido a engraçadinho, era boa praça, apesar do comportamento levemente infantil, incompatível com a sua idade. Agora que podia vê-lo de perto, notei que estava coberto de terra, algo que ia além de sujar-se por trabalhar na roça. Contou ele que, no tempo em que era gente, atuava como  faz-tudo para os moradores da região, inclusive para D. Eulália, a ex-dona do sítio onde estávamos. Tido como pessoa de confiança e excelente jardineiro, era muito requisitado e querido por quem o conhecia. Algumas paixões são fatais. No caso dele, o amor pelas flores foi a razão da sua morte - em todos os sentidos possíveis e imagináveis.

A tragédia se deu no dia em que D. Eulália o chamou para limpar e preparar o terreno para o cultivo. O sítio era produtor de hortaliças e ele fora encarregado de cuidar da lavoura, uma tarefa que lhe garantia um pagamento generoso por parte da boa senhora. D. Eulália tinha outras ocupações, ligadas a área da saúde. Pelo que se sabia, trabalhava como doula e parteira, tendo auxiliado um número considerável de mulheres a concretizar o sonho da maternidade. Ela mesma não tivera filhos e gostava de se definir como uma solteirona convicta.

Ao retornar da lida, Josimar avistou um pé de antúrio que não estava bem. Como sempre fora tratado com respeito por D. Eulália, quis retribuir sua bondade com uma gentileza. Graças aos seus conhecimentos de jardinagem não teve dificuldades para detectar a origem do problema e se pôs a trabalhar no vaso com o intuito de arejar o solo e adubá-lo. Ao cravar a pá um pouco mais fundo sentiu que tocara em algo duro. Provavelmente uma pedra. Ao remover o obstáculo deparou-se com um  crânio humano minúsculo, ainda úmido e com alguns vestígios de pele.

— Ele cabia na palma da minha mão. No início não percebi o que era...

Enquanto examinava o achado, viu D. Eulália se aproximar com duas xícaras de chá em uma bandeja.

— Vejo que meu antúrio preferido está sendo bem tratado - disse ela com um sorriso.

— Deixa isso aí e descanse Josimar. Você parece abatido.

Não querendo desagradar a patroa, que estava sendo tão gentil, ele recolocou o crânio no lugar, retirou as luvas grosseiras e sentou no banco onde D. Eulália aguardava com sua bandeja prateada. Ela lhe ofereceu uma xícara com o chá que bebeu despreocupadamente. Se tivesse prestado  atenção, veria que o sorriso que ela ostentava tinha um brilho sádico. E que o chá exalava o aroma das flores de cartucheira. Não demorou muito para que a infusão surtisse efeito. Em seu estado de confusão mental, deixou-se conduzir até uma das valetas de irrigação que abrira naquela tarde. Estava semiconsciente ao ser empurrado para dentro e receber as primeiras pazadas de terra. Depois, só lembrava de ter acordado debaixo do caramanchão e de ter a estranha sensação de não pertencer ao mundo dos vivos.

A partir dessas revelações, comecei a ter uma visão mais clara da situação. Com base na descrição que Josimar fizera, deduzi que o crânio pertencia ao cadáver de um recém-nascido. Se havia um, poderia haver outros. 

Perguntei a ele se tinha visto algum espírito em forma de criança na casa e ele respondeu que sim. Vários.

Nesse ponto a suposição deu lugar a certeza. Os vasos eram mais que elementos decorativos. Eram sepulturas. Presumindo que ela escondera um corpo por vaso, deveriam haver pelo menos nove outros. A motivação e os métodos de D. Eulália eram, para mim, irrelevantes. Estava preocupado com as almas precocemente desencarnadas. O nascimento seguido de morte deve tê-las deixado em profunda perturbação espiritual. Essas criaturinhas não chegaram a entender que estavam vivas, nem tinham maturidade para absorver o impacto de sua traumática desencarnação. Permaneceram no plano material por não saberem aonde ir e por estarem conectadas a seus corpinhos, enterrados naquelas floreiras horrorosas. Um verdadeiro jardim de condenados. Eram elas a fonte das manifestações enigmáticas no interior da residência. 

Repassei a Fernanda tudo que Josimar revelara, bem como meu pressentimento sobre as consequências dos desatinos de D. Eulália.

— Temos que chamar a polícia - foi sua primeira reação.

— Vamos chamar, mas antes preciso resolver o problema da agressividade delas. Os crimes ocorreram há anos. Podem aguardar três ou quatro dias para virem a público.

Uma possível solução aflorara em minha mente. Para ter certeza de sua viabilidade, pedi algumas informações adicionais ao jardineiro:

— D. Eulália tinha consciência que crianças falecidas permaneciam ao seu redor?

— Creio que não. Se sabia, nunca demonstrou. Tentei me comunicar com ela algumas vezes e foi inútil.

— Qual o papel da cadeira de balanço nessa história?

— Era o lugar preferido de D. Eulália. Principalmente nos últimos anos de vida. Ela sentava ali e as alminhas ficavam em volta, como que pedindo colo.

Essa última informação confirmou o que já suspeitava. A influência exercida por uma figura materna tinha o poder de amenizar a angústia dos pequenos, permitindo que se manifestassem pacificamente. Entretanto, acalmá-los não era o bastante. Para que pudessem evoluir - e seguir em frente -, precisavam se sentir amados. Algo que suas mães lhes negaram e aquela megera fora incapaz de dar.

Para colocar meu plano em ação, voltei ao Rio. 

Assim que cheguei na cidade fui direto ao casarão. Relatei os acontecimentos recentes a D. Helena, que escutava sem poder conter a emoção causada pelo destino dos bebês assassinados. Camila pairava próxima, tão atenta que parecia brilhar com intensidade redobrada. Nem precisei lhe explicar minha ideia. Nossa conexão era tão forte que era como se ela pudesse ler meus pensamentos. Sumiu antes que concluísse meu relato. E eu adivinhava para onde tinha ido.

No dia seguinte tomei o rumo da serra e retornei ao sítio, onde Fernanda me aguardava ansiosa. Camila  surgira no início da noite anterior e sinalizara a ela que estava tudo bem. Era a primeira vez que minha amiga via um fantasma e isso a desconcertou. Não tanto por ser um espectro, mas por ser bonita, ao contrário do senso comum a respeito do assunto.

— São todos assim? - perguntou ela.

— Negativo. Apenas os que estão em paz consigo mesmo. São raros!

Camila estava dentro da casa. Fomos até lá para dar uma espiada e ficamos admirados com a quantidade de bebês que encontramos, bem superior a minha estimativa inicial. Ela estava sentada na cadeira de balanço, com três no colo. Os demais estavam espalhados pelo chão, entretidos com atividades típicas de criança. De tempos em tempos ocorria um rodízio. Alguns subiam, outros desciam e assim desfrutavam das atenções daquela mãezinha improvisada em perfeita harmonia. Ao cabo de alguns dias ela me chamou, desenhou com a ponta do dedo uma casa no ar e sumiu, levando a gurizada com ela. Entendi o recado. Ela avisara que estava voltando ao casarão, no Rio. Estava certa em fazê-lo. Aquele antro não era lugar adequado para educar seus filhos.

Ao tomar conhecimento do ocorrido, Josimar veio até mim acabrunhado. Queria se despedir, mas não tinha coragem. Foi a primeira vez que vi um espírito se desculpar por fazer a passagem. Do jeito que gaguejava, lembrava um adolescente dizendo ao pai severo que iria dormir fora de casa pela primeira vez!

— Vai em paz meu amigo. Já está mais do que na hora.

Ele sorria, genuinamente feliz, enquanto se misturava a névoa que emergia do gramado. Josimar era dotado de uma inocência a toda prova. Jamais fizera mal a uma mosca. Mesmo assim permanecera no local de seu infortúnio. Em um contraste evidente, D. Eulália morrera e partira sem deixar vestígios. Para ela a transição se dera de forma natural. Até hoje me pergunto por que isso não ocorreu com suas vítimas, que ficaram presas na Terra em virtude das atrocidades cometidas por ela.

Com a questão espiritual resolvida, as autoridades foram avisadas. A notícia do achado macabro caiu como uma bomba na comunidade. As atividades ilícitas de D. Eulália não eram totalmente desconhecidas pelos locais, como ficou comprovado pelas investigações realizadas pela polícia. O trabalho de parteira era uma fachada. Ela mantinha uma clínica clandestina de aborto e tráfico de bebês. Aquelas que optavam por dar a luz, mas não queriam o filho, recebiam uma certa quantia em dinheiro e a promessa de que o rebento iria para um lar adotivo. Na verdade os recém-nascidos eram vendidos sem qualquer preocupação com seu destino. Aqueles para os quais ela não encontrava interessados, tinham como destino os vasos sob o caramanchão.  A perícia identificou dezessete ossadas: dez meninos - os antúrios - e sete meninas - as cartucheiras. Os restos mortais de Josimar foram desenterrados e assassinato incluído no rol de barbaridades.

Tive que deixar Fernanda lidar sozinha com  a polícia. Para todos os efeitos, fora ela quem achara o primeiro indício de crime na propriedade. Foi arrolada como testemunha no inquérito que se seguiu. Por motivos óbvios, deixou de fazer qualquer menção aos eventos sobrenaturais que presenciou. Demorou além do que havia planejado, mas por fim pode coletar as relíquias que viera buscar. Certo dia, perguntei se alertava os fregueses sobre a origem das mercadorias que estava vendendo e ela respondeu:

— Estou fazendo leilões na Internet exclusivamente com os lotes da D. Eulália. São disputadíssimos por terem pertencido a uma criminosa. Inclusive, a maioria dos arrematantes são de fora do Brasil. Estou faturando em dólar, meu amigo!

Roído pela curiosidade, fui visitar Camila. Estava ansioso para saber como ela estava se saindo com  sua creche espectral. Não devia ser fácil tomar conta de tantas almas em desenvolvimento. Eu temia que essa tarefa pudesse ser um fardo pesado para uma jovem que perdera um filho e vivera os últimos sessenta anos sob o jugo de uma mãe tirana. Para minha surpresa, a encontrei feliz, na companhia de um rapazote e de outros dois albergados: um pequerrucho de colo e uma menina, de uns quatro anos, se tanto. Divertida com a minha cara de espanto, explicou - daquele jeito sem palavras que ela sabia usar tão bem - o que havia acontecido.

Ao chegar, deparara-se com almas em completa agonia. O distúrbio era tão forte que elas se agregavam e agiam como uma entidade única. Perambulavam pela casa em busca de aconchego e sempre retornavam a famosa cadeira de balanço. Ao perceber isso, tratou de ocupar a vaga deixada por D. Eulália. Inicialmente o novelo de energia ficou alvoroçado e até agressivo. Paulatinamente foram percebendo que a natureza e as intenções de Camila eram diferentes dos seres de carne e osso. Mudaram de atitude e se acalmaram. Até que um deles tomou forma, se destacou dos demais e engatinhou - por assim dizer - até seus pés. Ao tomá-lo nos braços, os outros também se revelaram individualmente e teve início uma disputa pelo seu afeto. No dia em que a vi na casa pela primeira vez os ânimos já estavam serenados e ela conquistara a confiança de todos. A mudança para o Rio cortou qualquer vínculo que porventura os prendessem naquele lugar e ela pode, enfim, dar a eles o carinho, a atenção e o amor que lhes haviam sido roubados.

Os efeitos desse tratamento logo se fizeram sentir. Ao atingir o nível de plenitude, elas faziam a transição naturalmente. Algumas primeiro regressavam a uma vida anterior, para depois fazer a passagem. Era o caso do rapazote, um colono do século XIX que morrera durante a travessia do Atlântico. Ao tomar consciência do que se passava, perguntou a Camila se poderia permanecer ao seu lado até que a tarefa estivesse concluída.

Aproveitei a descontração do momento para examinar Camila discretamente. Aliviado, constatei que as marcas deixadas pela melancolia haviam sumido de sua face. Saí dali com a certeza de que essa fora a última vez que a vira.

Fiz a derradeira visita ao casarão no início da primavera. D. Helena estava arrumando suas malas. Camila partira e com isso dava por concluído seu compromisso com D. Ester, a nova dona da casa.

— O que vais fazer agora? - perguntei.

— O que não falta é idoso precisando ser cuidado - respondeu. 

— Inclusive já tenho um novo paciente. Começo na segunda-feira.

Estávamos na cozinha, bebericando um café de despedida.

— Ela deixou uma lembrança. O senhor gostaria de ver?

— Claro! - respondi alto.

Subimos ao segundo piso e paramos na saleta. O quadro estava no mesmo lugar. O pai sentado, a mãe com os olhos furados, a pequena Camila em seu vestido branco e o rabisco que ela fizera anos atrás. Logo acima da cabeça da menina, espalhados no espaço livre disponível, uma nuvem de rabiscos anunciava que Camila tinha uma nova família.

Comentários

  1. Meu caro Cattelan, sua história ganhou uma complexidade empolgante à medida que surgiam novos personagens e detalhes na trama. Tudo foi se juntando como um quebra-cabeça. Engraçado que em certo momento o protagonista me lembrou Dylan Dog, o detetive do pesadelo do quadrinho italiano. Digo isso não por semelhança entre os personagens, mas pelos casos que ele resolve, sempre mergulhado no sobrenatural. Se não me engano já são 3 ou 4 histórias com esse protagonista, por isso fico imaginando que daria até um romance com ele. Quem sabe. Parabéns por mais uma história. Aguardo novas postagens.

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    1. Muito obrigado por suas palavras tão gentis! Esse personagem surgiu por acaso e se tornou presente nos últimos contos que escrevi. Inclusive, já tem um novo a caminho. Confesso que não conheço Dylan Dog, mas já estou curioso a beça.

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