Chorosa : encontro de almas
Continuação do conto Chorosa : um apelo à eternidade (clique aqui para ler).
Tendo formulado a hipótese da separação de mãe e filha durante a exumação da primeira, precisávamos localizar elementos que confirmassem - ou refutassem - essa premissa.
Recriar a cronologia dos fatos a partir de 1839 mostrou-se excessivamente difícil. Por essa razão resolvemos tomar um caminho mais fácil, partindo do lugar no qual D. Quitéria se encontrava no momento. A parte inicial do trabalho coube à Daguerra que levantou, junto à administração do cemitério, a quem pertencia o ossuário. Descobriu ser a proprietária uma figura proeminente, membro de família tradicional, admirada no meio empresarial carioca por seus variados empreendimentos e considerável fortuna.
Telefonei para marcar uma entrevista e fui atendido pela secretária que, friamente, deu a entender que sua patroa não tinha tempo a perder com bobagens. Enquanto matutava formas alternativas de contornar o problema, recebi uma ligação da mesma moça que me dispensara. Encabulada, pediu desculpas pela aspereza de suas palavras anteriores e marcou um encontro para a sexta-feira vindoura.
Fomos recepcionados pela secretária num espaçoso apartamento situado na Vieira Souto. De imediato conduziu-nos ao escritório de D. Izabel, descendente em linha direta da irmã mais velha de D. Quitéria. Na época devia estar com uns noventa anos, lúcida, forte e ansiosa por saber o que nos motivara a indagar sobre aquele obscuro item de seu patrimônio.
Antes que pudesse expor os motivos da visita, fez questão de explicar o que levara sua funcionária a ser grosseira ao telefone:
— Anelise tende a ser superprotetora. Vocês não fazem ideia da quantidade de solicitações de contato que chegam diariamente, nem sempre de gente bem-intencionada. Ela comentou comigo acerca da ligação, imaginando ser tentativa de golpe. Se concordei em recebê-los é porque sua fama o precede e porque acompanho atentamente suas realizações, digamos, pouco ortodoxas.
D. Izabel fez uma pausa. Lançou um olhar matreiro e prosseguiu:
— Pelo que entendo, se o senhor está interessado em algo significa que há um mistério a ser resolvido. E se está relacionado a minha família, eu preciso saber do que se trata.
— Muito justo - retruquei.
Fui o mais franco possível ao relatar os acontecimentos que se desenrolavam no Catumbi e que envolviam sua antepassada. Ela ouviu calada, pesando o significado de cada palavra. Ao concluir a explanação, recostou-se na poltrona, ponderou longamente e chamou Anelise. Confabularam baixinho por alguns minutos. Depois, D. Izabel informou que teríamos acesso ao acervo da família, restrito ao período que ia de 1839 a 1922:
— Isso deve ser suficiente para esclarecer suas dúvidas. A partir daí não é da sua conta.
Havia uma condição para que pudéssemos vasculhar o passado, a qual considerei razoável:
— Desejo ser comunicada do final desta história. De preferência por escrito, para que o relatório possa integrar os registros que mantemos.
Do apartamento fomos direto para um prédio na Lapa, sede do conglomerado capitaneado por D. Izabel. Ali fica também o arquivo, que guarda tanto a documentação empresarial quanto a privada.
Confesso que fiquei impressionado com a organização do setor e perplexo com o investimento exigido para mantê-lo funcionando com tamanha eficiência.
Passamos o fim de semana trancafiados na sala de pesquisa, cercados por pilhas de papéis, sob a tutela da equipe que nos assessorava e nos responsabilizava pelas folgas canceladas. Lemos as cartas escritas pelo pai de D. Quitéria, analisamos livros-caixa, certidões, escrituras e tudo mais que foi possível encontrar dentro do período especificado. Resumindo, descobrimos que:
- o pai de D. Quitéria foi um comerciante português que fez fortuna no Brasil, tendo sido agraciado com o título de Comendador pelo Imperador D. Pedro I em pessoa;
- o Comendador não via com bons olhos o casamento dela com o Barão de Niterói, a quem acusava de interesseiro;
- em decorrência do acidente, mãe e filha foram sepultadas no interior da Igreja dos Capuchinhos, no Morro do Castelo;
- D. Quitéria contava 25 anos e Amélia apenas 6 no dia em que morreram;
- em 1855, o número crescente de fatalidades resultantes do recrudescimento da epidemia de febre amarela levou as autoridades eclesiásticas a ordenarem a transferência dos corpos sepultados nas igrejas para acomodar novos ocupantes;
- inconformado com a decisão, mas sem alternativa, o Comendador decidiu transladar os despojos da filha para o cemitério do Catumbi;
- em 1858 o pai de Quitéria faleceu, vitimado pela febre amarela;
- a partir daí, sua outra filha assumiu os negócios da família. Foi ela quem mandou erigir o monumento funerário em homenagem a D. Quitéria.
É importante ressaltar que os documentos relativos aos procedimentos fúnebres de 1855 em diante citam apenas D. Quitéria. Tudo leva a crer que ao exumarem a mãe esqueceram a filha. Em busca de razões para que isso tenha ocorrido chegamos à seguinte conclusão: ela morreu muito novinha, com os ossos ainda em formação. Passados dezesseis anos sobrou pouquíssimo de seu esqueleto, provavelmente apenas as partes mais duras. Na ânsia de terminar o trabalho, os exumadores podem tê-las ignorado por descuido - ou propositadamente - por parecerem insignificantes.
Seja como for, os restos mortais de Amélia permaneceram sob o assoalho do templo até sua demolição em 1922, devido ao desmonte do Morro do Castelo[1]. Sendo isso verdade, então é correto presumir que tenham se misturado ao entulho despejado na área atualmente conhecida como Aterro do Flamengo - porção da orla do Rio de Janeiro assim chamada justamente por ter sido aterrada com os escombros provenientes da remoção do monte.
Encerrada esta etapa, restava uma última verificação antes de começarmos o trabalho de campo.
Um levantamento nos jornais diários revelou alta incidência de acidentes improváveis no entorno do Aterro, bem como relatos que tranquilamente podiam ser traduzidos como sendo de atividade paranormal, em diversos pontos do trecho que vai da Marina da Glória ao Monumento à Estácio de Sá. Por experiências prévias suspeitava que esses eventos estivessem interligados.
Com base nos dados obtidos, mapeei os lugares que apresentavam maior índice de ocorrências e passei a ficar de tocaia em diferentes horas do dia e da noite.
Presenciei cenas estranhas, estapafúrdias, incoerentes, nem todas dignas de nota, sem que pudesse detectar qualquer interferência espiritual. Num sábado à tarde, percorri a ciclovia até chegar nas imediações da raia de aeromodelismo. Encostei-me a uma árvore para espreitar abrigado do sol. Foi instintivo, nada ali denotava merecer atenção especial. Olhava distraído os corredores que iam e vinham numa agitação constante. Com o canto do olho detectei uma oscilação incomum seguindo uma jovem que corria no centro da pista. Fixei a vista e captei uma sombra - imperceptível para os demais - que a acompanhava ombro a ombro. Impelida pela sombra, ela desviava para a direita, aproximando-se perigosamente de uma boca de lobo sem a grade de proteção. Se pisasse ali na velocidade em que vinha a lesão seria gravíssima. Disparei ensandecido. Por um triz consegui impedir o desastre. Ela agradeceu o aviso e seguiu em frente. Retornava ao meu posto de observação quando a sombra se revelou plenamente.
Sob o arvoredo divisei uma silhueta franzina, pálida, mirrada, desgrenhada, andrajosa. Era o espectro de uma menininha.
Ao vê-la naquela situação custei acreditar que fosse Amélia. Entretanto, não havia dúvida quanto à sua identidade. Apesar do decaimento infligido pelo sofrimento, mantinha envolto pelos cabelos um diadema idêntico ao usado pela mãe, derradeira reminiscência da pureza infantil há muito perdida. Décadas de abandono cobravam seu preço. Senti na frieza de seus olhos a hostilidade que devotava ao mundo dos vivos. Comprazia-se fazendo pequenas maldades, induzindo suas vítimas a cometerem atos condenáveis ou deleitava-se fazendo com que se machucassem.
Antes de me preocupar com a reação da mãe precisava enfrentar o rancor da filha. Permanecia a minha frente, exalando ódio, decidindo a melhor forma de atacar. No que se refere a mim sua influência era nula. Por outro lado, forçar o contato seria inútil. Abandonei o local com o coração apertado.
Procurei D. Quitéria o mais rápido possível. Encontrei-a no estado lastimoso de sempre. Logrei alcançá-la e anunciei em tom triunfante:
— Encontramos Amélia!
Sua atitude mudou da água para o vinho. As manifestações de dor deram lugar as de júbilo. Chegou-se a mim pressurosa. Queria detalhes.
Expliquei resumidamente tudo que se passara desde o sepultamento das duas na Igreja dos Capuchinhos. Ela custou a acreditar que haviam passado mais de 160 anos de separação.
— E como ela está? Sente a minha falta?
D. Quitéria ficou abalada ao escutar o relato que fiz a respeito das condições atuais de Amélia. Sentia-se culpada pelo abandono da filha. Felizmente confiava em mim a ponto de aceitar minha ajuda. Perguntei a ela detalhes da convivência diária, que brincadeiras faziam, passatempos, jogos, essas coisas banais que marcam uma criança para o resto da vida, para o bem ou para o mal.
— Amélia amava recitar poesia. Inclusive estava ensinando a ela umas quadrinhas novas para distraí-la no barco.
Retornamos - Daguerra e eu - ao Aterro em busca do fantasma de Amélia. Ouvimos o latido insistente e angustiante de um pinscher que soava como um pedido de socorro. Corremos até ele. Cruel, Amélia o obsidiava com o objetivo de irritar sua dona com o barulho para que ela agredisse o cachorrinho. Ao perceber nossa presença, parou de supliciar a dupla e veio aonde estávamos. Agora que sabia que eu podia vê-la considerava-me um objeto de grande interesse e não se fez de rogada. Por segurança, afastei meu companheiro para evitar que ficasse sob a influência dela.
Anoitecera. Estávamos na altura do Posto 1, em meio as árvores. Parados frente a frente, num duelo silencioso para ver quem faria o primeiro movimento.
Nisso uma voz brotou do vazio. Recitava versos:
"O cravo também se muda, |
Olhei para trás. A figura inconfundível de D. Quitéria emergiu da escuridão. Emanava uma suave luminosidade azulada, indicando que sua energia vibrava numa frequência acima da usual. Passou por mim flutuando a centímetros do chão. Parou próxima à filha e repetiu a quadrinha.
O semblante rancoroso mudou para perplexo num átimo! Estava atônita. Talvez pela presença de uma entidade adulta. Talvez por ter reconhecido nela a mãe há tanto desaparecida. Meus temores se aplacaram assim que ouvi a menina dar continuidade a recitação, completando a estrofe:
"De longe também se ama, |
A emoção que as dominou culminou um expressivo silêncio. As duas almas se pertenciam e o reconhecimento foi instantâneo. A luz oriunda de D. Quitéria envolveu Amélia, devolvendo-lhe a aparência digna que ostentara em vida. Os trapos converteram-se num elegante vestido de linho branco. As feições ficaram alegres e um caprichoso penteado realçou o diadema que salvara os resquícios de sua inocência. D. Quitéria estendeu os braços e aconchegou-a com desmedida ternura. Seguiram caminhando abraçadas pela praia. Da areia, acompanhei-as até o meio da baía. Súbito um raio cortou o céu e elas sumiram.
— O que foi aquilo? — quis saber Daguerra.
— A reparação de um erro que jamais deveria ter acontecido.
Percebi que ele se referira ao clarão que alumiara o Aterro enquanto as duas faziam a passagem. Fiquei feliz por ele finalmente enxergar além da realidade física. A exemplo de D. Quitéria, abracei-o e seguimos rumo à estação de metrô mais próxima.
Notas
1. Em 1904, durante a gestão do prefeito Pereira Passos, a ladeira do Seminário e parte do Morro do Castelo foram removidos para a abertura da Avenida Central, mas foi entre 1920 e 1922, na administração do engenheiro e prefeito Carlos Sampaio, que o morro, considerado um símbolo degradado do passado colonial português, foi demolido, por deliberação do decreto de 17 de agosto de 1920. Fonte: A demolição do Morro do Castelo Voltar.2. Versos extraídos do livro Quadrinhas brasileiras, de Sílvio Romero Voltar
O poder da poesia transcende a existência!
ResponderExcluirCom certeza! A poesia tem o poder de despertar as mais recônditas emoções e lembranças.
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