Linguiça de gente

Quando criança - poucos acreditam, mas eu já fui criança - lembro que toda terça-feira a Rua Felipe Neri, em Porto Alegre, era fechada ao trânsito para que os feirantes montassem suas barracas. Para mim era dia de festa. Ao voltar da escola fazia questão de caminhar entre os fregueses, admirando os produtos expostos, em especial os da barraca de ferragens e, pasmem, os do açougue!

Não sei explicar essa predileção por ver carcaças penduradas em ganchos, mas é fato que ainda gosto de passear pelos balcões frigoríficos para apreciar belos cortes de carne.

Porém o que vem ao caso nessa história é que minha família tinha conhecimento desse meu hábito e mais: sabiam que eu era - e sou - apaixonado por linguiça.

Então, toda terça-feira, quando chegava a hora do almoço, alguém fazia cara de curioso para levantar a questão de qual seria a procedência do recheio das linguiças vendidas na feira. Esse era o sinal para que se desse início a uma sessão de contos fantásticos onde não podia faltar o caso da linguiça de carne de gente. 


Você sabe exatamente do quê são feitas as linguiças?


Tudo teria começado com um fato insólito: alguém teria comprado um certo tipo especial de linguiça e, ao comê-la, encontrara um dedo humano! Desmascarando assim uma prática macabra que abastecia o comércio com matéria prima de duvidosa procedência.

Lembro de achar o causo da linguiça meio nojento, mas não o suficiente para tirar a minha fome. Entretanto, havia um detalhe que sempre me chamava a atenção. Essa história era contada por várias pessoas, conhecidas ou não, que juravam ser verdadeira, que algum primo distante, amigo do vizinho ou tio do afilhado da nora era quem tinha comido a tal linguiça premiada. Uma legítima lenda urbana. Claro que o enredo variava um pouco, com mais ou menos detalhes macabros, mas a essência era sempre a mesma: um açougueiro tinha uma esposa muito bonita que seduzia incautos para sua casa, onde caiam por um alçapão direto para as garras do magarefe que já os esperava ansioso por separar os melhores cortes para suas apreciadas linguiças. E um detalhe no mínimo pitoresco. A trama fora descoberta porque o cão de uma das vítimas insistia em ficar chorando na soleira da porta do açougue, como a chamar por seu dono. Isso teria chamado a atenção dos vizinhos que, por certo já desconfiados, avisaram a polícia que entrou na casa e acabou com a fábrica clandestina de embutidos.

Creio que essa lenda já é suficientemente macabra por si só, porém há vezes em que a vida supera a ficção. 

Quando já adulto andava pelos arquivos históricos da cidade em busca de informações sobre imigrantes meus antepassados, para o processo de dupla cidadania, quando ouvi uma conversa sobre uma descoberta impressionante feita por um pesquisador no Arquivo Público. Ele encontrara nada mais nada menos que os autos do processo do tal açougueiro! 

Conforme os estudos iam avançando ficava-se sabendo os detalhes escabrosos dessa história. E pior! Muito do que eu escutara no passado era verdade. E o mais triste, entre os restos mortais encontrados nos fundos do açougue estava de fato o cadáver de um cãozinho, abatido pelos criminosos por estar sempre rondando o local a espera de seu dono, já então abatido e embutido.

A descoberta dos crimes da rua do Arvoredo, como o caso ficou conhecido, rapidamente se converteu no maior escândalo do final do século XIX no Rio Grande do Sul. A situação era particularmente constrangedora porque entre os fregueses do carniceiro estavam eminentes representantes da elite porto-alegrense, os quais muito provavelmente nem desconfiavam o quê estavam de fato comendo. Isso causou um grande embaraço na hora de arrolar as testemunhas, por exemplo. Prova disso é que várias páginas do processo foram arrancadas para proteger a honra dos envolvidos, apreciadores involuntários dessa salumeria inusitada. 

E se você acha que estou exagerando, leia o tópico Crimes da Rua do Arvoredo na Wikipédia: https://pt.wikipedia.org/wiki/Crimes_da_Rua_do_Arvoredo 


Comentários

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    1. Que bom que você gostou! Toda quarta-feira tem um conto novo!!

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  2. Cara, muito curioso. E a escrita muito fluida e agradável.
    Lembro de ter visto essa história no finado programa Linha Direta.
    Aqui em Pernambuco, mais recentemente, também tivemos um caso de canibalismo: os canibais de Garanhuns. Tem até um livro escrito e ilustrado pelo líder deles, Jorge Negromonte: "Revelações de um Esquizofrênico". Fácil achar na internet.

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    1. Lembro de ter visto algo sobre esse caso de Garanhuns. Da mesma forma que o caso da Rua do Arvoredo, tem matizes difíceis de entender.

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