Não corra papai
Incidentes bizarros perturbavam os moradores de uma ruazinha arborizada da Tijuca. Tudo começara há alguns meses, mas faziam duas semanas, aproximadamente, que me chamaram. Aqui no Rio, automóveis abandonados na via pública recebem o curioso apelido de Bibelôs de Calçada. De uma hora para outra, um desses adornos criara vida própria: amanhecia com uma das janelas abaixada, os faróis piscavam e buzinadas extemporâneas soavam a qualquer hora do dia ou da noite. Não era o modelo do ano, contudo não era assim tão velho. Estava maltratado por dormir ao relento, coberto de pó, a lataria riscada, pneus murchando, mato crescendo em torno. Os vidros opacos pela sujeira bloqueavam a visão do interior. Residentes da vizinhança tentaram, sem sucesso, surpreender o responsável pelas manifestações. Desistiram, supondo tratar-se de travessuras da criançada. Conforme o tempo passava os episódios amiudavam-se. O morador da casa na frente da qual o veículo estacionara flagrou, em mais de uma ocasião, movimentos espontâneos sem que se avistasse qualquer pessoa mexendo nos controles. Certo dia, ao sair pelo portão para ir ao escritório, a porta traseira abriu sozinha, como se o carro estivesse convidando-o a entrar. Afastou-se receoso e viu a porta bater violentamente, evidenciando insatisfação com a desfeita.
A coisa ficou realmente séria no dia em que um incauto teve a brilhante ideia de fuçar no motor. Ele até conseguiu abrir o capô. No momento em que se preparava para remover qualquer peça ouviu-se um ronco medonho. Antes que se refizesse do susto, a fralda solta da camisa enroscou numa correia e ele foi puxado violentamente. A tampa baixou com força, atingindo-o na cabeça. Por pouco não morreu, porém precisou ser hospitalizado. Foi aí que resolveram me chamar.
Minha primeira providência foi entrevistar os vizinhos em busca de informações. A maioria alegou não saber ao quê me referia, negando-se a continuar a conversa. E aqueles que me atenderam não agregaram dados significativos. Não recordavam quando o carro fora abandonado, muito menos por quem. A julgar pelo que diziam, ele simplesmente brotara ao lado do meio-fio.
Solicitei a um dos meus contatos na polícia que checasse a placa. Em resposta, fiquei sabendo ser falsa, cujo proprietário real desconhecia que havia sido clonado. Outra hipótese seria verificar o número do chassi. Para isso teria que aproximar-me perigosamente do veículo e ele já dera mostras de não gostar muito de xeretas futricando suas entranhas.
Agora, parado junto a ele, avaliava mentalmente os fatos. Tentava encontrar a melhor forma de abordar um tema delicado de forma a não melindrar a outra parte.
Sem chegar a uma conclusão satisfatória, coloquei a mão na maçaneta e abri a porta. Sentei atrás do banco do carona e espiei o condutor pelo retrovisor. Nossos olhares se cruzaram. Gosto de bater-papo:
— Salve!
Ele sinalizou positivamente com a cabeça, sem proferir palavra. Era do tipo calado.
Tenso, agarrava o volante com as mãos crispadas, como se este fosse uma âncora que o mantivesse ligado ao mundo material.
— Para onde vamos?
Retruquei zombeteiro:
— Se depender do estado em que se encontra essa lata-velha, a lugar algum.
Flagrei uma expressão de indignada surpresa. Olhei ao redor. Contrastando com a visível deterioração do exterior, a cabine encontrava-se em perfeitas condições. Um agradável cheiro de carro novo preenchia o ambiente. No painel, um anacrônico imã com os dizeres "Não corra papai", ladeado por duas fotografias. A da esquerda uma jovem senhora - provavelmente a esposa. A da direita uma garotinha sorridente.
Ele fez questão de ignorar minha observação. Mantinha-se de costas para mim, atento a tudo que acontecia do outro lado do para-brisa. A princípio julguei ser uma reação indignada por ter chamado seu xodó de "lata-velha". Aos poucos compreendi seu comportamento. Ele estava dirigindo! Dava seta ao virar para a esquerda ou direita, trocava de marcha, de tempos em tempos olhava para cima - deduzi que esperava o sinal ficar verde para prosseguir. Muito educado, perguntou:
— O senhor gostaria que ligasse o ar-condicionado?
Aconteceram outras intervenções impessoais como essa. Ele não dialogava comigo. Apenas recitava frases de um roteiro pré-definido. Eu falava algo e recebia silêncio como resposta.
O simulacro durou cerca de meia-hora. Ao final ele virou o rosto para o lado do carona, fez cara de assustado e sumiu. A reconstituição de sua última corrida terminara. Saí e aguardei uns instantes. Entrei novamente e lá estava ele, firme no volante. Tentei puxar conversa, inutilmente. Repeti a experiência um par de vezes e foi sempre igual. Ele permanecia preso naquele ciclo e não o alterava. O saldo positivo desta investida foi conseguir ler os oito dígitos do número do chassi gravados no para-brisa. Dificilmente quem adulterou as placas teve tempo - ou disposição - para trocar os vidros. De posse dessa informação, comecei a desenrolar o novelo que me conduziu a solução do problema.
Descobri que no registro do veículo constava o nome de uma mulher. Ela abrira uma ocorrência relatando o furto do mesmo e o desaparecimento do cônjuge.
Não foi difícil localizá-la; continuava morando no endereço reportado no B.O. Entretanto, por precaução, chequei as redes sociais antes de procurá-la. Confirmei o que suspeitava. Ela sofrera uma grande perda recentemente. O esposo, chofer profissional, desaparecera sem deixar vestígios, bem como o automóvel que dirigia. As fotos de mãe e filha ilustrando as postagens revelaram serem elas a lembrar o papai sobre a importância de não dirigir em alta velocidade.
Contatar parentes vivos de espectros é sempre complicado. Difícil prever qual será a reação deles, pois é comum charlatões aproveitarem esse momento de fragilidade para extorquir dinheiro. Uma vez enganados, tendem a acreditar - com razão - que sou outro golpista. Por isso, dessa vez, parti para uma abordagem indireta.
Utilizando um dos canais anunciados pela esposa para informes relativos ao desaparecimento do marido, notifiquei que sabia a localização do carro. Ressabiada, ela pediu provas. Enviei fotos. Marcamos um encontro num shopping center próximo. Local público, onde ela sentia-se segura.
Laura, a esposa, chegou sem a filha. Devia estar na faixa dos 25-30 anos de idade. O rosto trazia as marcas do sofrimento contínuo. Os olhos, ávidos, perscrutavam a praça de alimentação em busca dos meus supostos comparsas. Sentou. Foi direto ao assunto. Já desperdiçara tempo demais com suposições e falsas promessas:
— Como o senhor sabe onde está o meu carro?
Expliquei, omitindo a parte fantasmagórica dos acontecimentos recentes, que haviam me chamado para investigar um veículo abandonado. Casualmente, era o que ela procurava.
— É aqui perto. Gostaria que a levasse até lá? Podemos ir a pé se preferir.
Concordou, premida pela curiosidade e pelo desejo de colocar um ponto final no drama que a atormentava. Em poucos minutos estávamos frente a frente com o bibelô de calçada assombrado. Seus olhos ficaram vermelhos, a respiração pesada. Balbuciou:
— O senhor tem razão. Este é o carro que meu marido usava para trabalhar.
— Antes que tomes qualquer atitude — disse o mais calmamente possível — preciso lhe contar uma coisa.
Ela mirou-me de esguelha. Havia ódio em seu rosto. Deve ter imaginado que armava o bote.
— Fica tranquila — adiantei. — A situação é mais delicada do que possas imaginar.
O caso, por si só, era de difícil solução, daqueles capazes de abalar psicologicamente o mais preparado dos indivíduos. Ela estava com os nervos a flor da pele. Quanto a mim, tinha de ser firme sem perder a calma. Dourar a pílula seria inútil. Fui de uma franqueza quase cruel. Contei, resumidamente, os motivos que me levaram até lá. Incrédula, recusou-se a acreditar que seu esposo continuasse preso àquela carcaça decadente.
— Só há um meio de esclarecer isso. Entre e veja por si mesma.
Resoluta, talvez até indignada, Laura meteu a mão no trinco, abriu a porta e jogou-se no banco. A porta fechou sozinha, deixando-me do lado de fora. Encostei no muro e aguardei pacientemente até a conclusão da viagem. Saiu de lá branca como um papel. Precisei ampará-la. Tremia da cabeça aos pés. Reuniu as forças que lhe restavam para admitir:
— É ele mesmo.
Respirou fundo. Ajeitou o cabelo, disfarçando a inquietação.
— O que houve?
— Por enquanto não há como saber. Está confinado num ciclo fechado. Não consigo me comunicar com ele.
Inconformada com a incapacidade do marido em reconhecê-la, refez a experiência até cansar. Não a impedi. Esse é o tipo de situação que a pessoa precisa enfrentar por conta própria. Quando Laura desistiu, levei-a para tomar café em um bistrô próximo. Esperei que se acalmasse, então propus:
— Gostaria de fazer um teste.
Laura, cabisbaixa, segurava a xicara pousada no pires. Prossegui:
— Façamos mais uma viagem...
Levantou o rosto em minha direção. Ganhara sua atenção:
— Dessa vez eu fico no banco de trás e tu no da frente, no lugar do carona.
A ideia de ficar ao lado do motorista fantasma a apavorou.
— Ele não lhe fará mal e o choque pode trazê-lo de volta à realidade.
— Como? — A pergunta era quase um grito.
A lógica nem sempre funciona nesses casos. Sem argumentos para convencê-la roguei que confiasse em mim e fizesse ao menos uma tentativa. Seu marido merecia ter essa chance.
Tendo conquistado sua anuência, gastei a hora seguinte instruindo-a a respeito dos procedimentos a serem adotados. Uma palavra fora do lugar poria tudo a perder. Ela precisava ser forte.
Voltamos. Abrimos as portas e entramos a um só tempo. Tudo correu como sempre, com uma diferença. Ao concluir o percurso, olhou para o lado, fez cara de surpreso e permaneceu ao volante. Olhava para a esposa com ternura, mesclada com profunda tristeza:
— Laura...
A voz gutural assustou-a. Felizmente manteve-se firme. Teve forças para perguntar:
— O que aconteceu contigo?
— Um assalto. Queriam o carro e eu resisti. Fui assassinado. E nossa filha?
— Pergunta por você o tempo todo. Está bem. Passou de ano ...
Nesse instante temi que o relato de Laura reforçasse os laços emotivos que o prendiam ao plano físico. Pelo contrário. Perceber que a pequena seguia a vida pareceu reconfortá-lo.
— Diga a ela que sempre estaremos juntos. E avisa pra polícia olhar no lixão que tem na estrada velha da serra. Foi lá que me desovaram. Há outros corpos também.
Dito isso, pegou o celular acoplado a um suporte no painel. Mexeu por alguns segundos, voltou-se para Laura. Era o momento da despedida:
— Preciso ir. Já estão vindo me buscar. Fica em paz meu amor.
Antes que ela pudesse responder ele surgiu ao meu lado. A cabine avançou, levando-o consigo, deixando para trás Laura, eu e o interior do veículo como seria de esperar: sujo, malcuidado, úmido, fedendo a mofo. Saímos apressados daquela imundície.
— Pra onde ele foi?
— Fez a passagem — Respondi. — Deve ter chamado um transporte do além.
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