Sinal dos tempos
O visor fosforescente do rádio-relógio marcava exatamente seis horas. Josimar acordara há pelo menos trinta minutos. Permanecia deitado, sentindo o leito vibrar na frequência dos veículos trafegando abaixo de sua janela. O ronco de uma motocicleta com o escapamento aberto encerrou definitivamente a sonolência que embalava os resquícios da madrugada. Pontual como sempre, o motoqueiro barulhento sinalizava o início de uma nova jornada. Rolou cuidadosamente para a beira do colchão e sentou. Bocejou tateando com os pés em busca das chinelas. Movimentava-se lenta e silenciosamente. Temia despertar Etelvina, sua esposa. Ela costumava ser irascível o dia todo. Estremunhada era pior e ele retardava propositalmente a experiência. Por uma fresta na cortina espiou através da vidraça. Nuvens pesadas obstruíam a incipiente luminosidade matutina. Estavam no inverno, mas um calorzinho fora de época fazia crer o contrário.
Mantendo o ritmo calmo, passou pela porta. Fechou-a atrás de si para isolar o quarto de ruídos inoportunos. Com um pouco de sorte, pensou, conseguiria tomar café descansado e sair após uma bitoca de despedida.
Para ir ao trabalho - onde um chefe rabugento o aguardava - Josimar utilizava o metrô. A estação ficava a trezentos metros do edifício no qual morava e ele ia a pé. Dobrava a esquina, seguia por uma rua arborizada que desembocava numa larga e agitada avenida. Os transeuntes iam e vinham apressados, esbarrando uns nos outros continuamente. Haveria espaço suficiente, não fossem os incontáveis ambulantes que atravancavam a passagem com bancas espalhadas pela calçada. O vendedor de controles remotos era o mais sem noção. Colocava a grade com os aparelhos pendurados atravessada de tal forma que obrigava os passantes a contorná-la, indo em direção a um magazine repleto de manequins e roupas íntimas femininas. A loja em si não representava problema. O problema era o pregador instalado embaixo da marquise. Sujeito esquisito. Vestia repetidamente o mesmo paletó azul-marinho surrado. A descrição colérica do destino terrível reservado aqueles que desdenham do poder divino intimidava Josimar. Para prevenir constrangimentos, baixava a cabeça e escapulia sem fazer contato visual. Nesta manhã foi diferente. O pregador parecia falar diretamente a ele. Berrava, apoplético:
— Arrependei-vos porque o fim está próximo!
E chavões do tipo. Ao passar na frente do púlpito improvisado, Josimar percebeu a mudança no tom de voz, bem como os olhos esbugalhados que o perseguiram até descer a escadaria de acesso da estação. Apressou o passo para desvencilhar-se das duras palavras dardejadas contra ele. Eram dedos em riste espetando suas costelas. Esperou a composição escudado por uma pilastra. Em instantes sufocaria dentro de um vagão entupido de gente.
Gostava de acompanhar os anúncios que desfilavam no sistema de vídeo interno. Por ser de estatura mediana, espichou-se quanto pode para vencer o paredão humano que bloqueava a visão. Enxergou a tela a tempo de ver uma notícia curiosa. Pesquisadores tentavam determinar a causa do desaparecimento de uma população que vivera numa região da África Subsaariana.
No intervalo do almoço, faminto, dirigiu-se ao refeitório. Trazia comida para economizar o dinheiro que Etelvina gastava com produtos de beleza. Retirou da geladeira a marmita com seu nome e ficou decepcionado ao remover a tampa. Algum gaiato roubara o bife. Franziu o cenho contrariado. A peonada o elegera alvo preferencial destas brincadeiras maldosas.
Sondou o recinto, procurando sinais que denunciassem o engraçadinho. Nas mesas, cada um olhava exclusivamente para o seu celular. Presa à parede, a TV exibia o locutor do telejornal falando de sequestros que assolavam a cidade. Ensimesmados, atribulados por adversidades diversas, os funcionários ignoravam a realidade fugindo de prenúncios agourentos.
Josimar abriu o micro-ondas para aquecer o que sobrara de sua refeição. Antes dele, alguém fervera leite e este transbordara, esparramando-se pelo prato de vidro e além. Uma nojeira. O fato não era novidade. Novidade seria se o responsável corrigisse o resultado de sua negligência. Josimar, diligentemente, limpou a lambança e foi à pia lavar o pano que utilizara no serviço. Após estendê-lo para secar, constatou que um dos presentes se antecipara e esquentava qualquer coisa malcheirosa no aparelho recém limpo. Em função disso, atrasou-se para o turno da tarde, recebendo uma reprimenda do chefe, permanentemente atento ao menor deslize dos subordinados.
Ao final do expediente, deixou-se levar pela turba que invadia a estação do metrô. Ao desembarcar subiu despreocupado a escadaria, pois a essa hora o pregador encerrara suas atividades. No caminho parou no mercado, fez algumas compras e regressou à casa. Preparava o jantar ouvindo o noticiário vespertino num radinho de pilhas enganchado no puxador do armário de cima. Uma nota entre duas reportagens a respeito da vida das subcelebridades o alarmou. A fuga em massa de detentos esvaziara um presídio de segurança máxima no interior de São Paulo. Compartilhou sua apreensão com Etelvina que, sem desgrudar da TV, observou:
— Deixa de ser frouxo Jó (ela o chamava assim desde o começo do namoro). — Os paulistas que resolvam.
Finda a última novela da sequência seguida por Etelvina foram para a cama. Amanhã não era feriado e ele precisava acordar cedo.
No dia seguinte, ao chegar na avenida, refez mecanicamente o percurso cotidiano, desviando do vendedor de controles remotos. Deparou-se com o olhar intrigado do pregador. Olhou em volta, descobrindo que a grade sumira. Poderia simplesmente ter ido reto. O inesperado suscitou-lhe outra constatação: pouquíssimos ambulantes haviam montado suas barracas. As pessoas circulavam livremente pelo passeio. Alcançou a rampa de acesso à estação mais rapidamente que o de costume. Ao embarcar no vagão divisou a tela sem dificuldades, graças a evidente escassez de passageiros.
A tranquilidade da viagem contrastou com a sobrecarga que enfrentou na empresa. Na saída bateu o cartão exausto. Fora necessário redobrar esforços para dar conta dos pedidos pendentes. Boa parte dos empregados não comparecera e o chefe atarantava os remanescentes bradando:
— Os prazos devem ser cumpridos custe o que custar!
Revoltados, alguns colegas de Josimar murmuravam impropérios. Sentiam-se punidos por terem comparecido. Seu companheiro de bancada resumiu a frustração geral:
— Quer saber? Amanhã serei eu a não dar as caras.
Dito e feito. No outro dia, Josimar encontrou o pavilhão largado às moscas! Desta vez os prazos deixaram de ser cumpridos e não houve reclamações. Tanto o chefe como os demais supervisores não apareceram.
O retorno também surpreendeu Josimar. Além de divertir-se com a programação, viajou sentado. Dividiram o vagão com ele três ou quatro gatos pingados.
Apesar de haver somente um caixa funcionando no mercado, foi o segundo na fila de pagamento. A primeira era uma senhorinha que ia sacando de uma bolsa as mercadorias a serem registradas. Pressurosa, virou-se e disse:
— Há muito não via o mercado tão vazio. Não é estranho?
Impressionado com tantas ausências, Josimar tentou comentar o assunto com Etelvina enquanto organizava as sacolas. Essa o repeliu com um gesto brusco. Choramingava, emocionada com as agruras que o vilão impunha à inocente mocinha da novela das oito. Não tinha disposição para o papo-furado do marido.
A noite, tenebrosamente escura, trouxe pesadelos medonhos. Josimar acordou sobressaltado. O mostrador indicava sete e quarenta e cinco. Estava atrasado! Será que o motoqueiro passara e ele não ouvira? E o que dizer do silêncio que brotava da rua? Cadê o tremor dos motores que rodavam céleres sob sua janela?
Etelvina continuava ali, ressonando alto. Afobado, saiu do quarto sem fechar a porta. No banheiro tirou o pijama, pôs o uniforme da empresa e voltou para despedir-se da esposa. Estacou ao ver a cama vazia.
Examinou o apartamento peça por peça chamando por ela. A residência era minúscula. Não havia como ela ter saído sem ele perceber. Parado no meio da sala, com as mãos nos quadris, alteou a voz:
— Etelvina!
A falta de resposta transformou nervosismo em agonia. Atônito, desceu as escadas do edifício descabeladamente. Cruzou pela portaria - deserta. Deteve-se na calçada. Olhou para a esquerda, para a direita, para cima e para baixo. Onde estaria Etelvina? Onde estariam todos? A rua desprovida de gente destoava da rotina a qual se habituara. Correu à padaria, normalmente cheia quando passava por ela neste horário. Nada. Um basset de língua de fora abanava o rabo. Fitava Josimar com cara de filhote abandonado. Arrastava a guia que o tutor deveria estar segurando para conduzi-lo. Ele não era o único. Vários cães vagavam a procura de seus donos. Evitou o olhar pidão do basset e prosseguiu em sua rota usual. Dobrou a esquina e de lá avançou para a avenida. Nem sombra de quem quer que fosse.
O céu mantinha-se nublado. Uma brisa fria cortou o ar, arrepiando os pelos da nuca de Josimar. Chegou ao magazine. Cortinas de aço ocultavam as vitrines. Ninguém para levantá-las, deduziu. Aproximou-se de um pedestal de concreto. Outrora uma estátua estivera sobre ele. Oportunistas a levaram junto com a placa que identificava o homenageado. O pregador a convertera em púlpito. Era ali que apoiava a Bíblia utilizada durante as prédicas. O Livro Sagrado repousava como fora deixado. Onde estaria o pregador?
Acercou-se cauteloso. Postou-se no púlpito como inúmeras vezes o vira fazer. Um prendedor de roupas separava a Bíblia em duas. Maneira engenhosa de marcar a localização do tópico da preleção do dia. Receoso, abriu-a na parte assinalada. Notou, com repulsa, manchas de perdigotos nas páginas ensebadas pelo uso constante. A brisa tornou-se vento. Soprou com força. Folhas soltas encobriram a passagem selecionada. Sinal de que a mensagem não podia ser revelada?
Afastou-as resoluto. Um sentimento forte e indefinido o impelia a ler. Reconheceu o Novo Testamento. Um versículo em especial sobressaia-se, sublinhado com esferográfica azul. Pertencia ao capítulo cinco de Mateus, o evangelista. Não era qualquer versículo. Era o quinto. Aquele das bem-aventuranças que diz: "Bem-aventurados os mansos, porque eles herdarão a terra".
Espero que haja mais mansos por aí!
ResponderExcluirSei de fonte segura que o Josimar está procurando até agora!
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