Codicilo
A bem da verdade preciso confessar que sempre fui uma pessoa comum. Ao contrário de outros, a natureza parece ter esquecido completamente a minha existência durante a distribuição de dons. Inteligência mediana, nenhuma aptidão para esportes, aparência simplória. Por outro lado, enquanto a genética se deleitava em me pregar essa peça, o destino tinha outros planos. E tudo começou da forma mais inocente que se possa imaginar.
— Já é madrugada - resmunguei olhando o relógio na parede - é hora de parar.
Foi na época da pandemia e eu estava em isolamento, em casa, há pelo menos um ano. Devido ao confinamento prolongado a percepção da passagem dos dias estava comprometida ao ponto de eu não respeitar mais os limites biológicos relativos ao dia ou a noite. Estava embaralhada ao ponto de não fazer muita diferença saber se estava claro ou escuro lá fora ou que horas seriam naquele instante.
— Azar. Só mais uma e vou dormir.
Fazer pesquisas aleatórias no computador era uma estranha forma de lazer. As perguntas tinham que ser confusas para que os resultados fossem hilários. Estava sozinho e entediado e isso me divertia.
Lá pelas tantas lancei algo sobre arroz a grega e, entre os resultados da busca, apareceu um anúncio de moedas antigas.
— Dracma, que legal! Essa é velha pra caramba.
Sabem aquela expressão "quando a esmola é muita o santo desconfia"? Pois bem, talvez por não ser santo não tenha desconfiado ao ver aquela relíquia sendo vendida por um valor irrisório. Não me ocorreu que podia ser um golpe, uma falsificação ou algo ainda pior. Cliquei mecanicamente no botão "comprar" numa demonstração explícita do que vem a ser uma compra por impulso. Nem imaginava que aquela ação - que não durou nem um minuto - iria virar minha vida de cabeça para baixo.
Passados alguns dias chegou pelo correio uma caixinha e, dentro dela, a tal moeda. Eu já nem lembrava que havia feito a compra e até fui conferir no extrato do cartão de crédito para ter certeza. Enfim, a moeda era minha mesmo e a joguei numa prateleira onde jaziam algumas lembranças de viagem.
Eu sei que ninguém irá acreditar no que vem agora, mas posso jurar que foi exatamente assim que tudo se passou.
Era uma noite quente de verão e eu estava assistindo TV. Subitamente senti uma forte presença na sala. Era uma personalidade forte, acompanhada de um misto de raiva e rancor. Meu humor também não era dos melhores devido ao isolamento e não estava com a mínima disposição de aturar os maus bofes de quem quer que fosse. Até mesmo de uma manifestação espectral. Além disso, venho de uma família habituada a lidar com eventos paranormais e não seria ele quem iria abalar a minha tranquilidade. Assim, entre uma pipoca e outra, olhei sério na direção de onde parecia emanar a manifestação e falei de forma ríspida:
— Mas será que não se pode assistir a um filme descansado nessa casa?
Imediatamente a presença sumiu e eu segui acompanhando as façanhas interestelares não me lembro de quem. Foi quando dei uma pausa para pegar outra cerveja na geladeira que descobri, ao entrar na cozinha, que a presença estava lá! Podia sentir a emanação de sentimentos confusos e até mesmo uma nota de surpresa que a minha reação causara. Obviamente ele não estava acostumado a ser tratado daquela maneira. É bem provável que eu tenha sido a primeira pessoa a lhe repreender ao invés de demonstrar pavor. Um pouco por estar solitário e outro tanto por estar arrependido da minha grosseria resolvi convidar meu visitante a dividir o final da noite comigo.
— Pelo visto resolvestes ficar. Então vai lá pra sala e fica quietinho que eu quero terminar de ver meu filme em paz.
Voltamos e ficamos em silêncio assistindo a conclusão da aventura. Ao desligar o aparelho já não sentia mais a presença do visitante e fui dormir.
Alguns dias depois eu já nem lembrava mais do ocorrido. Nessa ocasião estava no escritório digitando no computador quando senti novamente uma presença que vibrava com a mesma intensidade daquela da última visita. Estava sentado, mas pude acompanhar nitidamente a movimentação da entidade que se aproximava pelas minhas costas. Por alguns segundos pareceu estar parada muito próxima a mim, como se estivesse olhando sobre meu ombro. De repente uma mão invisível apertou minha panturrilha! Levantei num salto esbravejando:
— Seu safado! Tá pensando o quê?!
Devo ter gritado com tanta raiva que fosse quem fosse que estivesse ali escafedeu-se rapidinho, deixando apenas a minha ira pairando no recinto.
Depois dessa levou algum tempo para que a entidade se manifestasse novamente. Só que dessa vez ele veio com estilo.
Havia ficado jogando no computador até muito tarde e fui para a cama morto de sono. Quando coloquei a cabeça no travesseiro senti o colchão afundar, como se alguém se deitasse ao meu lado. Levantei num salto, sacudindo os lençóis, para constatar o que já sabia. A cama estava vazia e isso devia ser alguma brincadeira de mau gosto do meu visitante misterioso.
Com o coração ainda aos pulos voltei para a sala e sentei no sofá. Nesse momento as luzes piscaram por três vezes e entre um clarão e outro pude ver a silhueta esguia de um homem envolto numa túnica.
— Mas o que é isso!
Eu sabia exatamente o que era. A expressão sussurrada entre dentes serviu apenas para aliviar o efeito do susto.
A partir daí as manifestações começaram a ficar mais frequentes e intensas. Por vezes julgava ver a imagem translúcida do ser que me atormentava. Digo atormentava porque essa era a impressão que eu tinha. Parecia que ele esperava o momento certo para fazer suas gracinhas, dando a entender que ele queria que eu soubesse que estava ali para fazer da minha vida um inferno.
O que ele não sabia, ou não esperava, era que eu o aceitasse naquela condição. Por diversas vezes pude perceber que minha complacência o exasperava. E num jogo de gato e rato, quanto mais ele se esforçava para ser desagradável, mais eu fazia para que ele se sentisse acolhido. Por que? Porque eu tenho coração mole. Era óbvio que se tratava de uma alma perdida, alguém que perdera o rumo do descanso eterno e estava condenado a permanecer nesse mundo, vivendo uma existência de rancor, melancolia e esquecimento.
Aos poucos, acredito eu, ele foi percebendo que não adiantava tentar me intimidar e mudou de atitude. Parecia cansado e apático. Vimos dezenas de filmes juntos sobre os mais variados temas, até que um dia ...
Foi na semana dos grandes clássicos do cinema. Naquela noite estavam reprisando Ulysses, da década de 50, com Kirk Douglas, Anthony Quin e grande elenco. Eu estava numa ponta do sofá, sabendo que meu amigo estava na outra. Já havia visto esse filme na Sessão da Tarde quando criança e assistia meio distraído. Foi quando fiz menção de levantar que olhei para o lado e vi, pela primeira vez, a figura completa do meu companheiro!
Não lembro bem qual cena era. Só que mostrava o interior de um palácio e o diálogo entre Penélope e um de seus pretendentes. A insatisfação dele era visível. Não gostava do que via e levei algum tempo para entender o motivo que, afinal, era bastante óbvio. Meu amigo fantasmagórico era grego e achava um absurdo a maneira como retratavam seu povo naquele espetáculo, para ele, grotesco.
Lembro de ficar olhando em sua direção até ele perceber que eu o enxergava. No início pareceu decepcionado por se revelar de forma assim tão prosaica e sumiu novamente. Logo em seguida tornou a aparecer e no seu rosto já não havia qualquer sinal de raiva, apenas um sorriso embaraçado, como de quem pede desculpas por ter arrotado durante a refeição.
Esse acontecimento quebrou qualquer barreira que ainda houvesse entre nós e nos tornamos amigos. Apesar de permanecer visível, continuava mudo. A comunicação era feita por gestos. Pelo acontecido no dia do filme e pela túnica que vestia deduzi que se tratava de um grego do período clássico.
Quando perguntei como ele havia chegado até mim, simplesmente apontou para a moeda na estante. Só então percebi porque seu preço fora tão baixo. Com toda certeza o antigo proprietário não soubera lidar com o brinde que acompanhava o produto.
Não demorou muito para que nos aproximássemos ainda mais. Agora meu amigo já pronunciava algumas palavras, de modo que pude saber como se chamava quando em vida: Phídias. Apesar do nome, esse Phídias não tinha qualquer relação com seu homônimo famoso, que era escultor, e muito menos possuía dotes artísticos. Na verdade, quando vivo, trabalhara num dos portos de uma antiga cidade helênica na região de Cnidos, onde exercera o ofício de mercador, tendo amealhado considerável fortuna e respeito de seus contemporâneos.
Mesmo sabendo seu verdadeiro nome eu o chamava de Ekos, em parte por ser ele uma frágil repetição de sua vida terrena, mas principalmente por ser o diminutivo de Ekonomopulus. Ele fez jus a essa alcunha graças ao seu grande apego ao dinheiro e, principalmente, a obsessão que nutria pela moeda que agora me pertencia. Certa feita confessou meio constrangido que aceitava o apelido porque a carapuça servira. Em vida Ekos havia sido um pão-duro de primeira linha.
Depois de alguns meses ele já estava perfeitamente adaptado a vida no apartamento, bem como a minha presença. Permanecia visível quase todo o tempo e já articulava frases completas num estranho idioma que lembrava o papiamento.
Numa manhã de inverno em que ficara preguiçosamente na cama, levantei tarde e entrei na sala fora do horário habitual. Encontrei Phídias parado em frente a estante, acariciando com a mão etérea seu objeto de desejo. Parecia desamparado e seu olhar, se é que se pode chamar assim, estava perdido não no horizonte, mas nas brumas do tempo.
Quando percebeu que eu estava próximo virou a cabeça e sinalizou para que me sentasse.
— Pelo visto a conversa vai ser longa - brinquei.
E foi. Ekos contou então, naquele seu mix de idiomas, que não tivera uma morte natural. Fora acometido por uma febre persistente que piorava a cada dia. Os recursos da época não tinham o poder de debelar a enfermidade e aconteceu o óbvio. Ele morreu. É triste, entretanto o pior ainda estava por vir.
Para que se possa ter a correta dimensão do drama do meu fantasmagórico companheiro é preciso entender como ele e seus conterrâneos entendiam a vida e a morte naquela época.
Acima de tudo existia o Cosmos, o Universo do qual todos fazemos parte. Do ponto de vista grego não havia morte propriamente dita, mas sim a passagem de um estado para outro dentro do Cosmos, que é eterno e perfeito. Pior que a morte era o esquecimento, pois isso condenava a alma a se perder no imenso vazio. Para evitar que isso acontecesse erguiam monumentos funerários para honrar a memória daqueles que haviam abandonado o plano terrestre. Nesse mundo perfeito e ordenado cada um deve ocupar o lugar determinado por sua condição. Por essa razão os mortos não podem permanecer no mundo dos vivos.
Entretanto, a jornada de um desencarnado em busca do descanso eterno era longa e dividida em várias etapas, sendo que a primeira era o sepultamento em si. Nesse momento os familiares deviam cumprir uma série de rituais destinados a ajudar o morto a encontrar o caminho para a entrada do Hades, o mundo dos mortos. As consequências do não cumprimento desses deveres sagrados eram terríveis tanto para o falecido quando para os vivos. Alguém que ficasse insepulto acabaria como um ataphói - um espírito que não encontrou o seu lugar no Cosmos. Condenado a vagar eternamente num plano ao qual já não pertencia mais, o ataphói poderia se converter numa fonte de influências malignas, atuando ele mesmo para perturbar os vivos ou intercedendo junto aos deuses para que punissem aqueles que os haviam desonrado.
Fechado o parêntesis, é importante que se diga que o corpo de Phídias recebeu de sua família a necessária atenção. Todos os preceitos foram rigorosamente observados e sua sombra estava em paz, aguardando apenas que Hermes viesse buscá-lo para ser transportado às margens do rio Efiges, onde Caronte o levaria em definitivo para sua morada na terra dos mortos. Mas o barqueiro não trabalha de graça. Para transportar a alma do falecido ele exige o pagamento no valor de uma dracma!
Eu já sabia que Ekos havia amealhado uma fortuna razoável em vida e não pude deixar de me perguntar se em sua sovinice ele tentara enganar o barqueiro.
Não fora esse o caso. Concluído o sepultamento, um grupo de salafrários assaltou a tumba de Phídias em busca dos tesouros que, acreditavam eles, haviam sido enterrados junto com seu cadáver. Acontece que a fruta não cai longe do pé e seus filhos depositaram apenas algumas jarras de cerâmica com vinho, água e dois ou três pães. Furiosos, os arruaceiros decidiram destruir a sepultura para apagar da existência a memória daquele maldito pão-duro.
Como insulto final, levaram a dracma que havia sido depositada sobre sua boca para que ele pudesse pagar sua passagem para o além. E foi assim que Hermes o deixou sobre uma pedra que fazia as vezes de cais e ele não pode concluir sua jornada porque não tinha fundos sequer para cobrir o óbulo de Caronte.
Por ter acompanhado os rituais preparatórios, Phídias sabia que a falta não fora cometida pelos seus. E foi assim que ele iniciou uma outra jornada, destinada a encontrar e punir os responsáveis pela sua desgraça eterna. Quem estivesse de posse da moeda era imediatamente sentenciado como cúmplice da desgraça a qual fora submetido.
Fazendo as contas por alto, Ekos vagava sobre a terra há aproximadamente 25 séculos, sempre acompanhando a rota percorrida por aquela dracma que o trouxera até mim. Isso fez com que ele acompanhasse a evolução da humanidade e pudesse aprender diversos idiomas, ou dialetos, conforme a nacionalidade daquele que estivesse de posse da sua preciosa moeda naquele momento. Aliás, Ekos passou por uma séria provação quando um coletor de impostos fez uma parada em Pompéia em 79 A.C. e acabou soterrado pela erupção do Vesúvio, bem como a caixa com a coleta, incluindo a dracma. Devido a esse infortúnio Ekos permaneceu na escuridão do subsolo até meados do século XIX. A princípio ele teve a companhia das almas dos milhares de infelizes vitimados pelo vulcão, mas com o passar do tempo, sem nada que os prendesse ao plano material, cada um foi tomando seu rumo e restou apenas a frieza da solidão. Incapaz de separar-se da moeda, só voltou a ver a luz do sol quando os despojos do coletor e sua carga foram redescobertos durante uma escavação arqueológica. Não fosse o destino um zombeteiro, talvez Ekos estivesse hoje assombrando algum museu na Itália. Infelizmente um dos ajudantes que trabalhavam na escavação tinha o hábito de desviar relíquias para vender no mercado negro e tomou para si a moeda. A partir daí ela foi passando de mão em mão até chegar até mim. Nem preciso dizer que Ekos ia a reboque, furioso com aqueles que ousavam se apoderar do seu tesouro e decidido a tornar-lhes a vida tão miserável quanto para ele tinha sido a morte.
Depois de abrir seu coração de forma tão corajosa Phídias mudou seu comportamento para comigo e nos tornamos muito próximos. Em nossos serões tive a oportunidade de ouvir centenas de histórias presenciadas, algumas, e protagonizadas, outras tantas, por aquele grego irascível. Dito isso, creio que agora tenha ficado clara a origem da precisão histórica dos romances que me tornaram famoso como escritor. Antes não podia revelar minha fonte, mas agora que a morte se aproxima isso já não faz mais sentido.
Tendo como base o acima exposto, deixo registrado nesse documento a minha última vontade: descer à sepultura com as duas dracmas que seguem anexas. As mesmas devem ser posicionadas sobre os olhos do meu corpo e enterradas comigo.
Tenho para mim que, quando Hermes vier recolher a minha alma, eu e Ekos iremos trilhar o caminho que nos levará a doca do barqueiro. E uma vez ali, cada um de posse de seu óbulo, poderemos finalmente realizar a travessia que meu amigo espera há 2.500 anos.
Creio que não preciso dizer que a não concretização desse gesto tão singelo acarretará graves consequências, tanto no que diz respeito à lei dos homens quanto à justiça divina. Aquele que se atrever a usurpar nosso direito ao descanso eterno terá como companhia não apenas um, mas dois fantasmas a assombrá-lo em busca de reparação.
Rio de Janeiro, 13 de agosto de 2021.
Muito bom irmão! Parabéns! Vou me desfazer de toda minha coleção de moedas antigas!
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