A Guardadora de Lutos


Enquanto dava os últimos retoques nos pertences da Sra. Gherta, D. Mirthes não conseguia afastar um pensamento incômodo que lhe atormentava há algum tempo. Olhou pela janela em busca de algo que a distraísse e afastasse essa sensação de aperto no peito para fora de seu corpo. Inutilmente.

Em sua simplicidade, D. Mirthes não podia aceitar que essa angústia surgisse justo agora que sua vida ia tão bem como nunca havia ido até então. Nascera em uma família humilde. Desde cedo lutava contra a pobreza e sonhava em ter uma vida melhor. Não necessariamente de fartura, mas pelo menos digna. O sucesso – esse eterno pregador de peças – sempre evitara sua porta, frustrando cada uma de suas tentativas de ganhar algum dinheiro para si e para sua família. Sem estudos ou profissão, sua contribuição para o orçamento dependia de trabalhos manuais, tipo costurar para fora, fazer bolos, pintar guardanapos, essas coisas que as senhorinhas prendadas aprendiam a fazer em sua juventude. A mais recente, inusitada e bem sucedida atividade a qual se dedicara era justamente essa que exercia agora: organizadora dos bens de pessoas falecidas.

Gostava de se apresentar como sendo uma Guardadora de Luto. A ideia surgira um pouco ao acaso quando uma vizinha pedira ajuda para dar destino às roupas do finado marido e ela percebera o quanto é doloroso para quem fica lidar com os objetos dos que partiram. Diga-se de passagem que suas habilidades domésticas foram fundamentais para o sucesso da empreitada. Ela sempre fora uma dona de casa exemplar e sabia organizar como ninguém o que quer que fosse, sem jamais imaginar que um dia essa habilidade faria dela uma empreendedora.

Como todo negócio novo, começara devagar. Com a chegada da pandemia a clientela ficou cada vez mais numerosa e D. Mirthes finalmente acreditou que dali para frente tudo seria diferente.

 Desgraça de uns, alegria de outros – costumava dizer ao marido cada vez que conferia o extrato de sua conta banco.

Genaro, seu esposo, era uma alma simples, amoroso e dedicado. Apesar de não conseguir se manter num emprego fixo por muito tempo. Estava eternamente desempregado e garantia o sustento da casa fazendo pequenos consertos residenciais. Não tinham filhos, o que num cenário de dificuldades financeiras passa a ser uma benção.

Inicialmente Seu Genaro estranhou a ideia da esposa e não acreditou que tivesse futuro. Só mudou de opinião quando o telefone começou a tocar cada vez mais e a cor do resultado do balancete mudou de vermelho para azul. A partir daí ela começou a pagar as contas e os ganhos do marido passaram a ser meros complementos da renda do casal.

A vida havia sido dura com eles e, quando estava atolada de lutos para guardar, D. Mirthes até desengavetou um plano que ela e o marido haviam traçado antes de se casarem: passar a lua de mel em Porto de Galinhas! Não fora possível na época, mas agora esse sonho estava a caminho de se tornar realidade.

Infelizmente, como diz o ditado, alegria de pobre dura pouco.

Com a chegada das vacinas as pessoas se imunizaram, o número de óbitos caiu drasticamente e seu florescente negócio sofreu um duro revés.

 Por que as pessoas se recusam a morrer? – lastimava ela.

— Sem morto, sem guardadora de luto – começou a dizer ao marido cada vez mais frequentemente.

Depois de algumas semanas de atendimentos esporádicos D. Mirthes começou a achar que era hora de parar de sonhar e se conformar com a mediocridade a que estava condenada até o fim de sua existência. Foi então que essa história teve uma reviravolta dramática. Subitamente o número de fatalidades na pequena localidade na qual viviam começou a aumentar novamente. Agora não mais pela COVID ou causas naturais. Cada um de seus últimos clientes viera a óbito devido a acidentes domésticos triviais.

No início a euforia de estar novamente em ação mascarou a inquietação que deveria ter suscitado a espantosa epidemia de pequenos desastres que se abatera sobre a cidade. Entretanto o tempo passara e agora esse detalhe inquietante chamava sua atenção, assim como outro, que começava a incomodá-la cada vez mais: a regularidade com que isso acontecia. Bastava fechar a última caixa de um atendimento para logo em seguida morrer alguém. Não que ela estivesse reclamando, pois isso lhe permitia continuar ativa, pagar as contas e guardar algum para o futuro. Apenas estava intrigada.

Enquanto dobrava a última peça de roupa e a encaixotava com os derradeiros pertences da Sra. Gherta, D. Mirthes deu um longo suspiro e encarou mais uma vez uma notinha que havia saído na terceira página do jornal local. O texto não a citava, ou fazia qualquer referência ao seu trabalho, mas abria ainda mais o leque de dúvidas que a agitava internamente. O jornalista enumerava as causas mortis dos moradores e deixava clara sua estranheza com o volume desse tipo de ocorrência num intervalo relativamente curto de tempo.

D. Mirthes não podia deixar de concordar com o articulista. Era bem verdade que todas as mortes decorreram de acidentes cuja natureza fortuita nunca fora contestada pelas investigações que se seguiram a cada uma delas. Enquanto caminhava pela calçada em direção ao ponto de ônibus ia inventariando mentalmente os motivos que a levaram a cada um de seus últimos atendimentos:

 Queda de escada, fratura craniana causada por um halter durante os exercícios, eletrocussão ao trocar uma lâmpada, atropelamento na garagem – e assim ia ela com seu passinho miúdo, enrugando a testa e contando nos dedinhos.

Por mais que tentasse não conseguia encontrar uma explicação satisfatória para esse súbito aumento de fatalidades acidentais. Melhor dizendo, ela até conseguia, mas se recusava a admitir o que poderia ser porque seria terrível demais. A conclusão a qual não queria chegar é que alguém estava provocando esses acidentes. Mas quem? E por qual motivo?

No caminho para casa ia pensando o quanto essa suposição era despropositada. Afinal, ninguém tinha culpa se as pessoas eram assim tão desastradas, tentava ela enganar a si mesma.

 Não é verdade? – disse em voz alta, assustando o passageiro que viajava ao seu lado na condução.

Ao chegar em casa não encontrou o marido.

 Nada demais – pensou ela torcendo as mãos nervosas – provavelmente está na casa de alguém realizando algum conserto.

O tempo foi passando e nada do Seu Genaro aparecer. Bastante aflita, D. Mirthes pegou o celular e fez várias tentativas de contato, sem sucesso. Seu Genaro havia desligado o aparelho ou estava fora da área de cobertura.

Enquanto andava em círculos pela sala outro sentimento ruim começou a brotar em seu coração. Com todas aquelas mortes em sequência não seria de estranhar se Genaro fosse o próximo.

 Aquele desastrado está sempre subindo escadas, martelando, usando a furadeira e todas essas coisas inocentemente mortais.

A ausência do marido finalmente fez com que ela encarasse de frente aquilo que não queria admitir. A ocorrência de tantos acidentes em intervalos tão regulares era simplesmente impossível! E se esse provocador de tragédias realmente existisse? E se decidisse vir atrás dela? Não, pensando bem, Seu Genaro se encaixava perfeitamente no perfil das outras vítimas. E se não estivesse respondendo porque estivesse sendo o alvo do facínora naquele exato momento?

No auge de seu desespero D. Mirthes correu até a garagem e abriu a primeira gaveta da escrivaninha que o marido usava como escritório. De lá, sacou a caderneta onde ele anotava as solicitações dos clientes, bem como seus endereços. Buscou avidamente os apontamentos do dia até encontrar onde ele deveria estar naquele horário. Chamou um táxi e rumou direto para lá.

A residência da cliente era uma casa ampla, com um belo jardim bem cuidado que levava à porta principal, que estava aberta.

 Que estranho – murmurou D. Mirthes – enquanto olhava cautelosamente para dentro da sala.

Armada de uma coragem que até então não sabia que tinha, empunhou a sombrinha como se fosse um porrete e avançou cautelosamente.

A princípio parecia reinar um silencio absoluto no ambiente, mas aos poucos ela foi percebendo um murmúrio que parecia vir do andar de cima. Passo a passo foi ganhando os degraus até chegar no corredor da ala privada da casa. Ao fundo uma porta aberta deixava escapar uma luminosidade difusa e os sons abafados que haviam chamado sua atenção.

Ao chegar na porta espiou cuidadosamente o interior do banheiro e ficou estarrecida com o que viu. Seu Genaro, em mangas de camisa, estava ajoelhado ao lado de uma banheira e forçava alguém para baixo d’água numa clara tentativa de afogá-lo.

Atônita, D. Mirthes deixou cair a sombrinha, chamando a atenção de Seu Genaro, que olhou em sua direção sem largar a cabeça que segurava com força e falou aliviado:

 Ah, é você!

Como D. Mirthes continuasse parada na entrada do banheiro, Seu Genaro sussurrou em tom de súplica:

 Ei, me dá uma ajudinha aqui! Essa tá dando trabalho.

D. Mirthes ainda hesitou por alguns instantes ao perceber que seu marido nunca estivera em perigo porque era ele quem causava os “acidentes” que a mantinha nos negócios. Sinceramente comovida por essa abnegada demonstração de afeto e preocupação com seu sucesso profissional, ela sentiu os olhos marejarem de lágrimas enquanto corria e se ajoelhava ao lado do marido. 

 Quem é essa?

 É a dona da casa. Achei que ia ser fácil, mas ela é mais forte do que parece.

Ao sentir a água fria que molhava suas mãos enquanto empurrava a moradora para baixo lembrou de algo muito importante e, sorrindo, disse ao marido:

 Se continuarmos nesse ritmo acho que até o final do ano teremos o suficiente para nossa lua de mel em Porto de Galinhas!

* * *

Esse conto foi originalmente publicado na antologia Damas do Mistério, da Darkbooks, em 2021.

Comentários

  1. Cara... sensacional. Eu imaginava quem seria, mas não com esse final.
    Muito bem pensado.

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    1. Muito obrigado! Foi muito divertido escrever esse conto, brincando com a trama e espalhando pistas falsas pelo caminho!!

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