Refeição Indigesta
Olá, eu sou a Morte. Não se assuste! Não estou aqui por sua causa, pelo menos não nesse momento. Pode parecer estranho, mas vim fazer um apelo.
Acompanho a humanidade desde que o mundo é mundo e sempre desempenhei minhas funções com zelo e galhardia. Infelizmente, de uns tempos para cá, está ficando cada vez mais penoso cumprir minha missão. Antes de mais nada, quero deixar bem claro que não tenho qualquer relação com as mazelas que assolam o plano material. Essa responsabilidade é vossa, humanos! Meu trabalho é única e exclusivamente fazer a colheita das almas desencarnadas e encaminhá-las ao seu destino na eternidade. Nem preciso dizer o quanto a quantidade assombrosa de óbitos oriundos de causas não naturais tem me sobrecarregado nos últimos séculos. Para se ter uma ideia, no início dos tempos meu gadanho durava umas quatro gerações, com folga. Agora, nem sei se consigo manter o atual até o final do ano.
Tudo isso para dizer que vós, humanos, precisam parar com a matança generalizada. Guerras, epidemias e eventos catastróficos fazem parte do meu dia a dia e sei que é praticamente impossível evitá-los. Meu apelo é para que comecem a usar o bom senso e parem de se autodestruir por motivos estapafúrdios ou insensatos. Se acham que exagero, prestem atenção nessa historieta edificante que demonstra bem o meu ponto de vista.
Nadilson morava em Alpendre desde que nascera. A pequena vila, perdida num desses rincões esquecidos no interior do Brasil, era tudo que conhecia. Apesar das dificuldades impostas pela pobreza, levava uma vida digna, trabalhando num roçado nos fundos de sua casa e realizando pequenos serviços para o setor mais bem aquinhoado da sociedade alpendressense.
Num ano de eleições, pensou ter tirado a sorte grande ao ser convidado para trabalhar como cabo eleitoral de um dos candidatos a prefeito. Ao ver seu chefe eleito, Nadilson acreditou que o tempo das vacas gordas finalmente chegara e que seria agraciado com um cargo onde sobraria salário e faltaria o que fazer. Entretanto, devido a sua baixa escolaridade e ausência de um padrinho que o apoiasse, ficou com a última vaga disponível. Aquela que ninguém quis. Foi assim que se tornou o novo coveiro do cemitério local.
Apesar de bastante contrariado, resolveu aceitar o que o destino lhe reservava, até porque o número de mortes na localidade era baixo e o salário fixo. Não havia muito o que fazer e, no fim do mês, sempre pingava um dinheirinho na conta.
Entretanto, quis o destino – que não dá a mínima para as aspirações humanas – que um vírus causasse uma pandemia mortal. O número de enterros aumentou subitamente, obedecendo a uma progressão exponencial. Nadilson precisou abandonar tanto o roçado quanto o atendimento a seus clientes regulares para dar conta do tanto de covas que precisavam ser abertas. O sol era escaldante e a terra dura. A cada golpe de picareta o coveiro, suado e irritado, resmungava entre dentes:
— Se eu recebesse por cova aberta eu tava era rico!
Não se sabe se por cansaço, desânimo ou falta de ajuda, a profundidade das covas começou a ficar cada vez menor. Por fim, os recém-chegados na Cidade dos Pés Juntos acabavam por receber uma fina camada de terra como cobertura de sua última morada.
A falta de zelo de Nadilson trouxe uma consequência não muito difícil de prever. Aos poucos o aroma desagradavelmente adocicado da carne em decomposição começou a se espalhar. Primeiro entre as tumbas, para então cruzar as frestas da cerquinha de madeira caiada que delimitava o Campo Santo e ganhar o mundo. Carregada pela brisa morna, essa fragrância macabra se converteu num chamariz para os carniceiros de plantão e fez despertar o instinto selvagem em animais acima de qualquer suspeita, alguns inclusive tidos como domesticados.
Certo dia, ao chegar para trabalhar, Nadilson teve que desentalar um leitão que estava preso entre as ripas da cerca. Ele achou estranho, porém não ligou os pontos. Talvez por não saber que porcos gostam sim, e muito, de carne humana. Outro dia foi um vira-latas que insistia em cavar próximo a uma sepultura recém ocupada. Dessa vez o coveiro foi mais perspicaz e resolveu observar de perto o comportamento do cãozinho. Surpreso, constatou que o mesmo fuçava numa toca, provavelmente aberta por um tatu. Pegou o bichinho no colo e tratou de afastá-lo dali. Se o morador resolvesse aparecer as coisas ficariam feias para ele, que não era páreo para as garras sinistras daquele ser subterrâneo.
Enquanto ajeitava um canto do galpão de ferramentas para acomodar Lalita – a cachorra resgatada –, Nadilson foi matutando até chegar à conclusão de que os miasmas que empesteavam o ar estavam escapando pelos buracos abertos pelos tatus.
Sentada próxima, Lalita olhava para ele com atenção sem entender patavina. E ele falava com ela como se fosse gente:
— É por causa desses malditos que o cemitério tá fedendo!
Perseguidos, caçados e enxotados pelos agricultores que não gostavam de ver suas plantações devoradas, a tatuzada acorreu em massa quando farejou o anúncio de fartura espalhado pelo vento. Assim, em pouco tempo, Nadilson viu-se as voltas com um novo problema: a buraqueira que tomava conta das alamedas do cemitério.
Penso que já ficou suficientemente claro que nosso protagonista não era lá muito esperto. Além disso, estava exausto pelo excesso de trabalho e pelas cobranças que lhe fazia, com razão, a esposa. Tiveram uma discussão feia na noite anterior. Começou quando Nadilson tentou justificar a dificuldade para pagar as contas e levar comida para casa, argumentando que não lhe restava forças para o roçado e os atendimentos que costumava fazer por estar assoberbado pelo elevado índice de sepultamentos na cidade. Angustiada com a situação dos filhos, que emagreciam a olhos vistos, ela cortara rispidamente a fala do marido e exigira, pela enésima vez, que ele abandonasse o cargo que aquele amigo da onça – o Prefeito – lhe arranjara. Segundo ela, todo o tempo disponível era agora dedicado a ingrata tarefa de abrir buracos e fechar buracos sem que ganhasse um tostão sequer a mais por isso. A verdade, que ele preferiu omitir, é que já tentara se livrar do encargo mais de uma vez. O Prefeito fingia ouvir, prometia que estava procurando alguém para substituí-lo e o dispensava com um tapinha nas costas.
Na manhã seguinte, estava Nadilson preparando suas ferramentas para mais um dia de trabalho, quando Lalita começou a latir incessantemente.
— Quieta Lalita! – ordenou ao ver entre as cruzes um gordo tatupeba que parecia procurar um lugar para fugir do sol.
Parou o que estava fazendo e ficou olhando naquela direção por alguns minutos. Nesse meio tempo viu passar mais dois ou três tatupebas roliços ao ponto de terem dificuldades em mover as patas. Foi quando ele finalmente juntou lé com cré e teve uma brilhante – pelo menos foi o que lhe pareceu na hora – ideia:
— Vai ter carne de tatu na janta...
Como não era egoísta, chamou um moleque, que se benzia enquanto cruzava apressado o portão, e pediu que avisasse seus compadres sobre uma caçada que estava planejando para aquela tarde.
Pouco depois do meio-dia, Ramalho e Zé Bento aguardavam na sala da administração que o coveiro concluísse um sepultamento. Vinham apetrechados com espingardas, redes, porretes e, óbvio, grandes sacos de aninhagem para carregar o que conseguissem apanhar. Como o movimento naquele dia estivesse fraco, a Nadilson pareceu que tudo conspirava para o sucesso do empreendimento.
Por volta das duas horas, jogou a última pá de terra, despachou a viúva chorosa que pretendia ficar junto ao falecido e foi ter com os comparsas. Não precisou de muitas palavras para explicar do que se tratava e de que tipo de presa estavam atrás. Os dois compadres sorriam e salivavam já antevendo a lauta refeição que teriam naquela noite.
Digamos apenas que foi um massacre de proporções quase apocalípticas. Os tatus, cevados pela fartura de carniça, generosamente oferecida pela pandemia, ficaram obesos e lentos. Eram vítimas fáceis dos “caçadores” que nem precisavam correr para alcançá-los. Bastava uma paulada na cabeça e pronto. Estavam aptos a entrar no cardápio.
Quando os alto-falantes da Matriz entoaram a Ave Maria, eles já tinham uns quatro ou cinco sacos cheios de vítimas até a borda. Como eram gabolas, mas não egoístas, convidaram familiares, amigos, conhecidos, autoridades civis e eclesiásticas para se juntarem a eles num grande churrasco. Impressionado com tanta generosidade – e de olho nos dividendos políticos –, o Prefeito, que nem por sonho imaginava a origem daqueles petiscos, ofereceu o salão do Ginásio Municipal para a realização do que já estava sendo chamado de A Grande Festa de Alpendre.
Na madrugada que se seguiu a festividade surgiram os primeiros sinais de que algo muito errado não estava certo. Começou com vômitos, depois diarreia e, finalmente, desinteria. Num piscar de olhos o número de contaminados pela pandemia mais que dobrou. Como se isso não fosse ruim o bastante, cada vez mais pacientes iam chegando ao posto de saúde com sintomas de outras doenças igualmente graves. E os diagnósticos eram bem pouco promissores. Em meio a mortandade generalizada, uma causa mortis começou a rivalizar com a oferecida pelo vírus: intoxicação alimentar.
A demanda por atendimento chegou a tal ponto que o médico da cidade – o único num raio de quilômetros – não conseguia mais dar conta de atender a todos que o procuravam. Moribundos agonizavam por toda parte. Muitos nem conseguiam chegar até o centro e jaziam inertes nas calçadas, nas praças ou no interior das casas.
Numa das salas do grupo escolar – convertida em necrotério – a situação era horripilante. Dos corpos empilhados ao acaso escorriam fluídos que iam se misturando pelo chão numa orgia de pestilências que não conhecia limites. Como uma das primeiras vítimas do surto fora justamente Nadilson, não havia mais coveiro, nem sepultamentos. Enquanto aguardavam indefinidamente que lhes dessem destino, os cadáveres, abandonados à própria sorte, acabaram por servir de prato a uma infestação de insetos, roedores e outras pragas. Inclusive porcos e tatus. Paulatinamente esse pequeno caos converteu-se numa crise sanitária sem precedentes.
Aqui termina a historieta edificante. Espero que tenham prestado bastante atenção, pois não pretendo repeti-la tão cedo. Se me dão licença, vou afiar mais uma vez o gadanho porque tenho muito trabalho pela frente.
* * *
Esse conto foi originalmente publicado na antologia Na Morada dos Mortos, da Matos Editora, em 2022.
Não vou mais comer tatu!
ResponderExcluirParabéns Paulo! Mais um conto muito bem escrito!
Muito obrigado Alexandre! Pouca gente sabe, mas tatus são realmente carniceiros e costumam atacar cemitérios quando não encontram o que comer.
ResponderExcluirFinalmente criei vergonha e vim ler o conto. É curioso ver o ciclo alimentar que se formou na trama. Primeiro com os tatus no cemitério, depois os homens comendo tatus e morrendo justamente por conta da refeição, pra virar comida de outros bichos... e o ciclo de vida e morte continua. A personagem Morte me lembrou o protagonista da série Contos da Cripta, pela forma como apresenta a história. Confesso que não sou muito chegado a personagens/narradores que explicam a história, mas esse me trouxe uma boa recordação dos tempos de filmes trash na TV aberta. Fico no aguardo do próximo.
ResponderExcluirAntes tarde do que nunca F C. Souza! Seus comentários são sempre bem-vindos. Quando escrevi o conto imaginei justamente um daqueles episódios que um personagem fantástico conta a história. Quanto ao ciclo da cadeia alimentar, só posso dizer que foi vagamente inspirado em fatos reais!!
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