Espírito de Natal
Se não me falha a memória, faz uns quatro anos que passamos o último Natal sem incidentes. O fenômeno teve início em 2018, creio que na segunda semana de dezembro. A partir daí passou a acontecer sempre na mesma época. Começou fraco, na hora eu não reparei, ou não quis acreditar que fosse real, o que é o mais provável.
Estava sentado na poltrona da sala, bebericando cerveja enquanto respondia mensagens no celular. Uma sensação desagradável tomou conta do meu peito. Sem razão aparente, olhei para a janela. Era noite, quase não se via o lado de fora. Por um instante vi o brilho fugaz de dois luzeiros. Julguei ser um gato e voltei a zapear o aparelho. Fiquei cismado com a distância entre os pontos luminosos. Lembro de pensar que devia ser um bicho enorme e que não haviam gatos daquele tamanho na vizinhança. Não era um animal, hoje sei disso. Demorou para que eu aceitasse essa simples verdade.
No ano seguinte aconteceu de novo. Vi claramente um par de olhos que me vigiava da rua. Dessa vez fui até a calçada procurar pelo bichano. Não encontrei. Se estivera ali, sumira sem deixar vestígio.
O penúltimo foi diferente. Terminara a instalação dos enfeites de Natal no final da tarde e ansiava por apreciar o resultado. Aguardei escurecer para ligar os pisca-piscas e fui para o fundo da sala, de onde era possível ter um panorama geral da decoração. Pretendia tirar uma foto para guardar de lembrança. Pensei que acender uma das velas do arranjo sobre a mesa daria um toque especial e peguei uma caixa de fósforos. A vidraça refletia alternadamente o colorido dos piscas, criando um efeito muito bonito. De repente, todas as luzes se apagaram. A seguir, surgiram duas bolas brilhantes, que definitivamente não eram reflexos nem lâmpadas decorativas. Eram olhos de gente que fitavam diretamente a mim. O palito que segurava acendeu sozinho e queimou meus dedos. Instintivamente olhei para a mão ferida. A luz retornou e firmei a vista na vidraça, com a intenção de identificar quem me espionava. Enxerguei somente o reflexo pulsante das luzinhas coloridas.
No Natal passado dei as costas para a janela sempre que possível. Não adiantou. Aguardava minha esposa voltar - ela visitava um vizinho - para acender a quarta vela do Advento e fazermos uma oração. Desabei ao ouvi-la dizer:
— Amor, tinha uma criança espiando pela janela. Você viu?
* * *
Foi difícil escutar o relato acima sem conjecturar o que poderia ter provocado essa série de manifestações que tinham data e hora certas para acontecer. O suposto cliente se chamava Hermínio. Soubera de minhas habilidades relativas ao sobrenatural por terceiros e queria contratar meus serviços para se ver livre do que afirmava ser um encosto. Prefiro não pressupor para evitar erros de avaliação, mas nesse caso a responsabilidade do homem a minha frente mostrava-se inquestionável. Era do tipo que prefere culpar o universo a assumir as consequências de seus atos. Perguntei por que um espírito o estaria importunando e a resposta veio pronta:
— Alguém costurou meu nome na boca do sapo!
Pressenti que não seria fácil convencê-lo de que o assédio que sofria indicava forte desejo de reparação.
Segundo ele, o "fenômeno" ocorria exclusivamente no período natalino. Entretanto, sua magreza excessiva e aspecto doentio o desmentiam descaradamente. Bastava olhar com um mínimo de atenção para perceber que os efeitos dessa convivência se faziam presentes ao longo dos últimos anos.
Viera acompanhado pela esposa, levando a crer que a assombração preferira ficar em casa. Propus uma visita à residência do casal para checar essa hipótese, sem, no entanto, revelar que fosse essa minha intenção.
Moravam num bairro simples, afastado do centro da cidade. Era verão e fazia calor. Ao descer do carro senti uma aragem fria, que passou desapercebida pelos moradores. Olhei em volta. A casa dava visíveis indícios de deterioração. O que deveria ser o jardim era terra seca coberta por grama rala e algumas ervas ressequidas. Estacionado em frente, um caminhão com ares de abandono ocupava boa parte da rua.
— Costumava ser meu ganha-pão - disse o dono da casa, apontando para o veículo. Faz uns três anos que estragou e ninguém consegue dar jeito nem descobrir o defeito. Já gastei uma pilha de dinheiro e nada.
Para mim era óbvio que uma abordagem puramente mecânica não resolveria o problema, pois a causa não era física. E aquela sombra que nos olhava de cima da carroceria provava isso. Encarei-a com firmeza, para que soubesse que podia vê-la. O casal olhou instintivamente para o mesmo ponto, sem entender o que eu fazia. A localização pouco convencional da aparição, associada ao relato feito por Hermínio, me intrigou. Ponderei por alguns minutos e optei por aceitar o caso.
Chamei o casal:
— Precisamos conversar. Dentro da casa.
Ao entrarmos, D. Juliana, a esposa, convidou-me a sentar no sofá da sala. Sinalizei que preferia uma das cadeiras que circundavam a mesa de jantar, em especial uma que ficava de frente para a janela que dava para o jardim. Afastei com cuidado o arranjo com quatro grossas velas que ornava o centro, de modo a desobstruir a visão. Confirmando minhas suspeitas, do outro lado da vidraça se desenhava um vulto indistinto, com um par de olhos penetrantes voltados para os presentes. Aquilo era sinistro, até mesmo para mim. Pressenti que faltava algo no depoimento de Hermínio. Algo ruim, que explicasse a presença daquela alma sugando a energia do casal. Captei um desassossego forte vindo de fora. Uma mescla de angústia, curiosidade e apreensão. Comecei a interrogá-lo:
— Hermínio, estou certo de que ocorreu algo muito grave relacionado a ti e, para te ajudar, preciso saber do que se trata.
Ele me olhou aparvalhado, tentando se livrar do embaraço. Decidi confrontá-lo:
— O último Natal tranquilo foi há quatro anos, certo?
— Certo - a resposta saiu fraca, mas saiu.
— Aconteceu algo nesse ano que possas considerar fora do normal?
Nesse ponto D. Juliana resolveu intervir, impaciente com a relutância do marido. Contou que festejaram em família, numa casa alugada no litoral e que as coisas começaram a desandar a partir da festa do Ano Novo. Nesse dia houve uma briga por ninharias entre ela e o irmão, com o qual sempre se dera bem. Olhando para trás, disse ela, era visível que a vida deles tomara um rumo negativo a partir daí, como se alguma força interferisse em suas ações, levando-as ao fracasso. Ela terminou e olhamos, os três, para Hermínio.
— Muito bem - disse eu. Sabemos quando começou. Agora precisamos descobrir a origem.
O fluxo de energia emanado pelo fantasma aumentou sensivelmente. Seu alvo era Hermínio. Não detectei raiva ou rancor. A princípio, forcejava para obrigá-lo a falar, como se soubesse de um segredo terrível que precisava vir à tona. Os efeitos eram evidentes. Prostrado, ele suava em bicas. Finalmente se deu por vencido e quebrou o silêncio:
— Foi na sexta-feira anterior ao Natal de 2017. Trabalhava na pavimentação das ruas de um condomínio chique. O cronograma atrasara e o capataz não largava do meu pé. Discutimos porque tomei um martelinho no intervalo do almoço. Bobagem dele. Tanto é que trabalhei normalmente. Ele é que pisou na bola, deixando uns moleques invadirem o canteiro de obras e ficarem correndo de lá pra cá, infernizando a gente. Não via a hora de ir embora. Combinara com a Juliana que viajaríamos para a praia naquele mesmo dia. Pedi para sair mais cedo e ele concordou, desde que levasse algumas manilhas danificadas para a central de reciclagem. Para ir até lá eu teria que fazer um desvio e chegaria tarde em casa. Ele sabia disso e fizera de propósito, por pura maldade. Saí pisando duro. Espantei duas ou três crianças que brincavam de pique-esconde na pilha de entulhos e carreguei o caminhão. Sentei na boleia maldizendo minha sorte. Contrariando a ordem recebida, descarreguei num perau que fica no trajeto de casa.
Confesso que estive a ponto de perder a paciência. O relato em si era pífio. A não ser que ocultasse algo nas entrelinhas. Disfarçadamente examinei a entidade e notei que seu olhar mudara. Aparentava frustração.
— Tens certeza que é apenas isso Hermínio?
D. Juliana fizera a pergunta. Ela também não engolira a história. Por um momento Hermínio olhou para a vidraça, como se quisesse enxergar além dela. Exausto, desatou a chorar compulsivamente. Entre soluços, conseguiu dizer:
— Tenho certeza de nada!
Levantou-se agitado, olhando-nos com seus olhos vermelhos e vazios.
— As manilhas! Temos que procurar nas manilhas!
Enquanto a esposa tentava acalmá-lo, procurei a entidade para pedir que cessasse sua influência perniciosa. Ela desaparecera. A comoção que se abatera sobre Hermínio era resultado de remorsos há muito sufocados.
Assim que ele recobrou a calma, convenci D. Juliana que precisávamos deixá-lo descansar. Apesar de desconexa, a fala de Hermínio continha pistas importantes e eu precisava averiguar o tanto de verdade que ele deixara escapar. Assim que cheguei em casa, iniciei as pesquisas na Hemeroteca Digital. Comecei pelo noticiário de dezembro de 2017 e não me arrependi. Um caso rumoroso ocupara as manchetes de primeira página de todos os jornais e, até onde pude verificar, permanecia em aberto até os dias atuais.
O abalo nervoso de Hermínio atrasou em alguns dias a diligência que precisávamos fazer. Quando expus meu plano para D. Juliana, ela estranhou:
— Por que precisamos localizar as manilhas?
— Porque é nelas que iremos encontrar o segredo que seu marido esconde há quatro anos.
Marcamos um ponto de reunião na estrada que leva ao perau onde Hermínio dissera ter descartado o entulho da obra. Rodamos até que ele finalmente localizou o barranco em questão. Descemos com cuidado o terreno íngreme e escorregadio. No fundo, nos deparamos com várias camadas de detritos, depositadas de qualquer jeito naquele aterro clandestino. Pelo visto derrubar lixo na ribanceira era um hábito comum.
Cavamos por algumas horas, até que finalmente aflorou um pedaço de concreto pertencente a uma das manilhas. Concentramos esforços naquele setor e conseguimos trazer à luz boa parte do material descartado em 2017. Restos de toda sorte se misturavam a terra que íamos removendo. Uma sandália plástica em particular chamou-me a atenção. De seu interior, envolto pelo que fora uma meia, emergiu um pé mumificado. O tamanho do calçado indicava que pertencera a uma criança. Ordenei que cessassem as escavações e liguei para um inspetor de polícia conhecido. Não demorou para que o local fervilhasse de detetives, peritos, jornalistas e curiosos. Hermínio tinha muito a explicar, principalmente à Justiça.
Enquanto ainda estávamos sozinhos no monturo, D. Juliana exigiu que Hermínio esclarecesse qual sua ligação com aquele achado macabro. Desolado, ele finalmente abriu o jogo:
— Naquela sexta-feira de 2017 iniciei os festejos por conta própria, secando uma garrafa de cachaça antes de iniciar o expediente. Fiquei de fogo o dia inteiro. O encarregado constatou a situação e me afastou para que o engenheiro que vistoriava a obra não me visse naquele estado. Por isso ele mandou que eu levasse o material para longe. As crianças não invadiram. Eram filhos e filhas de moradores que, curiosas, observavam nossas atividades. Achei que debochavam de mim e perdi o juízo. Consegui alcançar um deles e apliquei uns safanões. Os outros fugiram apavorados, com medo de apanhar. Coloquei os canos na carroceria e vim até aqui para encurtar caminho. Joguei o material fora, fui pra casa, apanhei a Juliana e seguimos para a praia, onde passamos as festas de final de ano numa casa alugada. Soube do sumiço da menina depois do réveillon, ao retornar ao condomínio. O caso foi muito badalado na ocasião. Jamais a encontraram.
A esposa escutava incrédula, sentada numa pedra, com os cotovelos nos joelhos e as mãos na cabeça. Ao seu lado, a sombra que vira na residência do casal apareceu nítida, embora não pudesse perceber o rosto ou detalhes do corpo. Ao contrário do que supus de imediato, ela não viera em busca de vingança. Parecia solidária, disposta a apoiar D. Juliana naquele momento difícil. Hermínio continuava seu desabafo:
— Demorei para juntar os fatos. Lembrei de tudo ao ver o rostinho dela numa reportagem. Ela foi uma das que correram durante a briga com os moleques.
Nosso silêncio deve tê-lo incomodado. Fez uma pausa, trouxe as mãos junto ao peito e prosseguiu, dramaticamente:
— Vocês precisam entender. A culpa não é minha. Ela se escondeu dentro do cano porque quis. Juro que não percebi. Se ela gritou, juro que não ouvi. Até considerei comunicar o fato às autoridades, mas tive medo de ser preso. Vivo sofrendo com esse peso na consciência há quatro anos e agora não há como negar que fui o responsável pela morte da garotinha.
A análise dos restos mortais comprovou que se tratava de uma menina na faixa dos 12-14 anos, com data provável de falecimento compatível com o início das aparições. De acordo com o laudo pericial, a morte não se dera imediatamente. Ela sobrevivera alguns dias, entalada, incapaz de se movimentar devido a múltiplas fraturas decorrentes da queda. Morrera sozinha, em virtude dos ferimentos, da fome e da desidratação.
Identificaram o cadáver como sendo de Alice, filha de D. Márcia, ambas moradoras do condomínio. A ela coube a dolorosa tarefa de reconhecer nos trapos remanescentes as roupas que a filha vestia no dia do desaparecimento. Posteriormente, uma análise de DNA comprovou o que seu coração já sabia e ela pode, finalmente, dar a sua pequena um sepultamento decente.
Hermínio foi acusado de homicídio culposo. Responde ao processo em liberdade, já que não houve flagrante, é réu primário e colabora com as investigações. Se condenado, deverá passar vários Natais na cadeia.
D. Juliana abandonou o marido. Encontra-se em local incerto e não sabido.
De alguma forma D. Márcia ficou sabendo que eu contribuíra para a elucidação do caso e entrou em contato, solicitando que a visitasse em sua casa - ela permaneceu morando no mesmo lugar, na esperança que a filha reencontrasse o caminho de volta para seus braços.
Atendi ao convite num sábado, véspera de Natal. Ao tocar a campainha fui recebido por uma mulher bem diferente da que conhecera entre os despojos no barranco. Exibia um semblante cansado, porém sereno, como o de alguém que cumpriu uma missão difícil e agora tenta se recompor.
Ao entrar, passamos para uma sala parcamente mobiliada, como de resto as demais dependências da casa.
— Tive que vender os móveis para me manter enquanto procurava minha filha - disse em tom de explicação, nunca de desculpas.
Sentamos em torno de uma antiga mesa de jantar.
— Essa não vendi, porque era onde nos reuníamos enquanto ela era viva.
Um vistoso arranjo adornava o centro. Uma Coroa de Advento sobre uma toalha branca, decorada com motivos florais. D. Márcia passou os dedos carinhosamente sobre a borda rendada e continuou:
— Foi ela quem bordou. Alice adorava essa época do ano e era um costume nosso acender uma vela nos domingos que precedem ao Natal. Durante esses anos mantive viva a esperança de encontrá-la e pedia a Deus que a devolvesse para mim.
Pelo visto o pedido fora atendido. Contudo, a forma brutal como morrera, aliada a pouca idade, fez com que Alice desencarnasse num estado de profunda perturbação, impedindo-a de seguir em frente. O vínculo existente entre ela e a mãe crescia no período natalino a tal ponto que seu espírito lograva materializar-se parcialmente. Confusa, buscava referências no plano material. Ao invés de atender aos apelos da mãe, procurava a última pessoa que a vira com vida e era o culpado pelo seu destino trágico.
Uma luminosidade tênue surgiu atrás de D. Márcia, revelando que Alice se fazia presente. A evocação dessas memórias carregadas de afeto deve ter atraído a menina, que agora se apresentava plenamente visível - ao menos para mim. Vestia um traje simples, tipo de "andar em casa", impecavelmente limpo. Seus olhos, antes aterradores, emanavam paz. A julgar pela cara sapeca e sorridente, sentia-se feliz por estarmos juntos. Aproveitei que a emoção mantinha minha anfitriã distraída para sinalizar que estava tudo bem. A menina então abraçou a mãe pelos ombros, resplandeceu e sumiu.
Moral da história: nunca descarte manilhas de qualquer jeito!
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