A última sinfonia
Era tarde. A noite de gala convertera-se num desastre. Sentado em uma velha cadeira depositada no corredor que leva aos camarins do subsolo, Jacinto coçava lentamente a canela, numa débil tentativa de amenizar as dores que o afligiam. Uma proveniente da botinada desferida por seu companheiro de partitura, a outra da mágoa que existia em sua alma.
As luzes iam-se apagando aos poucos, assim como a esperança de Jacinto de um dia tornar-se o primeiro violino da Orquestra do Theatro Municipal do Rio de Janeiro. Tudo porque, horas antes, ocorrera um terrível mal-entendido.
Tocavam Vivaldi. As Quatro Estações para ser exato. A performance estava perfeita até chegarem no Outono, naquela parte em que quase todos os instrumentos silenciam para dar ênfase ao solo do violino. Pois bem, o solista, compenetrado, deu início a uma execução primorosa. Para espanto de todos, Jacinto, ao invés de aguardar o momento previsto para o seu naipe de cordas, ergueu-se e, com ar solene, começou a tocar o trecho que deveria ser exclusividade do artista convidado. Tal atitude causou perplexidade e confusão aos demais músicos, ao solista, ao maestro e a plateia. Attilio, que estava ao seu lado, resolveu intervir ao perceber o olhar furibundo do regente. Como não lhe acudisse melhor ideia, acertou um chute bem dado na canela do intrometido que, além de soltar um sonoro grito de dor fora do tom, arrastou o arco com força, arranhando as cordas do instrumento, produzindo um guincho estridente que quase interrompeu a apresentação. Graças ao profissionalismo do solista e a presença de espírito de Attilio o concerto prosseguiu sem que novos deslizes fossem cometidos. Após os últimos acordes, enquanto os aplausos ainda soavam no recinto, Jacinto saiu discretamente, decidido a escapar das inevitáveis chacotas e olhares acusadores.
O que teria levado Jacinto a cometer tamanha gafe? A explicação é simples: soberba. Acreditava ele - sem justificada razão - ser vítima de perseguição tanto do maestro como de seus colegas, invejosos por ser ele um virtuose. Era óbvio - de acordo com sua interpretação - que seu talento excedia sobejamente o do atual spalla e que esse posto devia ser seu por mérito e justiça. Na verdade o que sobrava em autoestima lhe faltava em autocrítica. Apenas Deus e sua mãe, uma viúva precoce, que conservava os traços da beleza que a fizeram famosa em seus tempos de corista, sabiam dos sacrifícios que essa última fizera para que o filho fosse aceito como membro da orquestra.
Imbuído dessa certeza, dedicara-se por semanas a ensaiar o solo na esperança que um acidente incapacitasse o solista e fosse ele o escolhido para substituí-lo. Iludido pela fantasia convertida em delírio, ignorou a realidade e acreditou ser ele a estrela do espetáculo, causando o desarranjo constrangedor. Agora escondia-se nas profundezas do prédio, num local de atmosfera sombria, assustadora, razão pela qual os trabalhadores do teatro raramente apareciam por lá. Buscava evitar que o maestro o encontrasse, pois a reprimenda era certa. Não fora essa sua primeira trapalhada e ele temia que provavelmente fosse a última.
As luzes por fim se foram, deixando Jacinto oculto pela penumbra. Por uma das claraboias entrava a luminosidade bruxuleante de um dos postes da Avenida Central, desenhando uma figura vagamente circular na parede em frente. Cansado, acabrunhado e sem ter o que fazer a não ser esperar pelo pior, posicionou o violino e começou a tocar timidamente, temendo que alguém ouvisse e o surpreendesse no estado de miserabilidade em que se encontrava. Dessa vez não era um clássico. Era uma composição de sua autoria, tão medíocre como tudo em sua vida.
Passados alguns minutos dessa apresentação solitária, aconteceu um fato insólito. No centro da área iluminada da parede em frente começaram a surgir minúsculos pontinhos pretos. Poderiam ser formigas, todavia brotavam do nada e permaneciam imóveis. Lá pelas tantas Jacinto percebeu o fenômeno, parou de tocar e ficou observando.
Acompanhou, pasmo, o surgimento de outros sinais familiares. Inicialmente pensou estar alucinando pelo cansaço. Custou a acreditar que aquelas garatujas pudessem ser o que pareciam ser. Teve plena certeza do que se tratava ao ver, nítidas, as cinco linhas da pauta e uma clave de sol. E não era uma partitura aleatória. Era a sua música transcrita nota por nota. Atônito, percebeu vários sinais sutilmente mudarem de forma, numa velocidade que mal conseguia acompanhar. Esse desconcertante balé durou o suficiente para Jacinto perceber que - quem quer que fosse - estava aprimorando sua composição. Em essência mantinha-se a mesma, porém as modificações introduzidas faziam uma diferença tremenda. Transformaram a obra insípida em um delicado manjar. Jacinto teve sagacidade suficiente para perceber isso e anotou o conteúdo da parede com medo que sumisse. A seguir, tratou de executar a obra.
O resultado era tão sublime que ele se empolgou e tocou como nunca tocara em sua vida, espalhando aos quatro cantos um sentimento de plenitude presente em cada acorde da inusitada melodia. O maestro, que ainda estava por lá, foi tomado pela curiosidade e tratou de descer para descobrir a origem daquela música encantadora.
Qual não foi sua surpresa ao perceber que era Jacinto quem tocava. Oculto pela mesma penumbra que disfarçava o músico, parou e escutou, embevecido, por um longo tempo. Ao terminar, o violinista levou um susto ao descobrir que não estava só. Levantou-se rápido e, ao balbuciar algo ininteligível como desculpas pelo vexame ocorrido anteriormente, foi interrompido pelos aplausos e pelas manifestações de júbilo do regente:
— Bravo! Bravíssimo! Quem diria que essa maravilha pudesse sair de alguém tão incompetente. Você escreveu isso?
— Sim.
— Acredite no que vou dizer, meu rapaz. Esqueça a carreira de intérprete. Seu futuro está em ser compositor.
No dia seguinte, Jacinto levantou cedo, tomou seu café apressado e rumou direto para o teatro. Aproveitou que a entrada de serviço estava aberta e esgueirou-se pela coxia até chegar, incógnito, ao corredor onde vivera a experiência sobrenatural. Precisava certificar-se de que o acontecimento extraordinário não deixara marcas e por isso procurava pela partitura misteriosa. Apesar de esquadrinhar o local diligentemente, encontrou apenas vestígios da pauta com algumas poucas notas. Respirou aliviado. Na pior das hipóteses, se alguém as descobrisse, poderia alegar que ele próprio fizera o registro num momento de súbita inspiração.
Alguns dias depois foi avisado pelo maestro que havia sido marcada uma audiência com a direção artística, na qual era imperiosa sua presença. Encontraram-se no saguão e, conforme o combinado, dirigiram-se a sala reservada aos ensaios do quarteto de cordas. O coração de Jacinto batia em descompasso. Estava certo de que a travessura do Outono não passara despercebida e alguém - ele - devia satisfações. Curiosamente, ao se aproximarem da porta, ouviram o som de um violino tocando sua música. O maestro, percebendo o misto de confusão e indignação de Jacinto, estacou e o segurou pelos ombros. Disse muito sério:
— Nós dois sabemos de suas limitações como músico. O Diretor também. Tomei a liberdade de levar a ele sua criação. Assim que soube quem era o autor ele exigiu que fosse escalado qualquer outro violinista para a audição. Concordei imediatamente, temendo que contrariá-lo poria tudo a perder. É a sua chance de mudar de vida. Comporte-se e não cometa asneiras!
Para o ego superdesenvolvido de Jacinto isso era pedir demais. Contudo, mesmo ele reconhecia o valor dessa oportunidade e decidiu engolir o orgulho ferido. Adentraram a sala nos acordes finais. O silêncio foi quebrado pelos passos da dupla ao se dirigir ao centro do recinto. À esquerda, o spalla, à direita três respeitáveis senhores a quem Jacinto conhecia apenas de vista. Francisco Braga, fundador da orquestra, estava lá e foi quem se manifestou:
— Esse é o prodígio do qual ouvi falar?
Sua cara sisuda era uma pilhéria em virtude dos múltiplos dissabores causados por Jacinto ao longo dos anos. Estendeu a mão e continuou, num tom benevolente:
— Parabéns meu rapaz. Sua composição é magnífica e gostaríamos de apresentá-la ao público no próximo recital.
Perplexo, Jacinto apertou a mão estendida e selou seu destino. Foi dessa maneira inusitada que sua trajetória artística deu uma guinada de 180 graus.
Embora a peça fosse indiscutivelmente notável, outros fatores pesaram na decisão do renomado professor e seus pares. O País vivia um período de ufanismo nacionalista e, por conseguinte, o Municipal fora instado a apresentar artistas nacionais que reforçassem esse conceito. Dentro desse contexto, o surgimento de um jovem compositor brasileiro, oriundo dos quadros da instituição, era perfeito e não podia ser desperdiçado.
A estreia ocorreu no mês seguinte. O programa incluía clássicos populares, árias de óperas conhecidas e fechava com a obra composta pela - como dizia o folheto - "revelação do cenário artístico nacional". Ao final o teatro quase veio abaixo com o frenesi da plateia, que não cansava de pedir:
— O autor! Queremos o autor!
Jacinto, que sempre ambicionara ser reconhecido, estava nas nuvens. Quem o trouxe de volta à Terra foi o maestro que o descobrira, ao questioná-lo sobre a existência de outras composições. A direção artística do teatro estava preparando a próxima temporada e pretendia incluir uma peça sua no repertório. Para isso, queriam novidades.
De volta à casa, Jacinto recolheu nas gavetas um punhado de criações antigas e as apresentou ao maestro. Esse deu um suspiro e foi sincero ao devolver os manuscritos. Eram pífios, simplórios, sem brilhantismo. O Theatro, e o público, ansiavam por algo a altura daquela que o guindara ao sucesso.
Ele bem que tentou, mas sua criatividade havia atingido o limite e nada de bom surgia do bico de sua pena. Sentindo-se acuado, escondeu-se nos bastidores do teatro e aguardou o início da noite para se dirigir ao corredor onde tudo começara. Ajeitou o instrumento e o fez chorar a pobreza de suas notas por horas, sem que nada acontecesse. No prenúncio da aurora, exausto, foi recompensado pela visão dos pontinhos pretos que começavam a brotar como da outra vez. Primeiro o original, em seguida o balé dos sinais e por fim uma melodia fresca e arrebatadora. No início da manhã, entregou a partitura ao maestro e retirou-se para dormir, sonhando com a ovação da patuleia.
A nova temporada do Theatro foi um sucesso, com destaque para a recente obra do jovem artista, agora elevado a posição de estrela. Convites para recitais, saraus e festas começaram a chegar com frequência inusitada. Jacinto tornara-se uma celebridade. No princípio pediam-lhe que levasse o violino. Com o passar do tempo tornou-se comum tê-lo apenas como conviva, desfrutando do evento, enquanto a música ficava a cargo de outrem - via de regra um grupo contratado.
Entretanto, nada vem de graça e o custo da manutenção da fama é a originalidade. O público é exigente e quer sempre coisas novas. Inclusive uma companhia estrangeira ofereceu-lhe um bom dinheiro. Planejavam sair em tournée pela América do Sul, apresentando exclusivamente o seu trabalho. Para isso encomendaram dez composições inéditas, a serem entregues num prazo bastante curto.
— Isso não será problema, espero - disse o agente que o procurou.
— Absolutamente não - respondeu Jacinto, pensando que seu estoque atual não passava de três rascunhos mal acabados.
Naquela noite lá estava ele apresentando à parede o que restara de sua verve criativa. Infelizmente a matéria-prima era tão ruim que, após transcrever e tentar algumas combinações, o resultado fora apagado sem deixar vestígios, deixando Jacinto a ponto de sucumbir ao desespero. Felizmente o destino tinha outros planos e o inusitado veio novamente ao seu socorro. Dessa vez a parede apresentou ao mundo, por suas mãos, uma série de sua própria lavra. Em poucas noites as dez obras contratadas estavam disponíveis com três de lambuja. A partir daí a fama de Jacinto espalhou-se como folhas ao vento e ele passou a ser tocado não apenas no Theatro Municipal, mas em todo o Rio de Janeiro, no Brasil e entre nossos hermanos continentais. Conta-se, não há como comprovar, que uma de suas peças foi tema de abertura de um programa transmitido pela recém inaugurada Rádio Nacional.
Admiradores - e detratores - notaram significativas mudanças em seu estilo. As linhas melódicas estavam adoravelmente complexas. O uso inusitado da segunda voz era inovador. Apesar de ser violinista, dava a impressão de estar compondo para piano. Por essa razão, a partir dessa leva, a crítica passou a considerá-lo como o sucessor do saudoso compositor de tangos brasileiros tragicamente falecido há pouco mais de um ano.
A situação era tão favorável que Jacinto nem precisava se ocultar nas sombras para "compor". As portas do teatro estavam sempre abertas para o que supunham ser um capricho do mestre: sentar-se sozinho naquele corredor sombrio para trabalhar sem perturbações. Entrava mudo e saia calado. Durante sua permanência no recinto, funcionários atentos ouviam a delicada flor do gênio musical desabrochar em seu violino. Nem os ocasionais rabiscos remanescentes causavam estranheza, pois para o Municipal era uma honra ter suas paredes decoradas com os autógrafos deixados por Jacinto.
Houve um período de vacas magras. Jacinto varava noites a fio ansiando por uma manifestação de seu benfeitor. Nada acontecia. Na cidade, comentava-se a boca miúda sobre a crise de seu ilustre representante:
— É uma fase - dizia um.
— Bloqueio criativo, com certeza - emendava outro.
Angustiado, Jacinto sofria em silêncio. Sabia que o desaparecimento de seu colaborador espiritual significaria o fim de sua carreira, da fama e da fortuna que começara a amealhar. Felizmente, após um longo jejum, pode voltar a respirar aliviado. Os tão esperados pontinhos pretos começaram a pipocar como nunca. Em pouco tempo a parede inteira do corredor estava tomada de pautas, cifras, colchetes, sustenidos e bemóis. Jacinto estava eufórico por ter de volta seu camarada, mas o assustava essa explosão criativa. Dessa vez surgia uma obra grandiosa, maior que as sonatas que recebera até então. Era um concerto para piano e orquestra, magnífico e quase completo. Faltava a abertura.
Esta surgiu num final de tarde. Os acessos ao corredor onde a mágica acontecia estavam bloqueados para que Jacinto pudesse compor em paz. Nem o maestro, que se tornara seu amigo, atrevia-se a interrompê-lo. Esse isolamento era providencial, uma vez que impedia que algum bisbilhoteiro descobrisse seu segredo. Principalmente o que foi revelado quando a última parte da obra veio à tona. O colaborador fantasma concluíra seu trabalho e, dessa vez, se dava a conhecer. Abaixo do título, bem visível, Jacinto viu surgir, uma a uma, as letras que anunciavam o legítimo dono da composição: Ernesto Nazareth. Era óbvio que após ter ajudado anonimamente aquele músico insignificante Ernesto desejava o merecido reconhecimento. Em vida não pudera mostrar ao mundo seu último e melhor trabalho. Agora, limitado por sua condição extracorpórea, pedia a Jacinto para fazê-lo em retribuição.
Incapaz de demonstrar gratidão, ou ao menos generosidade, Jacinto cuspiu na parede, pegou seu lenço e esfregou com raiva, borrando a assinatura de Ernesto. A seguir, saiu sem trocar palavra com quem quer que fosse, inclusive o grupo de fãs que o aguardava no saguão de entrada. Ao verem o calhamaço de papel que levava debaixo do braço, tiveram certeza de que uma bela surpresa seria anunciada em breve.
A essas alturas o prestígio conquistado por Jacinto lhe franqueara acesso direto à Francisco Braga, que o recebeu de braços abertos em seu gabinete. À portas fechadas, foi ele o primeiro a tomar conhecimento da novidade trazida pelo antigo violinista. Embasbacado pela genialidade da obra, decidiu incluí-la na programação daquela temporada - que já estava fechada - e apresentá-la em setembro, durante as comemorações da independência. O prazo era exíguo, mas factível. O Theatro inteiro mobilizou-se para montar um espetáculo memorável, inesquecível!
Era tarde. A noite de gala convertera-se num desastre. Sentado em sua velha cadeira no corredor que leva aos camarins do subsolo, sentindo-se derrotado, Jacinto perscrutava a parede em frente em busca de respostas.
Horas antes, seu estado de espírito era completamente diferente. Os ingressos para a audição estavam esgotados. Há dias não se falava de outra coisa. Getúlio Vargas, Presidente da República na ocasião, comparecera em pessoa para prestigiar a primeira audição da sinfonia.
Em cada apresentação de uma orquestra há um momento de silêncio que precede o caos. É quando o maestro ergue a batuta, pronto para reger. O tempo congela naquele átimo de segundo. Nada mais importa. Todos aguardam o movimento inicial que quebrará aquele estado de suspensão. Os músicos posicionam-se em reverente atenção. A plateia aguarda o primeiro acorde para só então se entregar ao êxtase proporcionado pela música. Dessa vez foi diferente. Tesos frente a suas partituras, maestro, compositor e músicos descobriram, juntos, que todas as páginas estavam em branco. No lugar das notações surgiram, garrafais, as letras que revelaram ao mundo: Jacinto é um farsante.
Ótima história, Paulo! Parabéns!
ResponderExcluirMuito obrigado Alexandre!! :)
ResponderExcluir