Uma vida passando a limpo
Era sexta-feira, final de outono. Estava tranquilo na minha poltrona, curtindo as luzes da tarde que se infiltravam entre as persianas da janela quando o telefone tocou. A semana fora relativamente calma e já não esperava ser solicitado aquela hora. Meus clientes preferem ligar de manhã cedo ou no início da noite, horários em que acordam dos pesadelos ou se preparam para enfrentá-los. Seja como for, o toque insistente do celular quebrou a modorra e trouxe-me de volta à realidade.
A julgar pela agitação da pessoa do outro lado da linha, o assunto era de natureza singular. Um mistério que precisava ser desvendado antes que o levasse a loucura. Pedi que se acalmasse e fornecesse detalhes. Pelo que entendi era outro caso de manifestação sobrenatural, gerando desconforto no mundo dos vivos. O detalhe é que eu moro no Rio de Janeiro e o solicitante numa cidadezinha em Minas Gerais. Apesar disso, insistia para que eu o atendesse imediatamente. Como se tratava de uma viagem de seis horas - não gosto de dirigir a noite -, agendei a visita para o dia seguinte e desliguei o telefone. A tarde ainda não terminara e queria saborear o que restava do dia em absoluta paz.
Ao chegar no endereço fornecido confesso que fiquei impressionado. A casa era térrea, com janela de vidros pequenos e quadrados. A porta de madeira, de duas folhas, acompanhava o pé direito alto. A fachada sóbria, nem por isso menos elegante, fora reformada há pouco. Ficava no centro histórico, numa ruazinha sinuosa, pavimentada com pedras irregulares e cercada pelo casario colonial. Estacionei em frente, onde um homem na faixa dos cinquenta e poucos anos aguardava ansioso. Seu nome era George, uma referência a um antepassado distante, oriundo da Inglaterra. Feitas as apresentações, entramos e demos uma volta para conhecer a residência. Segundo suas pesquisas, a edificação tinha no mínimo 200 anos e encontrava-se, em sua maior parte, no estado original. Proprietários anteriores construíram uma ala nova no início do século anterior para incluir cozinha e banheiros modernos. A partir de então o imóvel fora tombado e não podia ser modificado.
Meu anfitrião era solteiro. Morava sozinho e demonstrava ser uma pessoa requintada. Por isso chamou-me a atenção a decoração utilizada nos ambientes. A profusão de enfeites e babados sugeria ser o lar de uma idosa. Parei para olhar um trilho de croché sobre um aparador e ele percebeu:
— Imagino o que estás pensando. Garanto que nada tenho a ver com esses cacarecos que infestam a casa. Aliás, esse é um dos motivos pelos quais resolvi chamá-lo.
Fomos até a sala de estar, onde sentei numa poltrona de braços e aguardei ele servir uma generosa dose de cachaça da região. Uma oferta irrecusável!
De pé, circulando a passos lentos, cálice na mão, ele permanecia em silêncio, provavelmente avaliando como deveria introduzir o que tinha para dizer.
— Comece pelo princípio - disse para incentivá-lo. É a melhor maneira de contar uma história de fantasmas.
Ele sorriu sem graça. Eu anotei mentalmente que se tratava de um caso de fantasmas.
Consumida a terceira dose de coragem ele acalmou-se e começou a falar. Durante a maior parte de sua vida adulta morara em grandes centros urbanos, acalentando o sonho de, uma vez aposentado, vir morar em algum recanto calmo e aprazível. Cultivava um apreço especial pelo interior de Minas e não titubeou ao se deparar com a possibilidade de adquirir a casa na qual estávamos.
A oportunidade surgiu porque a dona - uma senhora que morara toda sua vida aqui - falecera e os herdeiros não tinham interesse na propriedade. Fixaram um preço razoável para agilizar a venda, pois tinham pressa em repartir o dinheiro. Retiraram uns poucos pertences, deixando a maior parte da mobília para trás.
— Uma pechincha! - fez questão de ressaltar.
A partir daí tudo correu bem durante vários meses, até que uma série de acontecimentos inexplicáveis começou a perturbar o sossego de George. Nesse ponto da narrativa interrompi para esclarecer uma questão fundamental nesse tipo de investigação:
— Saberias dizer exatamente em que momento as manifestações tiveram início?
Sim, ele sabia dizer e não se fez de rogado. Perguntou se eu notara a existência de uma capela na mesma rua. Segundo ele, via de regra, está fechada. Embora não seja religioso, George tinha curiosidade de conhecê-la por se tratar de um prédio histórico, em estilo barroco. Certa feita, retornando das compras, a encontrou com as portas abertas. Celebravam missa em homenagem a uma moradora da rua - a ex-dona da casa que comprara. Havia uma dezena de presentes, se tanto, e ele sentiu-se na obrigação de ficar até o final.
No dia seguinte, saiu para dar sua caminhada habitual. Era uma manhã fria e a cidade ainda dormitava, amortalhada pela névoa que não dissipara de todo. Ia em direção ao Largo do Carmo, onde tomaria café na padaria. Ao passar aos pés da escadaria da Igreja das Mercês, sentiu-se compelido a subir para apreciar a vista privilegiada que se divisa do alto do monte. Costumava frequentar a área com relativa assiduidade não só para admirar a paisagem. Gostava sobremaneira de desfrutar a sensação de recolhimento proporcionada pelo silêncio da nave vazia. Ao galgar o último degrau, percebeu que as portas do templo estavam fechadas. Respirou fundo para recuperar o fôlego e perambulou a esmo, até se deparar com o portão do cemitério que fica ao lado. Estava aberto. Talvez ficasse assim todos os dias, ele é que nunca reparara. Um enorme gato peludo olhava em sua direção. Subitamente, entrou sem fazer ruído e George o seguiu.
Ao contrário do que sempre supusera, a morada dos mortos não era mórbida ou opressiva. Na verdade inspirava a mesma sensação de calma que o isolamento da igreja lhe oferecia. O gato sumira e ele foi atraído pela sucessão de lápides ladeando a alameda principal. Aos poucos foi adentrando aquele lugar silencioso, onde rostos esmaecidos, datas pretéritas e epitáfios entalhados no mármore o convidavam a adivinhar os segredos de tantas vidas passadas. No momento em que calculava a idade de uma jovem sorridente, ouviu passinhos apressados, como se alguém viesse correndo em sua direção. Pensou que fosse o gato e procurou em torno, sem nada encontrar. Não deu maior atenção ao fato e tratou de retomar a caminhada. Ao chegar em casa reparou numa velha sombrinha pendurada no cabideiro localizado atrás da porta, o qual, a princípio, deveria ter apenas seu boné pendurado. A partir daí eventos como esse foram se desdobrando com crescente intensidade e rapidez. Chegou ao ponto de alguns móveis antigos, guardados por ele num depósito, reaparecerem misteriosamente, como se voltassem para ocupar um posto que lhes era de direito. Chegavam sujos, empoeirados e, sem que pudesse explicar como ou porque, de uma hora para outra estavam limpos, lustrosos, cheirando a cera de carnaúba.
Eu ouvia atento a tudo, inclusive aos sons de uma movimentação furtiva que irrompera nos fundos.
O rol de manifestações parecia infinito. Até uma broa de milho se materializara dentro do forno do fogão a gás. George sentiu cheiro de queimado e apagou o fogo. Foi a partir desse incidente que ele percebeu a gravidade da situação e decidiu pedir ajuda. Sinalizei que era o bastante, pois precisava de outro dado significativo no contexto:
— Vistes ou ouvistes algo estranho durante essas ocorrências?
Disse ele que não, parecendo sincero. Muitos omitem essa parte do relato temendo o julgamento alheio. George estava seguro de si. Pedi que aguardasse e segui pelo corredor que interligava as peças. Ao final, mesclada na obscuridade do fim de tarde, encontrei um espectro rechonchudo, de aspecto inocente, sentado numa cadeira de balanço, bordando um pano de prato com suas mãozinhas gorduchas. Era uma senhorinha de aspecto austero, vestindo um tailleur escuro e sapatos baixos. O semblante era sereno, apenas seu olhar denunciava uma tristeza incubada. Confesso que fiquei com dó daquele ser em seu profundo desamparo. Demorei além do que devia observando-a e ela percebeu meu interesse. Antes que pudesse estabelecer contato, ergueu-se, deu-me as costas e fundiu-se com a penumbra.
George surgiu curioso:
— O que houve?
— Minhas suspeitas acabam de ser confirmadas. Não voltastes sozinho da visita ao cemitério.
Descrevi sucintamente a visão e aguardei sua reação.
— E agora, o que se faz numa situação dessas?
— Primeiro precisamos descobrir o que a mantém presa ao plano material e, depois, a ajudamos a resolver essa pendência.
— Só isso?
— Isso por si só pode ser difícil o suficiente. E outra coisa. Este tipo de tratamento é semelhante ao indicado para alcoólatras. Para que aconteça a cura, o paciente precisa reconhecer que tem um problema. Enquanto ela não aceitar que está morta, nada podemos fazer.
A noite chegara e fui procurar uma pousada onde pudesse me instalar. A tomada de contato inicial não ocorrera como desejava e preferia afastar-me para evitar o surgimento de um clima tenso entre mim e a entidade. Estava numa cidade turística, no período de baixa temporada, de modo que foi fácil encontrar uma próxima ao local. Sentado sobre a cama pesquisei nos sites habituais e pouca coisa apareceu. Um levantamento na documentação de compra e venda revelara que o nome da última dona era Cândida. Uma pessoa comum, sem ocorrências significativas que justificassem registros nos jornais da época. Dessa vez a investigação teria que ser feita única e exclusivamente através de entrevistas com aqueles que conviveram diretamente com ela.
A semana revelou-se produtiva. Ao contrário dos habitantes da capital, os moradores dos arredores adoravam conversar. Bastava um "boa tarde, tudo bem?" para abrir o canal de diálogo. Recolhi muita informação sentado no meio-fio, tomando sol e comendo biscoito de polvilho. Graças aos vizinhos tomei conhecimento de episódios marcantes na vida dessa senhora. Dos filhos obtive revelações da intimidade familiar. Dessa forma, pude traçar um perfil bastante preciso de D. Cândida e entender algumas atitudes adotadas no pós-vida, o que foi essencial para solucionar o problema.
Se pudéssemos resumir sua biografia em uma palavra, esta seria "lar". Seus pais, em especial a mãe, eram excessivamente rigorosos, com ideias bem definidas sobre moral, religião e o papel da mulher na sociedade. Frequentara apenas as séries iniciais da formação básica. Largara a escola cedo por determinação paterna. Precisavam, pensava ele, prepará-la para tomar conta da casa, tendo em vista um casamento vantajoso que se adivinhava num futuro próximo. Casada, viveu à sombra do marido, dedicando-se ao extremo na execução das tarefas para as quais fora treinada: lavar, passar, cozinhar, criar filhos e sofrer em silêncio as agruras trazidas por um matrimônio sem amor.
É possível afirmar que a vida não foi gentil com D. Cândida. Ainda mocinha teve de suportar uma união que prometia ser promissora e na prática converteu-se num desastre. O marido, homem feito, revelou-se ciumento, inseguro devido a juventude e beleza da esposa. Vivia trancada em casa. Frequentador assíduo de mafuás e beberrão inveterado, fez de sua vida um inferno. Por mais que ela se dedicasse a agradá-lo, nada era bom o bastante.
Quando vieram os filhos - cinco no total - ela fechou-se definitivamente para o mundo, canalizando suas energias para que todos enxergassem em seus rebentos a perfeição que ela buscava em sua vida particular. Para atingir esse objetivo, exigia das crianças comportamentos incompatíveis com sua idade. Qual criança não quer correr e acaba caindo, sujando a roupa ou ralando os joelhos? Ou esquece de guardar os brinquedos? Traquinagens bobas viravam pecados mortais aos olhos de D. Cândida e acarretavam punições severas. Conforme seus filhos cresciam, fugiam na primeira oportunidade em busca de liberdade e evitavam voltar aquele ambiente opressivo. Avessa a qualquer forma de convívio com os vizinhos - principalmente após a viuvez - ela optou por viver apartada, dedicada aos afazeres domésticos, tornando-se vítima dessa obsessão.
Apesar da gentileza com que fui tratado por aqueles que me receberam, sabia que precisava ser rápido. Caso contrário, corríamos o risco de D. Cândida optar por permanecer no plano físico indefinidamente. Entre uma conversa e outra visitava George na esperança de vê-la novamente - o que nunca aconteceu. Certo de que ela evitava encontrar-me propositadamente, lancei mão de um ardil. Fui até o pátio e meti o pé na terra fofa de um canteiro de salsinhas. Incontinenti, desfilei casa adentro, deixando marcas onde pisava. Encontrei-a na soleira da porta dos fundos, com a vassoura na mão e uma expressão contrariada no rosto:
— O senhor não tem vergonha? Pra que fazer isso?
— A senhora me evita há dias. Foi a maneira que encontrei de provocá-la.
— Fazer lambança em casa alheia é falta de modos, sabia?
— Peço desculpas. Sei que é feio, contudo fico feliz por ter funcionado e poder privar de sua presença.
— E o que há de tão inadiável, posso saber?
O semblante subitamente desanuviado revelou que ela não era imune a adulação. Continuei com cautela:
— Imagino que saibas que George comprou essa casa.
— Essa casa é minha.
— Essa casa foi sua. Agora é do George.
— Mentira!
Um cachorro de biscuit passou rente à minha cabeça e espatifou-se ao bater no quadro da Santa Ceia pendurado na parede. Os móveis começaram a tremer. Um mochinho levitou por alguns instantes e temi que também fosse arremessado contra mim. A demonstração de raiva mascarava a verdade que ela se recusava a encarar. Fui direto ao ponto:
— A senhora está morta, D. Cândida. É hora de seguir em frente e deixar o mundo para os vivos.
Foi uma explosão contida, porém desastrosa. Um armário de jacarandá foi irremediavelmente danificado. Vários bibelôs se perderam. O espelho do corredor trincou de alto baixo. Senti o deslocamento de ar empurrar-me alguns centímetros sobre o assoalho de madeira. George veio correndo ver o que se passava. Da senhora não encontrei vestígio e cheguei a pensar que talvez o choque tivesse resolvido a questão. O que não era verdade. Passados dois dias, encontrei-a num canto, chorosa, batendo maionese desandada numa caneca de alumínio. Ao me ver nem sequer fez menção de fugir. Ficou ali, fungando e me olhando com aqueles olhinhos tristes. Largou a caneca num canto, limpou as mãos no avental e disse, compungida:
— Sabe o que me dói?
Eu não sabia. Pedi que contasse.
— Depois de tudo que fiz por minha família, quem se lembra de mim? Meu marido - que Deus o tenha! - era um coitado que preferiu enxergar a vida através de um copo de pinga. Dei duro para manter-nos com um mínimo de dignidade possível. Criei cinco filhos praticamente sozinha. Cinco filhos! Saudáveis e formados. Não foi fácil, mas consegui.
— Ninguém pensa o contrário D. Cândida. Todos aqui conhecem sua história, seus sacrifícios e suas vitórias.
— Até parece. A sepultura onde me enfiaram está abandonada há mais de ano. Não foram capazes nem de trocar as flores murchas do dia de finados.
Ela não deixava de ter razão por considerar-se injustiçada. Almejava ser lembrada com amor, tendo certeza que seus sacrifícios não foram em vão. Pensei que era hora de ter uma conversa com os envolvidos.
O aniversário de segundo ano de falecimento de D. Cândida estava chegando. Era a desculpa perfeita para organizar um tributo e provar a ela que não fora esquecida. Entretanto, convencer os filhos a limpar o túmulo foi fácil se comparado a dificuldade em fazê-los voltar à casa. A ideia foi recebida com reservas por evocar recordações desagradáveis. Além disso, terem deixado a mãe passar seus últimos anos em profunda solidão lhes fazia sentir doses cavalares de remorso.
A princípio George não entendeu o plano, afinal:
— O que uma festa tem a ver com exorcizar um fantasma?
Eu sorria e explicava que essas coisas são assim mesmo.
— Nem sempre o melhor caminho é o mais curto, George.
Na data marcada, as celebrações tiveram início com uma missa in memoriam oficiada na capela próxima, seguida de uma recepção para amigos, vizinhos e familiares na residência da falecida.
Uma faxina geral deixara tudo impecável. Retratos dela foram distribuídos estrategicamente. Os convidados eram instruídos a limpar bem os pés antes de entrar e a não tocarem na mobília.
Porta copos foram distribuídos sem parcimônia, sob o olhar atento da homenageada, ansiosa cada vez que alguém fazia menção de largar sua bebida sobre os móveis. Para aliviar a tensão, brinquei com ela:
— Calma D. Cândida. Afinal, não queremos rodinhas!
Ela suspirou e parou ao meu lado. Estávamos numa saleta reservada, com pouco movimento. Algumas crianças haviam entrado e folheavam revistas antigas, sem dar atenção ao que se passava ao redor. Dessa vez surgira com um traje de corte clássico, estampado com discretos motivos florais. Vestira-se com esmero para a festa.
— A senhora está muito elegante - comentei.
— Obrigada eu ...
Foi interrompida por uma das crianças, que passou correndo. Ao fazer isso, esbarrou no guardanapo que ornava uma mesinha, derrubando um vaso com flores, afastando-se sem perceber o que havia feito. D. Cândida fez menção de reagir, mas antes que dissesse ou fizesse algo, um casal de primos, na faixa dos sete anos de idade, tratou de levantar o vaso e refazer o arranjo.
D. Cândida emudeceu. A iniciativa demonstrada pelos netinhos lhe causara uma forte impressão. Aproveitei a ocasião para dizer:
— Este é o teu legado. Agora cabe a eles viverem de acordo com o teu exemplo.
Um lampejo brilhou forte, iluminando aqueles olhinhos obscurecidos pela tristeza. Ela olhou para mim com alegria, ao mesmo tempo em que punha a mão direita sobre o peito. Foi a última vez que a vi. D. Cândida finalmente desapegara e decidira fazer a passagem.
Esperei respeitosamente a conclusão de sua partida, chamei as crianças e dei a cada uma delas três reais.
— Trato é trato gurizada!
Eu prometera um real se agissem conforme minhas instruções. Só que foi preciso repetir a cena três vezes até que D. Cândida percebesse.
Cuidado ao comprar uma casa antiga...
ResponderExcluirIsso de comprar casa com inquilino dentro é uma dor de cabeça ...
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