Lenda urbana


Por mais adulta e independente que seja uma pessoa, a perda de um dos genitores sempre deixa um gosto amargo de orfandade. Quando meu pai morreu eu estava longe e, a princípio, aceitei a notícia com serenidade. Senti a exata noção da perda apenas ao receber pelo correio diversos pertences pessoais do velho enviados por minha irmã, os quais lhe pareceu que seriam de meu interesse. Aberta a caixa, revelou-se uma coleção de coisas que só se encontram no Rio Grande do Sul, meu torrão natal: boina campeira, guaiaca, bombacha, faca de churrasco e um sortimento de tralhas diversas. Pedaços de lembranças que guardo até hoje. Ela aproveitou a ocasião para remeter também itens que eu havia deixado ao me mudar para o Rio de Janeiro e que agora só ocupavam espaço no apartamento de nossa mãe. Os cacarecos eram de outra espécie, adequados a uma infância bem vivida naqueles idos tempos de brincadeiras analógicas: time de botão, chimpa para o jogo de tampinhas, álbum de história natural, figurinhas de jogadores do Internacional, ou seja, um tesouro inestimável. Acompanhava o rol um envelope pardo, lacrado, que reconheci na hora, mas precisei reunir coragem para abrir. Seu conteúdo avivou memórias capazes de arrepiar os poucos fios de cabelo que ainda me restam. São recortes de jornais que tratam de um fato que para muitos não passa de lenda urbana. Menos para mim, que tive o desprazer de testemunhá-lo ao vivo e a cores.

Em 1977 não passava de um piá desengonçado, na faixa dos nove anos. Morava em Porto Alegre com a família, em uma área residencial de classe média baixa. Estudávamos, eu e dois irmãos, numa escola pública distante duas quadras de casa. O maior prédio das redondezas tinha quatro andares. Hoje o bairro tornou-se um requintado centro gastronômico e empresarial. A última vez que passei por lá, nosso antigo lar fora convertido num salão de beleza para animais de estimação e era uma das últimas construções térreas que resistia as investidas da expansão imobiliária. Estava sitiado por edifícios altos, frios e assépticos. As calçadas, outrora pistas de corrida para carrinhos de rolimã, regrediram a sua triste condição de passagem, onde transeuntes taciturnos se deslocavam de um ponto a outro.

Por estudarmos no mesmo turno, meu irmão mais velho e eu íamos e voltávamos juntos, caminhando. Por vezes solitários, outras acompanhados dos colegas. Enquanto aguardávamos a sineta chamar para o início das aulas, era comum improvisar um joguinho de futebol, onde as goleiras eram nossas pastas de couro e a bola qualquer coisa supostamente esférica - não raro cascalhos, bolotas de papel ou caroços de abacate.

Vivíamos numa bolha de inocência. Para nós, esse cotidiano era tão natural que estranhávamos quando nossa mãe, séria, reforçava a importância de não conversar com estranhos, nem aceitar balas, bombons e convites para passear no carro de desconhecidos. Isso nunca acontecera e, frequentemente, eu andava atento, olhando em torno, procurando esses supostos subornadores somente para poder dizer a ela que eu resistira a suas investidas.

Embora ainda fosse criança, sabia que uma ditadura governava o País. Seguíamos um rígido código de conduta tácito que regia nossas vidas, cujo objetivo era evitar problemas com as autoridades. Apesar disso, volta e meia a dura realidade interferia na rotina escolar, como da vez em que a professora de artes inventou de homenagear a bandeira nacional. Propôs ela que, na próxima semana, cada aluno trouxesse a sua versão redesenhada de forma livre, composta a partir dos elementos da original. No dia seguinte a vice-diretora visitou a sala explicando que a atividade estava suspensa até segunda ordem e seria substituída por um desenho livre com o tema "Semana da Pátria". Certamente a ideia chegara aos ouvidos das instâncias superiores, que preferiram evitar essa manifestação de patriotismo com receio de configurar algo minimamente próximo do ato subversivo de recriar o símbolo máximo da nação brasileira.

Outro dia Setembrino - meu melhor amigo - fez uma revelação bombástica enquanto aguardávamos na fila da merenda. Ao procurar um livro na estante do escritório do pai encontrara um exemplar de O Capital, de Karl Marx.

Falando assim parece que sabíamos do que se tratava. O tópico era tabu e ocasionalmente ouvimos falar que era um tratado de esquerda que todo comunista levava a tiracolo. Só tomei conhecimento do significado dessa obra e seu autor durante o segundo grau, graças a um dedicado professor de história. 

Após saborear o efeito surpresa que causara, reproduziu a explicação que recebera:

 Para combater o comunismo é preciso conhecê-lo!

 Pode até ser - pensei com meus botões, convencido que a família de Setembrino corria um risco enorme. Se a desculpa esfarrapada não convencera a mim, imaginem o que diria um agente do DOPS!

Dentro deste contexto é fácil entender por que ficamos apreensivos naquela manhã em que uma viatura da Brigada Militar estacionou em frente ao portão da escola. Da janela da sala de aula víamos os lampejos do giroflex como prenúncios de mau agouro. Um burburinho se espalhou rapidamente:

 Vieram buscar a professora de artes!

Felizmente a presença da lei fora motivada por outras razões. Interromperam as aulas e reuniram alunos, professores e funcionários no auditório, onde - foi o que disseram - seria ministrada uma palestra sobre segurança e comportamento responsável. Após uma rápida apresentação, três agentes se revezaram repetindo orientações idênticas as maternas a respeito de estranhos. A diferença é que encerraram pedindo que se isso acontecesse, deveríamos avisar a polícia imediatamente.

Nem preciso dizer que o assunto predominante no recreio foi a interpretação do real motivo da palestra surpresa. Quase a um só tempo, os grupos de cochicho chegaram a mesma conclusão: o aviso estava ligado a uma série de sequestros de crianças cujo objetivo era a extração de órgãos, ou de sangue, dependendo da versão.

A simples menção da existência de gente capaz de uma barbaridade desse quilate mexia com meus nervos. Todos temos nossos medos particulares. Eu sentia pavor.

A maioria não levava isso a sério, preferindo acreditar que se tratava de lorota para nos manter na linha. Secretamente eu sabia ser verdade porque um colega meu atestara a veracidade do fato por ter ficado sabendo através de um primo do vizinho de um conhecido que o filho deste fora vitimado dessa forma. 

Em suma, a cronologia do crime era a seguinte: os meliantes aguardavam próximos a escolas, onde escolhiam sua presa. O inocente ia andando sozinho e, de repente, era sugado para dentro de uma kombi, sumindo sem deixar vestígios. Dias depois era encontrado morto, completamente exangue ou com órgãos removidos cirurgicamente. Sob o cadáver, uma certa quantia em dinheiro para custear as despesas do funeral.

Por sorte o déficit de atenção inerente as mentes juvenis afastava o pensamento desse tipo de coisa para concentrar-se em assuntos realmente importantes - pelo menos para nós. Na semana da palestra nossa equipe de futebol foi desafiada para uma partida contra o grupo chefiado por Disparada. Jair Rodrigues que me perdoe, mas o nome da música caia como uma luva nas costas do líder dos garotos da rua de cima. Ele vivia aprontando e, ao ver sua mãe dobrar o cinto para lhe dar umas lambadas, passava em disparada, escondendo-se sabe-se lá onde.

O desafio que recebemos tinha um motivo nobre: tratava-se da estreia das novas camisetas do time adversário. Encarávamos o futebol com seriedade e ter fardamento próprio sinalizava o quanto a apresentação do plantel era importante. Naquela época havia lojas especializadas em confeccionar camisetas sob medida, de acordo com o modelo fornecido pelo cliente. No nosso time, o estilista era eu. Por ser desenhista, nosso pai mantinha em casa os apetrechos necessários para a tarefa, incluindo as canetas de nanquim, das quais tinha um ciúme tremendo, que eu usava escondido para finalizar os traços sobre papel vegetal. Ele desenhava muito bem e creio ter herdado dele essa habilidade. Em várias ocasiões, colaborou na criação dos emblemas e uniformes que utilizávamos - bem como no atendimento das tantas encomendas que recebíamos. A peleja foi acertada para o próximo sábado à tarde, no campinho localizado num terreno baldio. O lugar era o paraíso da molecada, uma verdadeira área de lazer a céu aberto, onde se fazia de tudo: guerra de mamona, empinar pipa, brincar de polícia e ladrão e, óbvio, jogar futebol. Anos depois a área foi loteada e converteu-se num dos bairros chiques da cidade. Rente ao campo onde disputávamos nossas peladas passa hoje a Av. Nilo Peçanha.

Nos reunimos na escadaria da igreja Nossa Senhora Auxiliadora e fomos a pé ao encontro do time do Disparada. Era um pouco longe, mas quem se importava? Éramos jovens, cheios de energia e o tempo passava em outro ritmo, bem menos acelerado do que nos dias atuais.

A partida começara há algum tempo e perdíamos de um a zero. Eu jogava no gol e preocupava-me a agilidade do capitão do outro time. Mal a bola passava do meio de campo, lá vinha ele driblando, pronto para atacar. Cheio de vontade de ampliar o placar, ele chutou forte e mal tive tempo de espalmar a bola, que rolou pela linha de fundo. A torcida vibrou com a defesa e levantei apressado em busca da pelota - não tínhamos gandulas. Um pouco afastado do campo, próximo a um pequeno bosque de eucaliptos, Leleco, colega de escola de outra série, a segurava junto ao peito. Estranhei seu olhar assustado e sinalizei para que a devolvesse. Ele balançou a cabeça em negativa, virou e saiu correndo entre as árvores. 

A atitude dele pegou-me de surpresa e corri em seu encalço. Os outros jogadores não perceberam de imediato o que acontecera e demoraram um pouco para entrar na perseguição. Eu devo ter percorrido bem uns cinquenta metros. Estaquei de imediato ao ver Leleco deitado de costas no chão, pálido como nunca o tinha visto antes. Estava nu, com olhos vidrados e a boca semiaberta. Um lençol branco o cobria da cintura para baixo. De um corte mal suturado na linha da cintura escorria um filete de sangue. A cena era terrivelmente insólita, entretanto a adrenalina estava alta e só importava retornar ao campo para reverter o placar. Quando abaixei para catar a bola parada ao seu lado, percebi que havia cédulas de Cruzeiro - o dinheiro da época - debaixo de sua cabeça. Esse detalhe foi o balde de água fria que me fez perceber do que se tratava afinal. O gritedo que irrompeu após a chegada dos demais atraiu a atenção de alguém e a polícia foi chamada. A área foi isolada e fomos interrogados por um longo tempo. Enquanto aguardava ser chamado, escutei a conversa de dois investigadores a respeito do valor deixado na cena do crime. Segundo eles, era suficiente para comprar um caixão barato de tamanho infantil.

Citações

Disparada - canção escrita por Geraldo Vandré e Théo de Barros. Foi uma das vencedoras do Festival de Música Popular Brasileira de 1966 sob a interpretação de Jair Rodrigues, dividindo o primeiro lugar com "A Banda" de Chico Buarque de Holanda.

Marx, Karl. O Capital : crítica da economia política. A primeira edição foi publicada em 1867. É uma crítica à economia política clássica e foi considerada literatura subversiva pela Ditadura Militar Brasileira.

Departamento de Ordem Política e Social - DOPS foi um órgão do governo brasileiro criado em 1924. Teve forte atuação durante o período de Ditadura Militar, com atribuições de Polícia Política, sendo responsável pela repressão a comunistas, anarquistas, sindicatos e movimentos sociais.

* * *

Esse conto foi originalmente publicado na antologia Aconteceu em 77 : uma antologia histórica, da UICLAP, em 2023.

Comentários

  1. Até a aparição do Leleco posso garantir que é tudo verdade!

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Dizem por aí que o Leleco foi o único personagem baseado em fatos reais rs

      Excluir
  2. Amei o conto, como sempre! Pegaram os assassinos? 😭

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Muito obrigado Lia! Não há informações disponíveis sobre o caso do rapto de crianças na década de 70. Muitos acreditam tratar-se apenas de uma lenda urbana mesmo.

      Excluir

Postar um comentário

Por favor, seja gentil!

Postagens mais visitadas deste blog

Recém-casados

Não corra papai

Prematuro