Cuidado com o cachorro


Era dezembro. O verão aqui no Rio de Janeiro costuma ser quente, mas naquele ano o calor estava literalmente insuportável. A história que vou contar começou no primeiro domingo do Advento. Eu deixara o conforto do ar condicionado para ir à padaria da esquina comprar sorvete. Ao passar pelo muro de uma casa abandonada, notei o portão aberto e parei para dar uma espiada. Era uma antiga e maltratada residência. A despeito das marcas deixadas pelo tempo, guardava muito do esplendor original. Sem dúvida uma sobrevivente do período áureo da Tijuca, quando o bairro era povoado em sua maioria por veranistas que buscavam o clima ameno da região. Não ousei entrar, mas divisava o jardim convertido em mato alto, muito lixo espalhado e um cachorro vira-latas caramelo sentado em frente a escada que leva ao alpendre. A cena em si não diferia do esperado, entretanto a postura do animal chamou-me a atenção. Imóvel, fitava o vazio a sua frente, indiferente a tudo. Arfava com meio palmo de língua de fora, sinal que sofria com a temperatura e sentia sede. Dei meia volta e retornei com uma vasilha de água, a qual depositei a seu lado. Ele virou a cabeça e olhou em minha direção agradecido. Bebeu avidamente enquanto o observava e, a seguir, assumiu a mesma posição que atiçara minha curiosidade.

A partir desse dia tomei como hábito, no final da tarde, visitar o local para verificar se o vigilante canino permanecia no seu posto. Permanecia. Além de água, comecei a trazer ração. De acordo com o que apurei em conversas com vizinhos que também perceberam sua presença, ele não saia dali. Conclui que devia estar com fome. A voracidade com que devorava o alimento oferecido comprovava o fundamento de minhas suspeitas.

Desde que o vira pela primeira vez sentira um forte sentimento de desassossego. Não por considerá-lo agressivo ou perigoso. Soava como um presságio de que havia algo no comportamento do animal em desacordo com sua natureza irrequieta.

  E quem disse que ele costumava ser irrequieto?

Esse era o outro motivo do desassossego. Eu tinha certeza de que o conhecia. Apenas não conseguia lembrar onde ou quando nos encontráramos anteriormente.

Passados alguns dias, outro cão juntou-se à vigília. Como o primeiro, não tinha raça definida e mantinha aquela postura atenta contra o vazio. Seu porte era altivo, a pelagem escura, com manchas brancas próximas aos pés, dando a impressão que chapinhara numa poça de leite.

Na primeira vez em que apareceu no local receei que a notícia da distribuição de água e ração tivesse se espalhado pela cachorrada do bairro e, a partir de então, eu teria um número cada vez maior de bocas para alimentar. Estranhamente, não foi o que ocorreu. Uma vez formada, a dupla permaneceu unida e inalterada até a insólita conclusão dessa história.

A chegada do Patas Brancas - como passei a chamá-lo - teve outra consequência. Ao vê-los juntos lembrei de onde os conhecia. Eram companheiros inseparáveis de um morador de rua que costumava vagar pela vizinhança. Não raro fazia do alpendre da casa vazia o refúgio do trio, onde passavam as noites de inverno e os dias chuvosos. Aparentava ser muito zeloso com seus amigos de quatro patas e mais de uma vez o vi repartindo entre eles o pouco que tinham para comer.

Esse rapaz era relativamente jovem. Devia estar na casa dos trinta e poucos anos. Tinha o porte franzino, o semblante marcado pelas agruras de sua situação precária. Permanecia calado a maior parte do tempo. Vestia-se sempre da mesma maneira: calça social escura e camisa branca abotoada até o pescoço. Em dias amenos a camisa era de mangas compridas. Quando fazia frio, cobria-se com uma japona azul-marinho com botões metálicos. A indumentária remetia a um uniforme. Talvez reminiscência de uma época em que estivesse empregado, ou engajado em atividades que exigissem um rígido código de vestimenta. Convertia em teto as marquises dos edifícios da rua onde eu morava. A cada dia escolhia um ponto diferente para montar seu "acampamento".

Um fato singular sobre essa pessoa veio à tona no final do ano passado. Um senhorzinho, preocupado com seu bem-estar, foi ter com ele para saber de suas necessidades. Perguntou se precisava de algo e a resposta foi surpreendente:

  Sim. Um rádio de pilhas, por favor.

O insólito pedido era legítimo e foi atendido. Dessa forma, além dos ajutórios tradicionais trazidos pelos moradores, passou a receber regularmente baterias - cortesia do senhorzinho que regalara o aparelho.

Hoje sei que a presença de Patas Brancas e Caramelo naquele lugar específico podia ser qualquer coisa, menos coincidência. Se não estivesse tão envolvido atendendo as solicitações que chegavam aos borbotões talvez tivesse avaliado melhor a situação. O final do ano é um período particularmente fértil para manifestações paranormais e isso sobrecarregava minha agenda. Além disso, o Natal se aproximava e eu corria ultimando os preparativos de uma ceia que ofereceria na véspera, reunindo amigos e familiares que vinham do Sul especialmente para a ocasião. Seria a primeira vez que esses parentes me visitavam após minha mudança para o Rio e desejava que tudo saísse perfeito.

Em um entardecer abafado, dirigia-me à casa vazia carregando ração e água numa sacola. Cruzei com um funcionário da padaria, meu conhecido, que entregava pedidos em domicílio. Apontou para os pacotes que carregava e brincou com a situação:

  Tá engordando os bichinhos pra ceia?

Não pude deixar de sorrir com a piada. Aproveitei a deixa para tentar descobrir algo sobre o morador de rua. Infelizmente, pessoas como ele são praticamente invisíveis para aqueles que gozam de uma vida minimamente estruturada e a resposta obtida deixou isto bem claro:

  Agora que o senhor falou percebo que não o vejo faz tempo. Sei dele não. Deve ter se mudado ou foi recolhido pela assistência social. A última vez que falei com ele estava abatido. Parecia doente.

Agradeci pela informação e segui em frente. Ao chegar no casarão fui recebido com festa. Abasteci os potes da dupla e sentei na escada, aguardando que terminassem a refeição. Afeiçoara-me aos bichinhos. Aproveitava essas ocasiões para passar algum tempo com eles, apesar da canícula. O calor acabava com minha disposição de ficar ao ar livre. Se ficava por ali era porque a companhia deles amenizava o desconforto, dando-me forças para retardar o retorno ao apartamento o máximo possível.

Na antevéspera do Natal as compras haviam sido feitas, a decoração devidamente instalada e os trabalhos de preparação da ceia acelerados. Contudo, como é de praxe nessas ocasiões, começaram a pipocar detalhes de última hora. Ingredientes acabaram inadvertidamente, a súbita percepção que faltava a lembrancinha de amigo secreto de um ente querido ou - o mais estranho de todos - a estrela ponteira que despencou do alto da árvore, espatifando-se no chão da sala, exigindo uma visita não programada a um shopping lotado para ser substituída. Acontece. E a necessidade de atender a todas essas urgências ocupou-me de tal forma que esqueci da dupla Caramelo e Patas Brancas. Eles só voltaram a minha mente na noite seguinte, quando estávamos reunidos em torno da mesa, celebrando aquele momento tão especial. Ao servir generosas porções de peru aos convidados fui cutucado por uma pontada de remorsos. Eu não comparecera no dia anterior e sabia que a dupla não merecia passar mais um minuto sequer sem atenção. Principalmente na noite em que a tônica da celebração é o amor, a união e o renascimento. 

Pedi licença aos presentes, alegando que precisaria ausentar-me por alguns instantes. Fui até a despensa, abasteci o galão com água, peguei o pacote de ração e rumei para casarão.

A rua estava deserta, mas não silenciosa. Pelas janelas dos prédios ao redor escapava o alarido dos brindes mesclado a risadas e gritinhos de crianças abrindo seus presentes. Milhares de luzinhas coloridas espalhadas por cercas e sacadas iluminavam o caminho. Apesar do adiantado da hora, um mormaço opressivo aguçava a sensação de culpa por ter esquecido o compromisso assumido, lembrando-me do tanto de sede que os dois deveriam estar padecendo desde ontem. Nisso, uma lufada de brisa fria chegou até mim, arrepiando os pelos dos meus braços. Instintivamente olhei em direção ao muro da casa vazia com a certeza de encontrar ali um ponto escuro. Ao contrário do que esperava, também ela reluzia, porém com um brilho diferente. Aquela luminosidade difusa, que eu tantas vezes avistara nas ocorrências que atendia, sinalizava o advento de algo sublime. Aproximei-me silenciosamente do portão de entrada e parei. Temia quebrar a magia daquele momento. Sentado no primeiro degrau, emanando a luminosidade difusa, vi um homem de aspecto simples, vestido com um traje imaculadamente branco. Os cachorros parados a sua frente, ouviam atentos o que dizia. Para mim suas palavras eram incompreensíveis.

Em meio a preleção, o vira-latas Caramelo virou a cabeça para trás, denunciando minha presença. O homem silenciou e olhou para mim, sorrindo. Chamou os dois para perto de si, abraçando-os com vontade. Transbordando contagiante serenidade, resplandeceu ao fazer a passagem. Só então compreendi quem era e o que o mantinha preso ao plano material. Tratava-se do sem-teto que adotara a dupla. Ele não partiria sem ter certeza de que ficariam bem.

Naquela noite voltei para casa com dois novos amigos, os quais permanecem comigo até hoje. 

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