O Espírito da Sardenha


O telefone tocou às nove e quarenta e cinco. A pessoa do outro lado da linha disse chamar-se Verbena, como a flor. Pelo tom da voz percebi o nervosismo, apesar do esforço em aparentar calma. Resumindo a conversa, descreveu eventos desconcertantes que presenciara e requisitou meus serviços.

Eu acabara de solucionar um caso complicado e preferia fazer nada. Infelizmente a gravidade da situação pedia urgência e não podia entregar-me a esse luxo. Além disso, o calor estava insuportável no Rio de Janeiro e a demanda procedia de uma pequena cidade da região serrana do Espírito Santo. Consultei a previsão para os próximos dias e verifiquei que as temperaturas estariam amenas por lá. Entusiasmado com a perspectiva de curtir um friozinho, arejei alguns agasalhos cheirando à naftalina e os coloquei na mala. Parti na manhã seguinte, ao romper da aurora.

A viagem foi tranquila, sem incidentes. Cheguei a sede do município no final da tarde. Combináramos de nos encontrar nos arredores do centro histórico, especificamente na pousada Nonna Mia. Estacionei em frente a uma casa antiga, com ares de casa da vovó. A chaminé encimada por um galo de zinco, bem como o aroma de pão caseiro recém assado, fizeram voltar memórias da infância passada na serra gaúcha, quando a parentada se reunia em torno de mesas fartas, regadas a vinho. Festejavam calorosamente, como bons descendentes de italianos, o fato de estarem juntos. Os antigos jogavam mora, os jovens flertavam e os pequenos corriam pelo salão. Imbuído destes sentimentos reconfortantes cruzei o portão certo de que nada de mal poderia suceder num lugarejo tão acolhedor. Não podia estar mais enganado.

Verbena aguardava na recepção. Fui recebido por ela e por Gilda, proprietária da pousada. Após as saudações de praxe conversamos amenidades. Eram amigas de longa data e fora Gilda quem me indicara. Contei com a descontração do momento para observar discretamente Verbena, sentada numa antiga cadeira de balanço. Era uma senhora na faixa dos 50 anos, robusta, de uma beleza austera. Inquieta, torcia um lencinho branco entre as mãos, indício de forte ansiedade. Olhei para ela e sorri, como a dizer:

— Aguente firme, estou aqui e tudo ficará bem.

Concluídos os tramites burocráticos, depositei as bagagens no meu quarto e fui ter com Verbena. Ao me aproximar, antes que pudesse propor algo, sentenciou:

— Aqui não. Prefiro tratar deste assunto onde ninguém nos ouça.

Compreendi imediatamente, pois essa não foi a única vez que observei esse tipo de atitude. Vivenciar o sobrenatural traz consequências severas. O sujeito evita tocar no tema por ser mal interpretado, taxado de mentiroso ou louco.

Nos fundos da pousada havia um caramanchão coberto com lágrimas-de-Cristo, sem flores. Para descontrair o clima tenso, comentei que deveria ficar bonito na primavera, depois de florescer. Ela olhou distraidamente e sentou-se no banco rústico colocado ali para os hóspedes desfrutarem da serenidade do jardim.

— O senhor não vai acreditar em mim - disse.

— Tente me surpreender - respondi sorrindo.

E acrescentei para encorajá-la:

— Conte o que está acontecendo e veremos o que se pode fazer.

Seguindo minha orientação ela desatou a falar de forma atabalhoada, própria das pessoas que tem um problema sério e ninguém para desabafar. Nesses casos, prefiro que a pessoa descarregue o que está represado enquanto vou separando as informações potencialmente úteis para uso futuro. Ao concluir o relato parou, baixou a cabeça, aliviada.

— Acho que é basicamente isso.

Verbena contou que vivia na cidade com a mãe. No ano retrasado suas vidas sofreram uma completa reviravolta. O recebimento de uma herança e a perda inesperada da mãe foram os pontos extremos de um intervalo de poucos meses.

Ambas sabiam pouquíssimo sobre suas origens, apenas que descendiam de imigrantes desembarcados no Brasil numa das levas oriundas da Itália no terceiro quartel do século XIX. Perdera a avó aos 29 anos. Curiosa, costumava questioná-la a respeito da árvore genealógica da família, recebendo sempre a mesma resposta:

— Há coisas que é melhor não saber, menina. Vá ajudar sua mãe e esqueça esse assunto.

Com a morte da avó Verbena deu a questão por encerrada, uma vez que não encontrou fontes que pudessem mitigar sua curiosidade. Foi assim até o dia em que uma freira do convento existente nos arredores da cidade as procurou trazendo uma caixa repleta de documentos empoeirados. De acordo com ela, o mosteiro passava por reformas. Ao abrirem uma ala desabitada, os operários depararam-se com arquivos contendo a documentação pessoal da primeira Madre Superiora - responsável pela instalação da congregação no Brasil.

— Preciso dar uma olhada nesses papéis - pensei com meus botões.

A maioria dos documentos estava escrita em talian e italiano, de modo que puderam ser lidos facilmente. Entretanto, os mais antigos foram grafados em um idioma desconhecido. As irmãs conseguiram identificar o nome da avó de Verbena em uma carta endereçada à Madre Superiora. A signatária comunicava o batismo da menina (a avó) e relatava detalhes da celebração. Havia também um título de concessão de gleba a uma imigrante oriunda da Sardenha, supostamente a matriarca da linhagem da família.

Foi trabalhoso, mas comprovaram a linha sucessória. Passaram a propriedade para o nome da mãe de Verbena, temendo que estivesse ocupada por posseiros que contestariam o registro da nova proprietária. Porém isso não ocorreu. Verbena só foi entender o motivo quando era demasiado tarde.

Felizes pelo que consideraram um mimo do destino, alugaram um quarto na única pensão existente no vilarejo próximo do lote e foram conhecer a herdade. O estado era de abandono. Há décadas ninguém colocava o pé naquelas terras. Trouxeram trabalhadores de fora para limpar o mato, já que os moradores locais recusavam-se peremptoriamente a pisar ali. A remoção das macegas expos os restos de uma residência da época da colonização. O porão de pedra estava de pé. O piso superior, de madeira, não resistira as intempéries e ao descaso. Colado à parede dos fundos, começava um parreiral que se estendia a perder de vista. Contrastando com o panorama geral, o terreno estava limpo, as cepas aparadas. Os moirões que as sustentavam eram grosseiros, de granito esculpido a martelo. Verbena lembra de ter comentado com a mãe que estavam cultivando uva as escondidas, hipótese jamais comprovada.

Construíram uma casa singela, confortável, e mudaram-se para lá. Tudo corria bem até o dia em que foram inspecionar o porão. A ideia era verificar se poderiam utiliza-lo novamente. Ao cabo de algumas horas respirando poeira e separando lixo, chegaram a uma porta fechada a chave. Relembrando, Verbena comentou:

— Tinha uma inscrição entalhada a faca na madeira, num idioma que não conheço. Fiquei cismada, mas nem tentei traduzir antes de abrir aquela maldita porta.

Arrombar a fechadura corroída pela ferrugem foi fácil. Penetraram num cômodo escuro, arrepiadas pelo ar gelado. O único móvel existente era um armário pesado, trancado e com inscrições idênticas a da porta.

Dentro do armário havia um baú. O cadeado que protegia seu conteúdo não foi páreo para a sanha que dominara Verbena. Cedeu ao primeiro golpe desferido com a pedra que ela catara em meio aos entulhos.

Ao iluminar o interior do baú com a lanterna que trazia consigo, viu algo que lhe causou incompreensível pavor: um malho escuro e uma cunha, ambos do mesmo material. Simplesmente fechou a tampa do baú e arrastou a mãe para fora com o coração aos pulos. Durante o retorno para casa, por mais que a outra insistisse, não conseguiu explicar seu comportamento. Naquela noite teve início o horror. Ao dirigir-se aos seus aposentos, a mãe de Verbena deparou-se com o malho no criado mudo e a cunha apontada para cima em seu travesseiro. Apavorada, chamou a filha e pediu que levasse aquilo dali. Na manhã seguinte, Verbena a encontrou morta na cama, com a face congelada na mais abjeta expressão de pavor. De acordo com o laudo emitido pelo médico que realizou a autópsia, a causa da morte foi apoplexia fulminante.

À Verbena restou morar sozinha - ou quase. Sentia-se vigiada constantemente. Em dias quentes, ocorriam bruscas quedas na temperatura. Arrepios na espinha eram frequentes. Sabia que não estava só, embora tentasse se convencer do contrário. Bateu em retirada na noite em que, ao entrar no quarto, viu o malho e a cunha na mesma disposição que sua mãe encontrara antes de morrer. Abrigou-se na pousada Nonna Mia, cuja proprietária a acolheu de braços abertos. Intrigada com a chegada intempestiva da amiga, quis saber por quê Verbena enfrentara quilômetros de chão batido na escuridão. Afortunadamente, ela confiou a Gilda os acontecimentos medonhos que vivenciara. Foi através dela que soube da minha existência e decidiu pedir ajuda.

Tendo tomado conhecimento dos fatos constatei ser necessário agir com presteza e determinação. A probabilidade da entidade que obsidiara Verbena no sítio de sua antepassada procurá-la onde quer que se escondesse era enorme. Apesar da urgência, carecia de dados concretos para prosseguir na investigação e definir a abordagem correta para elucidar o problema. Espíritos vingativos tem motivos para estarem presos ao plano material. Era imprescindível  descobrir que motivo seria esse.

Pedi a Verbena que trouxesse a caixa com os documentos. Lamentavelmente não foi possível. Premida pelo medo, fugira deixando tudo para trás. Inclusive a caixa. Alarmada pela perspectiva de voltar para resgatá-la, proclamou que nem por um milhão de reais colocaria lá os pés novamente. Entregou-me as chaves da casa, marcou a localização em um mapa rodoviário disponível no mostruário de atrações turísticas e refugiou-se no interior da pousada. Gilda ofereceu-se para conduzir-me. Além de não temer o sobrenatural apresentou uma justificativa incontestável:

— O lugar é de difícil acesso e os habitantes do vilarejo não gostam de "estrangeiros" perambulando por suas terras. Será melhor que eu fale com eles.

Jantamos agnolini in brodo - uma delícia! - acompanhado de pão assado no forno de barro e vinho colonial. Há tempos não experimentava tanta paz como no final daquela refeição. Senti uma pontada de culpa por estar me divertindo em serviço. Uma taça suplementar de tinto seco resolveu a questão. Uma boa noite de sono e estava pronto para o que desse e viesse. Com Gilda ao volante partimos rumo ao lote de Verbena, torcendo pelo sucesso da empreitada.

O sol estava alto quando chegamos a um aglomerado de casas dispostas ao longo da estrada. Mentalmente, tracei a linha evolutiva do vilarejo analisando os materiais empregados em sua construção. Praticamente todas seguiam o padrão do século XIX: porões de pedra que serviam de base para a estrutura de madeira obtida dos pinheiros outrora abundantes na região. Três tinham aspecto tosco, evidenciando que os pioneiros não dispunham de serraria e racharam os troncos a machado. Posteriormente o progresso encarregou-se de fornecer tábuas de melhor qualidade. Dois prédios de alvenaria contrastavam com o aspecto rudimentar dos demais.

Ao desembarcarmos fomos recebidos por olhares receosos de homens, mulheres e crianças que saiam à rua para ver os forasteiros.

— Acostume-se - riu Gilda. Aqui você é a atração principal.

Entramos numa bodega simples, com pipas enfileiradas atrás do balcão, linguiças e embutidos pendurados nas vigas do teto. Pilhas de queijo nas prateleiras. Gilda estava a vontade. Saudou o bodegueiro com um desembaraço que deixou-me admirado:

— Ave Giovanello!

A seguir deram início a um diálogo num dialeto que depois fiquei sabendo ser o talian.

Foi uma parada estratégica. Aquele homem com a barba por fazer, calça amarrada com barbante, calçando tamancos, era o líder da comunidade, uma espécie de prefeito. Também era o administrador da cooperativa formada pelos agricultores do entorno. Sua palavra era ouvida e respeitada por todos. Precisávamos de sua benção para prosseguir.

Sentamo-nos ao redor de uma mesa de fórmica, provavelmente da década de 1960. Serviram pão, queijo, salame e, óbvio, vinho. Dado o adiantado da hora considerei a refeição como sendo o almoço e não me fiz de rogado. Gilda e o anfitrião confabularam acaloradamente. Gesticularam muito, principalmente Giovanello. Fechou a cara várias vezes e fez o pelo-sinal outras tantas. Acompanhei em silêncio, sem entender patavina do que discutiam. Encerraram a prosa com um silêncio pesado. Gilda despediu-se e voltamos para o carro. Seguimos calados até estar a uma boa distância do vilarejo. Ela escolheu a sombra de uma árvore para estacionar e revelar o que conversaram:

— O povo daqui está aterrorizado. Acreditam que Verbena perturbou alguma espécie de maledetta ou maldição, não captei o sentido da frase. Temem que a situação possa piorar, atraindo desgraças para suas vidas. Garanti a eles que você é um médium poderoso e está aqui para acabar com isso. De qualquer forma estamos sozinhos nessa, pois ninguém vai arriscar a pele para nos ajudar.

— E quanto ao parreiral. Descobriu alguma coisa?

— Ele sabe que existe, mas nega que membros da comunidade estejam trabalhando nele. São supersticiosos. Não chegam perto por medo.

Pouco depois estávamos nas terras de Verbena. Antes de vistoriar a casa, Gilda e eu resolvemos dar uma volta para conhecer a propriedade. Ficamos impressionados com a beleza do lugar. Paramos para descansar sob o parreiral - magnífico, diga-se de passagem. Gilda colheu um cacho de uvas maduras e sentou-se na relva para degustá-las. Dirigi-me as ruínas. Perambulei a esmo, examinando os escombros sem topar com algo significativo. A porta da câmara onde encontraram o baú mantivera-se aberta. Deslizei os dedos entre os sulcos da inscrição ainda nítida:

Vade retro aut invenire vindicta occultam faciem

Comentei, falando sozinho:

— Volte ou enfrente a face oculta da vingança. O aviso é claro. Pena Verbena não saber latim.

Uma voz suave, carregada de sotaque, respondeu:

— Pelo visto, fui ignorada.

No interior penumbroso da câmara divisei uma figura alta, vestida com um traje escuro.

— Com quem falo?

— Por ora, basta saber que estou aqui para reverter as consequências de um erro cometido há muitos anos. Espero que possas auxiliar-me no cumprimento dessa missão.

Conversamos reservadamente até Gilda aparecer. Preferi guardar segredo a respeito do que acontecera. Dei por concluída a inspeção e passamos para a residência.

Móveis com pó acumulado confirmavam a ausência da moradora ou de visitantes. De um canto da sala, em posição de destaque, nos observava Nossa Senhora protegida por um oratório. Na cozinha, panelas no fogão, louça na pia. Tudo estava do jeito que a dona deixara ao fugir. Inclusive o dormitório. Sobre o criado mudo, o malho. No travesseiro, a cunha apontando para cima. Na cabeceira, riscado com raiva, um antigo provérbio retratava a cultura da vingança:

Justitia pronta, vindicta facta!

Perplexa ante o cenário inusitado, Gilda traduziu o dístico em voz alta:

— Justiça pronta, vingança feita. Por que escreveram isso? 

— Certamente em resposta a advertência deixada pela antepassada de Verbena - respondi.

Se ela estava surpresa por causa dos rabiscos e dos objetos, mais surpresa ficaria se pudesse ver a figura fantasmagórica postada ao lado da cama. Contive Gilda pelo braço, sussurrando:

— Mantenha a calma. Não estamos sós.

Gilda quis saber o que se passava.

— É uma entidade feminina, possivelmente do século XIX. Nos observa em silêncio. Aparenta ser uma moça jovem, abaixo dos vinte anos. Sua postura denota status social elevado. Veste saia de algodão, camisa de linho, corpete ricamente bordado. Um delicado véu cobre a cabeça. Possui uma marca profunda na testa.

— Corremos perigo?

— Talvez. Ela aparece em tons de cinza. Falta de cor sugere pendências a serem resolvidas no plano material.

Sinalizei a Gilda que permanecesse em silêncio, pronta para sair. 

Olhei fixamente para a entidade. Indaguei se pertenciam a ela os adereços macabros. Ficou estupefata por dirigir-me diretamente a ela, pois imaginava estar invisível. Respondeu num idioma estranho, de origem latina. Usei meus rudimentos de italiano para informar que não a entendia:

— Scusa signorina, non capisco la tua lingua. Parla portoghese?

Ela não falava português. Felizmente era fluente em italiano e a partir daí conseguimos nos comunicar graças ao suporte de Gilda. Eu repetia as palavras que não conhecia e ela traduzia. 

A entidade disse chamar-se Ignês, oriunda da Sardenha, filha de próspero produtor de vinhos. Apresentava-se como vinhateira e falou com orgulho do parreiral que cultivava. Expressava-se com desenvoltura, todavia suas atitudes sugeriam um permanente estado de alerta, como se temesse ser atacada. A certa altura questionou se viéramos tomar posse do vinhedo. Neguei veementemente, imaginando as consequências que se abateram naqueles que tentaram apropriar-se dos - literalmente - frutos do seu trabalho. Comentei que a nós interessava a caixa de documentos. Mostrou-se indiferente quanto a isso. Pedi à Gilda que a levasse para o carro e voltasse rapidamente. A loquacidade da aparição não duraria eternamente e pretendia extrair o máximo de informações. 

Aproveitei a deixa para elogiar a qualidade das uvas, viníferas por excelência. O elogio pareceu tranquilizá-la. Contou que aprendera o manejo cuidando dos parreirais do pai e mantivera o costume de fazê-lo desde que ele se fora. Amava cultivar, tendo dedicado toda sua vida a esse trabalho.

— Assim como o pós-vida - pensei.

Passei a mão na minha testa, fazendo movimentos circulares. Ela compreendeu perfeitamente o significado do gesto. A cicatriz era uma ferida aberta na qual eu acabara de fuçar. Seu semblante transtornou-se, trincou os dentes  e sibilou com ódio:

Una Accabadora ha fatto questo!

Dito isto, desapareceu. É indelicado apontar o defeito físico de alguém, mas o fiz para obter respostas que nos ajudassem a deslindar o caso. Tenho consciência que foi uma atitude cruel. Ao menos revelou uma pista crucial no esclarecimento do mistério. Retornamos tão rápido quanto possível à hospedaria. Refugiados no escritório, demos início a uma minuciosa pesquisa nos papéis recuperados.

Começamos ordenando os documentos por ordem cronológica. O item mais antigo era uma caderneta preenchida com anotações enigmáticas. Na folha de rosto, caprichosamente desenhada, a palavra "Abba". O último apontamento datava de 1875 e registrava, além da data, o nome de Ignês com uma cruz ao lado. Cartas trocadas por duas gerações de mulheres com a Madre Superiora formavam o volume principal. Estas foram subdivididas por idioma. O terço inicial fora escrito naquela linguagem indecifrável utilizada pela entidade. Gilda e Verbena encarregaram-se da tradução das restantes, redigidas em talian e italiano.     

A parte inicial da investigação estava concluída. Para dar continuidade necessitava saber do que tratavam os documentos que não conseguíramos traduzir. Combinei com Verbena que os levaria a um paleógrafo de confiança, no Rio de Janeiro.

Passaram-se semanas até finalmente receber a mensagem informando a conclusão do serviço de transcrição. Roído pela curiosidade, fui imediatamente ao encontro do especialista. Recebeu-me com cara de quem viu o passarinho verde. A animação era tanta que nem disse olá:

— Dessa vez você se superou...

— Como assim?

— Os documentos que você deixou fornecem evidências de uma atividade que é tida pela maioria dos historiadores como lenda. Principalmente a caderneta!

— Que seria ...

— As Accabadoras meu amigo!

A euforia dele era tamanha que releguei a segundo plano o desejo de obter os textos versados para o português. Até porque ouvira esse nome da boca de Ignês e desejava saber do que se tratava.

— E quem são as Accabadoras, afinal?

— Referências a atuação delas são raras. Restringem-se a ilha da Sardenha e param no início do século XX. Era um grupo formado por mulheres vestidas de preto, dedicadas a prática da eutanásia em pacientes idosos ou sofrendo de doenças terminais. Necessariamente a família, ou o próprio doente, deviam solicitar o procedimento. A execução não devia ser paga, pois cobrar pela morte violaria preceitos sociais e religiosos.

A explanação fez surgir uma dezena de hipóteses em minha cabeça. Incentivei-o a continuar:

— E qual a importância da caderneta?

— É uma agenda, com anotações relativas aos atendimentos realizados pela dona do caderninho. 

Foi a escrivaninha e voltou com ela em mãos. Postou-se a meu lado, folheou algumas páginas e começou a apontar com o dedo. 

— Cada coluna corresponde a um dado específico: data, domicílio, solicitante, paciente e o método utilizado. Elas dominavam múltiplas técnicas de execução. As preferidas eram asfixia e pancada na cabeça. 

— Como sabes o método utilizado?

— Veja aqui.

Indicou ao final de cada linha símbolos que variavam com certa regularidade. A maioria possuía uma cruz.

— O que significa essa cruzeta?

— Não é uma cruz. Vê como a perna é longa e os braços curtos? Assinala o uso do malho.

Dei um tapa na testa, exclamando:

— Um malho! Então deve haver uma cunha.

— Exatamente. Como adivinhou?

Fiz um relato sucinto dos achados na casa de Verbena. Em troca, recebi uma explicação minuciosa de como funcionava o procedimento. Tanto o malho como a cunha eram preferencialmente feitos de oliveira, uma madeira escura, resistente e pesada. Deitado em seu leito, o moribundo recebia a visita da Accabadora. Esta colocava a cunha sob a nuca do padecente, cobria seu rosto com um véu e aplicava um golpe seco em sua testa. A força da pancada desnucava a vítima, levando-a a morte instantânea.

A explanação do paleógrafo desvendou fragmentos obscuros do mistério. Faltava descobrir por quê Ignês deixara seu torrão natal para assombrar um rincão esquecido na serra do Espírito Santo.

Agradeci pela lição de história e voltei para casa. Mergulhei na leitura das cartas transcritas. Ao final de quatro dias de imersão total, obtive um panorama consistente dos acontecimentos que culminaram com o falecimento da mãe de Verbena. Joguei o calhamaço na mala ansioso para revelar o que descobrira.

No dia seguinte fui recebido na pousada Nonna Mia com uma fumegante terrina de sopa de capeletti. Terminada a refeição, migramos para as poltronas da sala de estar. Por ser época de baixa temporada não havia hóspedes e pudemos conversar livremente, sem interrupções inoportunas.

Comecei revelando que as cartas foram escritas em sardo, idioma oriundo da Sardenha. Por elas fica-se sabendo que Abba, a missivista, era Accabadora praticante. Atendendo a pedidos, interrompi a explanação para repetir o que ouvira do paleógrafo. Verbena não gostou de saber desse pormenor de sua antepassada. A julgar pela quantidade de apontamentos na caderneta deduz-se que era bastante  requisitada. Desafortunadamente seu último trabalho culminou numa tragédia.

Em 1876 Abba e a Madre Superiora iniciaram uma intensa troca de correspondências. Abba implorava ajuda para escapar de um destino terrível. A Madre fora incumbida de estabelecer no Brasil um convento da ordem a qual pertencia com o objetivo de prover amparo espiritual e material aos imigrantes italianos que para cá se dirigiam. A área designada ficava em uma região remota, isolada da civilização, ideal para quem desejasse fugir das garras da justiça. Nessa troca de mensagens, a Accabadora contou seu lado da história para justificar a decisão de sair do país.

De acordo com seu relato, no povoado em que vivia morava uma órfã de nome Ignês, de linhagem nobre, excepcional vinhateira e herdeira de vasta fortuna. Por ser menor de idade, e mulher, vivia sob a tutela de um tio. No decorrer de um inverno excepcionalmente rigoroso foi chamada à casa de Ignês pelo tio. Encontrou a jovem prostrada em seu leito, pálida, respirando com dificuldade. O tio rogou que exercesse o ofício, pondo fim ao sofrimento da sobrinha. Abba não percebeu malícia nas intenções do tutor. Apressou a partida de Ignês com um violento golpe do malho de oliveira que carregava consigo. A partir daí sua vida converteu-se num inferno.

Uma das agregadas da casa, apegada à Ignês desde criança, suspeitou das intenções do tio e o denunciou as autoridades. Alegou que ele provocara a morte prematura da enteada pelas mãos de Abba, sua cúmplice. Deu a entender que ela agira visando lucro, violando os preceitos da confraria das Accabadoras.

Com o desaparecimento da sobrinha os bens da família passaram para o nome do tio. Este, usando do prestígio adquirido a peso de ouro, provou sua inocência transferindo a culpa para Abba. Alegou ter ela agido de má-fé, esperando ser beneficiada na divisão da herança. O boato espalhou-se como rastilho de pólvora e todos na aldeia apontavam um dedo acusador em sua direção. Acuada, desprovida de recursos para contratar um defensor, recorreu à Madre, velha conhecida de sua mãe.

Ao que tudo indica, a Madre confiou na versão contada por Abba e usou de sua influência para incluí-la em uma das levas de imigrantes que partiram rumo a América. Em solo brasileiro, ajudou-a a obter uma gleba, onde a fugitiva começou vida nova.

Há um lapso de quatro anos entre a última carta escrita na Sardenha e a primeira no Brasil. Aqui, Abba escreveu para contar à Madre que estava bem de saúde, casara e estava grávida. A terra recebida era propícia ao cultivo da uva. Construíram um parreiral e deram início ao plantio de cepas típicas da Sardenha. Finalizava a mensagem agradecendo o apoio recebido.

Meses após o envio desta carta, escreveu outra, na qual o tom destoava completamente. Abba estava aflita. Dizia ser assombrada por seu passado. Pedia encarecidamente orações por sua alma e pelas almas daqueles que apressara a partida em seu ofício de Accabadora. A essa seguiram-se várias, igualmente sombrias, descrevendo ocorrências assustadoras e inexplicáveis. Em uma delas, Abba informava o falecimento do marido em circunstâncias misteriosas. Manifestou temor pela filha recém nascida. Acreditava que sua presença colocava a vida da bebê em risco. A esta última, a Madre respondeu que em breve uma emissária iria procurá-la com instruções que deveriam ser seguidas à risca.

Talvez a Madre desconfiasse do que se passava no sítio, só não podia declará-lo abertamente. Contrariamente as reticências da religiosa, sabíamos o tipo de perigo enfrentado por Abba. Ignês deve tê-la seguido em busca de vingança. Suponho ter sido seu fantasma o culpado pela morte do marido e pelos atentados contra a criança. O certo é que a emissária levou consigo a pequena para o orfanato anexo ao convento. A bisavó de Verbena cresceu sob proteção das irmãs de caridade.

Abba e a Madre não se visitavam, contudo mantinham-se em contato. Abba relatando os acontecimentos assombrosos que a perseguiam. A Madre informando os progressos conquistados pela filha por ela acolhida. No ano em que a menina completou nove anos Abba enviou a última carta.

Nenhuma linha até 1898, ano em que a filha de Abba completou dezoito anos. O silêncio foi quebrado por um convite de casamento dela a sua tutora. A partir desse ponto a conversação tornou-se corriqueira, ambas compartilhando episódios triviais do dia-a-dia. Em 1905 comunicou o nascimento de uma filha (a avó de Verbena). Em 1923, ano que precedeu sua partida, a Madre arquivou a cópia de uma declaração detalhando as contingências que forçaram a adotá-la e criá-la afastada de seus parentes. Contou tudo: quem era sua mãe biológica, o que fazia na Sardenha, porque fugiu e as razões que a levaram a se afastar da filha. Omitiu os fenômenos paranormais, quiçá por convicções religiosas ou por não estar certa a respeito do que realmente se passara com Abba. Não identificamos resposta a essa mensagem, nem qualquer testemunho posterior. Com o passamento da bisavó em 1925, aos 45 anos, encerrou-se definitivamente este capítulo da história. 

Agora que sabíamos a origem da manifestação espectral restava descobrir como apaziguar o espírito de Ignês. Em casos como esse, recomenda-se uma abordagem direta. Sugeri que Verbena e eu voltássemos ao sítio e fizéssemos contato com ela. Gilda adorou a sugestão. Prevendo que a amiga rejeitaria a ideia, ofereceu seus préstimos de maneira irrecusável:

— Eu levo vocês até lá!

Na manhã seguinte, cedinho, sacolejávamos pela estrada de chão batido. Passamos pelo povoado e estacionamos próximo à casa por volta das dez horas. O dia estava claro, poucas nuvens no céu. Preocupada com o horário escolhido para a visita, Gilda comentou:

— Pensava que esse tipo de atividade devesse ser feita a noite.

Pisquei, matreiro.

— Acredite, não é prudente encarar um fantasma raivoso sem enxergar a rota de escape.

O silêncio imperava. Ao longe, o canto de um galo. Ocorreu-me que a calma precede a tempestade. Entramos pela sala. Esquadrinhei o recinto cautelosamente. Apontei para o oratório e perguntei a Verbena se fora ela que trouxera a imagem da Virgem Maria. Respondeu afirmativamente, acrescentando:

— É uma relíquia de família, passada de geração a geração. Deve ter sido trazida da Itália.

Questa è Nostra Signora di Bonaria, mamma de la Sardegna.

Ouvi Gilda murmurar:

— Ela é deslumbrante...

Ignês estava próxima ao oratório, visível a todos. Fez uma genuflexão e persignou-se com os olhos fixos no trio que a observava atentamente. Para facilitar o entendimento, transcreverei em português o diálogo travado em italiano.

Respirei fundo e comecei:

— É uma bela imagem. Tu és devota?

— Meu coração pertence a Sardenha. É claro que sou devota.

— Se amas a Sardenha, por que estás no Brasil?

— Reivindico o direito de Vendetta contra a Accabadora por ter provocado minha morte.

Bom sinal. Sabia estar morta. Um problema a menos para resolver.

— Isso ficou no passado. É hora de perdoar e esquecer.

— Descansarei quando exterminar a última descendente da Accabadora!

Verbena quis fugir. Gilda a convenceu a esperar. Chamei Ignês a razão:

— Quantas vidas foram desperdiçadas nesta perseguição absurda?

Seus olhos brilharam no ardor da fúria:

— Não importa. Fizeram por merecer.

— Sabias que a Accabadora é inocente?

Enfurecida, Ignês tentou atacar-me. Normalmente sou amparado pelos mentores que guiam meus passos. Dessa vez foi diferente. A energia que protegeu meu corpo físico fluía de outro ser, ou seres. Parte dela vibrava na mesma frequência da entidade que falara comigo nas ruínas.

— Abba veio com alguém - pensei.

Chegara o momento de realizar o que me fora pedido. Continuei:

— Reflita Ignês! Quem lucrou com a tua morte? Abba apenas cumpriu seu dever de ofício, sem receber pagamento por isso.

— O golpe foi aplicado por ela!

Ignês estava abalada, avessa a qualquer argumento que contrariasse o desejo de vingar-se. Impedida de me atingir, voltou-se para Gilda e Verbena. Lancei a última cartada:

— A mando de quem? Foi teu tutor que a convenceu que estavas gravemente enferma.

Conteve-se, indecisa. Pela reação tive certeza de que sabia a verdade, apenas não queria admitir. Décadas de solidão lhe forneceram oportunidade de refletir a respeito do que acontecera. Optara por trilhar o caminho da violência contra a família de Abba e agora os fatos eram jogados na sua cara. Quedou-se inerte pelo remorso, imersa em pensamentos funestos. Saber que agira errado sem poder reparar seus erros a angustiava profundamente.

Ao perceber a dor demonstrada em seus olhos, senti pena daquela alma perdida. Não somente eu. Duas figuras imponentes surgiram a seu lado. Abba, vestida de preto da cabeça aos pés, à esquerda. A Madre Superiora, com o hábito característico da ordem, à direita. Abba colocou as mãos na cabeça de Ignês, abençoando-a. Ela e a Madre resplandeceram, inundando de luz o espírito atormentado e desapareceram.

Ignês emanava uma suave luminosidade. Testemunhamos uma transformação arrebatadora. O cinza transmutou-se em cores viçosas, alegres. O véu que cobria parcialmente seu rosto sumira, exibindo a testa livre da marca. Estava em paz. Sorriu, uniu as mãos em reverência, pedindo perdão. A seguir, evanesceu. Olhei para trás e surpreendi Gilda e Verbena abraçadas, chorando.

Fui até elas para acalmá-las. Tremiam, nervosas e maravilhadas pela cena presenciada. Verbena manifestou-se com um fio de voz:

— Ela se foi?

— Sim. Ela fez a passagem.

Gilda, mais prática, quis detalhes da ação realizada pelos espíritos de Abba e da Madre. Uma vez que tudo saíra como previsto não havia motivos para ocultar o que combinara com Abba - sim, era ela! - nas ruínas.

A Accabadora revelou que ela e a Madre tentavam elevar o espírito de Ignês há décadas, sem sucesso. A alma da moça estava envenenada por uma mágoa profunda, convertida em ira com o passar dos anos.  Oprimida por sentimentos negativos, ligava-se ao mundo material de tal forma que os esforços das duas quedavam-se inúteis.

Ao perceber a presença de alguém com sensibilidade paranormal, imaginaram que poderíamos juntar forças para quebrar a resistência de Ignês em aceitar o quanto estava errada. Sem esse ato de contrição nada poderia ser feito, pois é o espírito quem deve rejeitar o mal e aceitar ser ajudado. Ao desafiar Ignês, abri uma brecha na couraça que a encarcerava, permitindo a imediata intervenção da dupla.

Concluído o caso, precisava retornar ao Rio. Ao entardecer, na pousada, foi servido o jantar de despedida. Estávamos alegres pelo desfecho obtido e relembrávamos os acontecimentos extraordinários vividos nas últimas semanas. Propus um brinde a memória dos antepassados, no que fui seguido por Gilda e Verbena.  Empolgado, expus uma reflexão que desenvolvera ao longo do dia:

— Sabiam que "abba" significa "àgua" em sardo? Há um simbolismo forte no gesto feito pela Accabadora. É como se ela batizasse Ignês, entronizando-a em sua nova vida espiritual.

Levei minha taça aos lábios e parei de falar. A solenidade do momento exigia silêncio.

Mantenho contato com as duas até hoje. Soube que Verbena deu continuidade ao trabalho de Ignês, cuidando do parreiral. Quanto a Gilda, usou de sua influência no povoado para convencer Giovanello, através da Cooperativa, a produzir um vinho a partir da última safra do vinhedo da amiga. Inclusive recebi uma caixa do tinto seco produzido. O nome é sugestivo: Espírito da Sardenha.

Comentários

Postar um comentário

Por favor, seja gentil!

Postagens mais visitadas deste blog

Recém-casados

Não corra papai

Prematuro