Merica


As luzes do amanhecer banhavam Angelo em pé no convés do vapor Vittoria. Estava ali porque carecia do alento oferecido pela brisa fresca da manhã. O ambiente opressivo do alojamento coletivo tornara-se insuportável após tantas noites acumulando o cheiro de centenas de suores dormidos. Essas pausas amenizavam as náuseas que o acometiam. A repulsa era tamanha que nem o infindável balanço infligido pelas ondas o perturbava. Desistira de procurar equilíbrio por ser desnecessário. A massa humana compactada impedia a queda por falta de espaço. Viajava ombro a ombro com a multidão de emigrantes italianos que fugiam da miséria.

A ociosidade forçada dava-lhe tempo para refletir a respeito  das consequências advindas da troca do Vêneto pelo desconhecido. Recriminava-se por ter lançado à sorte esposa e quatro filhos, todos sufocando no porão apinhado de gente. Não fora isso que planejara. Não fora isso que prometeram. 

Há exatos vinte dias embalaram seus parcos pertences e abandonaram a comuna onde nasceram na tentativa de realizar o sonho de uma existência próspera. Partiram rumo à Somália, na África. Angelo aceitara assumir a função de professor na escola frequentada pelos filhos dos colonizadores. 

Sabiam que seria difícil, mas nada comparado ao que se defrontavam agora. O transcurso, no que pese as dificuldades inerentes ao deslocamento, duraria no máximo duas semanas. Saíram plenos de esperança de Gênova a Trípoli. Lá desembarcariam e pegariam a conexão para Massawa, na Eritréia. Outra embarcação os conduziria a Aden, no Iêmen, e, finalmente, seguiriam a Mogadíscio, capital da Somália. Porém, na altura da Ilha de Malta, um comunicado alertou que irrompera a guerra civil, impossibilitando aportar em Trípoli. Na época navios com emigrantes que deixassem os portos italianos não poderiam retornar. Obedecendo ordens, o Capitão cancelou o desembarque e apontou a proa para o oeste, direto ao destino subsequente: a cidade do Rio de Janeiro, no Brasil. 

O Sol dos trópicos ia alto no Céu. Penosamente, abriu caminho entre os companheiros de aflição. Se dependesse única e exclusivamente de sua vontade ficaria ao ar livre até atracarem. Ao cruzar pelo passadiço olhou os cartazes enaltecendo as maravilhas que os imigrantes encontrariam na América: "Terra no Brasil para os italianos", "Venha construir vosso sonho com a família" e a sua preferida, "No Brasil poderás ter o teu castelo". Almejava que ao menos um décimo das promessas estampadas na propaganda fossem verdadeiras. Estaria a fortuna lhes sorrindo pela primeira vez?

Alcançou a escotilha do setor de carga. Inspirou fundo, preparando-se para encarar a catinga pestilenta emanada das profundezas daquele inferno. Colomba, sua esposa, precisava subir para respirar e os bambinos necessitavam de amparo. Se pudesse, as transferiria para a coberta. Por estarem debilitadas ao extremo, receava exigir delas tamanho esforço. A escassa matalotagem esgotara-se no prazo previsto da travessia inicial, somando fome ao rol de privações as quais estavam submetidos. O navio fizera uma parada nas Ilhas Canárias para reabastecimento, contudo as provisões mostraram-se insuficientes. Colhido de surpresa pela fatalidade, o jovem casal ajustou-se as novas contingências da melhor forma possível. A jornada custou 36 dias de árduos sacrifícios. Desembarcaram no Rio de Janeiro, abalados, exauridos, desnutridos e maltrapilhos.

A Hospedaria da Ilha das Flores acolhia os recém-chegados, providenciando abrigo, alimentação e cuidados médicos. Animados pelas perspectivas promissoras, imaginaram que recuperariam a saúde e decidiriam com calma o que fazer dali em diante. No segundo dia de permanência receberam ordem de seguir para o Rio Grande do Sul a bordo do vapor Desterro. O percurso levou em torno de uma semana, em condições piores do que as enfrentadas no Vittoria. Precariamente alojados num compartimento insalubre, úmido e escuro, Angelo e Colomba viram os pequerruchos sucumbirem à fraqueza e à doença. Impotente, Colomba rezava, implorando à Nossa Senhora, protetora dos desvalidos, que seus filhos resistissem o suficiente para sepultá-los em terra firme. Quase que diariamente testemunhava o lançamento de passageiros falecidos ao mar e sabia que seu coração de mãe se despedaçaria ao ver isso acontecer com um de seus rebentos. Queria ter túmulos para pranteá-los. Além disso, por ser católica fervorosa, Colomba acreditava que eles deveriam receber os ritos fúnebres ministrados por um sacerdote, caso contrário suas almas não entrariam no Paraíso.

A conjunção de mazelas vivenciadas durante a viagem cobrou seu preço. Giuseppe, com seis anos, Giovanni, com quatro e Luigi, com somente um, morreram em Porto Alegre, na Hospedaria do Crystal, em dezembro de 1892. O casal jamais esqueceu o Natal daquele ano. Destroçada, Colomba colocou os três no mesmo saco de pano grosso fornecido pela administração para servir de caixão. Aconchegou nos braços do primogênito o frágil corpo do bebê. Os padioleiros jogavam displicentemente os fardos na carroça que os levaria ao cemitério. Acercou-se suplicando que os pusessem no topo da pilha. Não suportaria vê-los asfixiados sob o peso dos demais cadáveres.

Colomba acompanhou o féretro misturada à procissão de enlutados que lastimavam a perda de alguém. Amparada pelo marido, apertava contra o peito a pequena Angela de apenas três anos, ardendo em febre. Enrolara a garotinha no xale branco herdado da avó. Última peça limpa, dentre as incluídas na bagagem. A celeridade com que os empurraram de um lugar a outro inviabilizara a lavagem das roupas utilizadas na travessia. Inocentemente alheia ao sofrimento, a menina ria do jeitinho que costumava rir vendo as morisquetas que os irmãos faziam para distraí-la. Ao regressar, Angelo notou, sem dar a devida atenção, que ela acenava, dando adeus aos montículos marcados com rústicas cruzes de madeira.

O desvio de rota que os trouxe ao Rio acarretou problemas adicionais, uma vez que as autoridades imigratórias não dispunham de glebas destinadas a eles. Findo um mês de inatividade, cansado de esperar inutilmente por uma solução, Angelo comprou um torrão no Alto da Serra e mudaram-se para lá. Tornaram-se agricultores. Recomeçaram do zero, como diz a canção[1]: não encontraram palha nem feno. Dormiram sobre a terra nua. Venceram as adversidades com obstinada determinação.

Nina, apelido carinhoso de Angela, sobreviveu contrariando todas as probabilidades. Cresceu fisicamente saudável, apesar das tribulações da infância terem deixado sequelas. Ensimesmada, conversava sozinha. Aos seis anos ainda chamava os irmãos para brincar. Admoestada continuamente, reprimiu o comportamento considerado anormal pela comunidade ao ponto de esquecer que um dia assim se comportara. Tornou-se taciturna, solitária, calada, alijada do convívio humano pelo preconceito ou pela superstição. Ninguém queria ser visto com aquela que falava com os mortos. Após o passamento dos pais viveu com meu nonno, o irmão caçula nascido no Brasil, até completar seu tempo entre nós. Sepultaram-na no jazigo construído no cemitério da vila fundada pelos pioneiros que cultivaram o território inóspito. 

E foi nesse local que desvendei um capítulo obscuro da minha própria história.

Seguindo o ciclo natural, meu pai desencarnou. Partiu deixando um legado de amor e muitas saudades na sua esposa e nos quatro filhos. Cremaram-no na Capital Gaúcha, localidade na qual passou boa parte de sua existência. As cinzas cochilaram na estante da sala de meu irmão alguns meses, esperando sua destinação final. Optamos por guardá-las na companhia dos antepassados. Repousaria ao lado de seus avós, pais e parentes. 

A união familiar é um traço típico dos italianos em geral, reforçado nos colonizadores em particular. Largados numa nação estranha, sem apoio, a quem recorreriam na hora do aperto? O costume, transmitido de geração a geração,  vale também na morte. Um dos netos do meu bisavô ergueu um mausoléu para abrigar os fundadores de nossa linhagem e seus descendentes.

Concluídas as tratativas atinentes ao processo de translado, marcou-se a data da cerimônia. Eu moro no Rio de Janeiro e precisei organizar a logística com antecedência. Reservei acomodações em uma pousada temática, outrora residência de imigrantes. Uma casa sólida, erguida sobre alicerces de pedra bruta, recheada de encantos e evocações da infância. Num belo domingo de Sol reuniu-se a parentada para conduzir meu velho ao seu novo, e definitivo, endereço.

Do pórtico seguimos por uma calçada desgastada pela passagem de inúmeros funerais. Fileiras de lápides do século XIX assinalavam a ala em que os desbravadores da região começaram a enterrar seus mortos.

O mausoléu era sóbrio, feito de granito negro. Seu formato reproduzia uma capela, encimada por um anjo prestes a alçar voo, olhando benevolente para os degraus da entrada. Seus braços abertos abençoavam o grupinho aguardando a abertura do gradil. Fixei-me no desenho irregular dos blocos que formavam a construção, tentando evitar o olhar tristonho da figura esquálida que nos fitava à distância.

Sempre que posso evito cemitérios. E o motivo é óbvio. A densidade de desencarnados é altíssima. Embora esteja acostumado a conviver com aparições é desagradável ser assediado em ocasiões que ensejam privacidade para confraternizar com entes queridos.

Em contrapartida, tenho um fraco por crianças, vivas ou mortas. E essa partia meu coração. A face macilenta ostentava olhos encovados dos quais fluía uma tristeza incomensurável. Atento, espreitava a movimentação dos envolvidos na celebração sem que o percebessem. Com a mão direita segurava um embrulho; com a esquerda gesticulava, pedindo que me aproximasse. Encarei-o discretamente. Estava acompanhado por um menor, escondido na sua retaguarda. Com os dedinhos murchos agarrava-o pelos quadris. A curiosidade, maior que o medo, incitava-o a espiar o mortal que podia vê-los. O aspecto desolado de ambos revelava uma transição sofrida, decorrente de circunstâncias a serem esclarecidas. Não consegui me conter. Terminei de consolar uma prima que chorava emocionada e fui ter com eles.

O mais velho fitou-me ansioso. Ajoelhei-me a sua frente. A sensação de desamparo que brotava daquelas alminhas encardidas doía-me profundamente. Perguntei por que permaneciam no mundo físico. Buscavam ajuda para localizar seus pais. Falavam com forte acento do Vêneto. Graças a experiências anteriores com espectros oriundos da Itália oitocentista, compreendia-os perfeitamente. O taludinho disse chamar-se Giuseppe e o menor, Giovanni. Lentamente, denotando dedicação, Giuseppe descobriu a porção superior do pacote. Do novelo de trapos emergiu o rosto de um bebê. Falou sussurrando, para não acordá-lo:

Questo è Luigi.

Feitas as apresentações seguiu-se um curto diálogo. Sondei o que faziam ali parados. Na sua inocência, Giovanni contou que seguiam Nina para toda parte. Um dia ela dormiu e recusava-se a despertar. Velavam acreditando que voltaria para brincar com eles.

Um crescente burburinho sinalizou a conclusão da deposição das cinzas. O pessoal deixava o interior do mausoléu visivelmente interessado no próximo item da agenda, um almoço de confraternização. Ao ver-me ajoelhado, falando com o vazio, minha irmã abordou-me curiosa:

— Perdeste alguma coisa?

Captei um tom de censura em sua voz. Certamente notara que não participara da cerimônia. Os meninos evaporaram ao vê-la chegar, de modo que nada pude fazer naquele momento. Tomei-a pelo braço e nos afastamos. Ela não compartilha do dom que recebi. Entretanto, não desacredita que sou capaz de comunicar-me com os habitantes do além. Por isso falei-lhe francamente. Em sucintas palavras narrei o ocorrido. Analisamos as evidências e concordamos de imediato: a prole perdida de nossos bisavós vagava a procura de paz.

Tínhamos noção de quem se tratava porque, ao contar a saga da colonização, os antigos citavam a morte trágica dos tre bambini de Angelo e Colomba. Até então não passavam de diferentes versões de uma mesma narrativa. A aparição das criaturinhas corroborava a estória fartamente repetida nos serões ao redor de fogões à lenha e comprovava sua veracidade. 

Naquela noite, na penumbra do meu quarto, cercado por paredes centenárias, apelei por orientação a meus mentores. Como encaminhar os três irmãos ao encontro da luz? Não obtive resposta. Ela surgiu sem aviso, enquanto degustava um café da manhã digno de um trabalhador braçal.

Devorava o terceiro - ou quinto - grostoli. Vi minha irmã irromper no refeitório, agitada. Tivera uma ideia:

— Mano, olha isso. Descobri o que acontecia com os que morriam na Hospedaria do Crystal.

Felizmente ela é genealogista amadora, com acesso a fontes confiáveis de informação. A partir dos relatos disponíveis pesquisou e montou um panorama razoável da sucessão de eventos do nosso passado familiar.

Lambi os dedos para recolher os últimos grãos de açúcar e canela. Peguei o celular que ela estendia e li o trecho de um artigo escrito por uma pesquisadora especializada na história da imigração italiana. O texto descrevia os procedimentos adotados no caso de falecimento na Hospedaria do Crystal. Inicialmente armazenavam os corpos em um depósito para, posteriormente, levá-los a um terreno vizinho ao estabelecimento e enterrá-los. A área não fora preservada, perderam-se os registros. A sina dos inumados continua sendo uma incógnita.

A julgar pelo que dizia a autora os restos mortais do trio provavelmente não existissem mais, obstando sua exumação para acomodá-los junto aos pais no pavilhão da família. Devolvi o aparelho e observei, resignado:

— O que não tem remédio, remediado está.

A questão me inquietava. Não entendia o silêncio dos mentores, tampouco o visível entusiasmo dela com uma notícia dessas.

Na verdade ela reportava fatos. A resposta veio na sequência:

— Pensei em encomendar uma placa em homenagem a eles. Até quando ficas por aqui?

A vantagem de ser autônomo é que estabeleço meus horários com bastante liberdade.

— Até quando for necessário!

Saímos em busca de um fornecedor. Em cinco dias recebemos três plaquinhas de porcelana contendo os nomes, data de nascimento, óbito e uma singela dedicatória à memória de cada um.

No domingo seguinte nos reunimos sob a proteção vigilante do anjo no topo do mausoléu. Uma pombinha branca pousou na mão direita da estátua, perscrutando com seus olhinhos vivazes. Sorri ao intuir o simbolismo da cena[2]. A poucos metros, Giuseppe amparava Luigi com seus bracinhos mirrados. Giovanni, nervoso, torcia a fralda solta da camisa do primogênito. Temia apartar-se e ver-se novamente abandonado.

Um alvoroço aflorou das entranhas do mausoléu ao verem as homenagens póstumas. Acompanhava o desenrolar dos acontecimentos banhado pelo Sol da manhã, com um olho na solenidade e outro nas crianças. Uma ovação distraiu-me por segundos. Voltei-me em direção aos meninos. Ia relatar-lhes o que se passava. Não tive forças. Um vulto materializara-se atrás deles. Uma mulher na faixa dos 35-40 anos, bela e vigorosa. Vestia roupas de trabalho: vestido simples, corpete e avental. A saia escura cobria seus pés. Por cima dos ombros, o xale branco, ricamente bordado. Nunca a vira, mas atinei tratar-se de Nina, aquela que falava com os mortos.

Ajoelhou-se, abraçou os irmãos carinhosamente e lançou-me um olhar penetrante, misto de agradecimento e alívio. Tomou do xale e envolveu os pequenos, assim como o fizera com ela sua mãe. Acenou com a cabeça e os escoltou à entrada do mausoléu. Evanesceram ao passar pelo gradil. Embargado pela emoção incorporei-me aos celebrantes e aplaudi a colocação da derradeira placa próxima aos despojos de Angelo e Colomba.



1. GIUSTI, Angelo. Merica Merica. 1875. Disponivel em https://aigiuseppeverdi.com.br/v2/merica-merica/#:~:text=Autoria%20de%20Angelo%20Giusti%2C%201875. Acesso em 31 agosto 2024.

2. O nome Ângelo tem origem no grego e significa "mensageiro". Do grego, transitou para o latim como "angelus", dando origem a palavra  "anjo" em português e "angelo" em italiano. Colomba significa pomba em italiano.

Comentários

  1. Respostas
    1. Muito obrigado! Embora seja uma obra de ficção, muitos dos eventos narrados são baseados em fatos. A vida dos imigrantes não foi fácil.

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