A visita


Siá Rita acordou cedo. Varreu e ajeitou sua casinha da melhor maneira possível devido a idade avançada. Colheu flores no jardim e as colocou no vidro de café solúvel que servia de vaso. Depositou o arranjo num alvíssimo guardanapo de crochê, ornamento da mesa tosca, em volta da qual estavam dispostas três cadeiras. Vaidosa, mantinha as madeixas cuidadosamente penteadas. Apanhou a mais bela flor do ramalhete e a prendeu nos cabelos. Viver afastada dos vilarejos ribeirinhos não justificava uma aparência desleixada, segundo ela. A brancura de suas cãs denunciava o decurso de decênios e os sulcos da face amarguras de dores e penares. Olhou em torno. Sorriu, satisfeita com o resultado do seu trabalho. Debruçou-se no peitoril da janela, apreciando a paisagem. A tarde ia alta. As sombras das árvores esticavam-se na placidez do igarapé que se estendia a perder de vista. Revivia felicidades passadas.

Interrompeu as reminiscências ao reparar nas ondulações suaves espalhando-se na superfície da água, indicando que alguma embarcação de pequeno porte aproximava-se devagar. Apertou os olhos na distância. Em breve despontou uma canoa, conduzida por um rapazote, quase um menino, remando com o vigor próprio da juventude. Embicara na direção da casa, não demorando a desembarcar na prainha fronteiriça.

O recém-chegado nem precisou anunciar-se. Siá Rita, parada no alpendre, aguardava por ele. Visitas eram raras e ela parecia ansiosa por descobrir o que fazia ele perdido naquelas paragens esquecidas por Deus. Passaram à sala da humilde habitação. Ela convidou-o a sentar, sentando-se a sua frente. As mãos ossudas cruzadas sobre o vestidinho de chita coberto por estampas coloridas.

Conversaram amenidades até um silêncio desconfortável envolvê-los, como se antevissem os murros aplicados à porta. Célere apesar da idade, Siá Rita apressou-se a abri-la, temendo que a próxima pancada a derrubasse.

Na soleira uma visão perturbadora. Dois homens, sendo que um, escorado no outro, estava mortalmente ferido. Aflito, o que amparava suplicou desesperadamente por ajuda. Ninguém - de todas as casas em que batera - dignara-se a recebê-los; muito menos acolhê-los. Solícita, a senhora conduziu a dupla pelo corredor que levava a um dos quartos para tratarem do combalido. Limparam e enfaixaram as feridas com a urgência requerida pela gravidade de seu estado. Os cortes, profundos, assemelhavam-se aos resultantes do embate com bestas de garras afiadas. Ultimados os curativos iniciais, deixaram-no sozinho, mergulhado na penumbra. Siá Rita ia perguntar ao outro se também necessitava de atendimento, mas foi interrompida. Nervoso, o companheiro do moribundo informou que deveria partir imediatamente. Uma tragédia ameaçava sua família e ele carecia encontrá-la antes que fosse tarde demais. Jurou regressar para resgatar o acamado logo após sanar a emergência.

Consternada pelo tormento expresso nos olhos do viajante, Siá Rita disse que ficasse tranquilo e trilhasse seu caminho. Ela cuidaria do enfermo. Para selar sua promessa, o homem entregou-lhe um bem de inestimável valor, prova de que voltaria para reavê-lo. A velha recolheu o pequeno objeto com silenciosa reverência. Acompanhou-o à saída. Confabularam baixinho por minutos. Despediu-se acenando frouxamente. Ao fechar a porta, encostou-se na parede de madeira e começou a soluçar descontroladamente.

O jovem testemunhara o incidente atônito, pois os eventos sucederam-se vertiginosamente. Aproximou-se da anciã querendo confortá-la, sem saber exatamente o que dizer. Tocou em seu ombro e ela se virou. Alarmou-se ao vê-la. Resfolegava, mantendo os olhos injetados cravados nos olhos dele. Escoaram-se segundos eternos. Quebrou-se o transe ao engolir o pranto e falar com voz forçadamente calma:

— Não te espantes com o que vais ver agora, porque a vida é tão cheia de mistérios quanto a morte.

Dito isso dirigiu-se à cozinha. Preocupado com o estado frágil em que se encontrava sua anfitriã, o jovem a seguiu. Ao passar diante do quarto no qual deitaram o ferido, parou estarrecido ao perceber a cama vazia. 

— Siá Rita - exclamou - o paciente sumiu!

Ao retornar ao corredor deparou-se com a velha bloqueando a passagem. Em cada mão uma xícara fumegante.

— Sente-se e beba este chá. Vou te contar uma história.

Há décadas houve grande demanda por látex, um produto cuja matéria-prima é a seiva da seringueira, árvore abundante na Amazônia. Centenas, quiçá milhares, de aventureiros acorreram à floresta em busca daquilo que, presumiam eles, transformaria esfarrapados em milionários. Inúmeros incautos pereceram em consequência de não sei quantas mazelas suscitadas pela natureza ou trazidas pela mão do homem: a febre, as feras, a fome e, principalmente, a ganância.

Alguns, de má índole, despreparados para suportar a rudeza das condições enfrentadas, decidiram mudar de sorte à custa da prosperidade alheia. Tornaram-se salteadores, assassinos por encomenda, cafetões ou coisa pior.

Nesta malta destacava-se um indivíduo particularmente cruel. Ligava a mínima para o sofrimento causado. Divertia-se com o infortúnio de suas vítimas. Hábil no manejo da arma branca, perdeu a conta de quantos provaram o gosto ácido de sua lâmina. Matava rindo. Ou mutilava, encarregando a floresta de completar a empreitada.

Malgrado o espírito ruim que nele habitava, uma centelha bruxuleava na escuridão de sua alma. Uma esposa, escondida num ponto ignoto do inferno verde, isolada do convívio e da depravação que grassava ao redor de seu diminuto paraíso. Talvez seja difícil de acreditar, porém o facínora nutria por ela um amor verdadeiro. Certo dia, enquanto descansava de suas matanças no seio do lar, ela veio, amorosa, comunicar-lhe um fato inusitado: ele seria pai! Ela estava grávida.

A notícia encheu-o de alegria. Aquietou-se por um tempo, acompanhando o crescer da barriga. Vivia vida de gente, por assim dizer. Incrédula frente a mudança, a esposa supôs que a paternidade inspirara sentimentos desconhecidos em seu peito de pedra. Entretanto, o instinto sanguinário adormecido por fim despertou e ele compreendeu ser este maior do que a vontade de permanecer enraizado, posando de bom marido. Um cristão faria propósito de evoluir para servir de exemplo ao inocente que o chamava do berço. Não ele. Num rompante decidiu redobrar esforços para amealhar recursos e despachá-los para Manaus. Somente lá, iludia-se, a esposa teria os meios necessários para educar o filho. De um jeito torto, queria bem ao rebento. Sobremaneira, almejava que optasse por uma trajetória diferente da sua. Que um dia exibisse no dedo um reluzente anel de doutor. 

Ignorou os apelos da mulher e escafedeu-se, disposto a dar a eles tudo que o dinheiro pode comprar, sabendo que ansiavam apenas por sua presença. Passou anos embrenhado na mata, animalizado, matando para viver. Esporadicamente via a esposa e a cria, sem aperceber-se que suas aparições duravam cada vez menos e espaçavam-se cada vez mais. A rotina doméstica lhe era insuportável. Sentia-se vivo imerso na solidão. Nascera para isso.

Cauteloso, montara acampamento numa área remota, longe do seringal; a experiência o induzia a evitar encontros fortuitos. Ao final de uma manhã mormacenta, pressentiu a aproximação de alguém. Decerto um mateiro extraviado ou algum canalha farejando seu rastro, ávido por apoderar-se dos frutos de suas rapinagens. Armou tocaia e esperou o infeliz aparecer. Emergiu um caboclo forte, apetrechado para seringar. Não tinha cara de bandido. O que estaria fazendo ali, perseguindo um matador profissional? Concluiu tratar-se de retaliação por ofensa cometida a um camarada ou algo nesse sentido. A verdade é que dispensava desculpas para praticar seu ofício. No instante em que o moço entrou na zona de morte, pulou e o retalhou impiedosamente. Prostrado, o pobre esvaia-se em razão da profundidade dos cortes. Convulsionava em agonia. Arfando, antegozando o prazer da degola, o bandoleiro ajoelhou-se para finalizar o serviço com um talho na garganta do moribundo. Fitou os olhos embaçados e assestou o golpe. Num gesto débil, implorando clemência, o seringueiro ergueu a mão e a levou a algibeira atada a sua cintura. Retirou um objeto dourado, preso a uma corrente de cor idêntica. Era um medalhão. Não qualquer medalhão. Este ele dera à esposa ao pedi-la em casamento. Assombrado, tomou-o da mão amolecida que desabou junto com o último alento do portador.

Levantou-se com a joia manchada de sangue entre os dedos. Largou a adaga e abriu o fecho. No interior, as fotos dele e da amada. Ela, do lado esquerdo, sorria faceira. Ele, na banda oposta, exibia as feições duras de costume. No meio, um pedaço de papel. No bilhete reconheceu a letra caprichosa da ex-professora que convertera em consorte. A mensagem era um pedido de socorro. O garoto ardia em febre. Tomado de súbito pavor atinou que corria o risco de arruinar o motivo pelo qual retomara a sina de salteador e que o cadáver jazendo a seus pés não pertencia a um desafeto. Vinha avisar o sucedido.

Ia juntar as tralhas para partir quando deu-se o improvável. Um magote de caboclos rijos e fortes brotou das sombras, cercando-o inapelavelmente. Eram os parceiros do assassinado. Olhos sedentos de vingança e punhais desembainhados deixavam claras as intenções. A luta foi medonha. Exaurido, desnorteado e em desvantagem, sucumbiu inevitavelmente. Os justiceiros sepultaram o amigo e seu algoz na mesma cova rasa. Um deles era mandingueiro. Lançou uma praga que os uniu eternidade adentro.

Por essa razão todo ano, no aniversário da fatalidade, o espectro do assassino vaga buscando assistência para o mensageiro, tentando encontrar a choupana onde abandonara esposa e filho.

O jovem ouviu calado, com os pelos do corpo eriçados. Ela terminara o relato e o olhava estranhamente. Um pensamento sinistro lampejou em sua mente e aflorou em seus lábios:

— Como é possível que a senhora conheça essa história com tantos detalhes?

As mãos ossudas desabotoaram os primeiros botões do vestido. Enlaçou com o indicador uma corrente e sacou do colo um antigo relicário, enegrecido por manchas de sangue ressecado. Abriu-o e mostrou seu interior. De um lado uma moça sorridente, de cabelos negros. Do outro, um jagunço de aspecto duro, selvagem. Não havia dúvidas. Era o mesmo que batera à porta com o colega a tiracolo.

Lágrimas marejaram os olhinhos baços da idosa. Abraçou o rapaz, sussurrando suavemente em seu ouvido:

— Eu sei porque foi teu pai quem me contou, meu filho.

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