A Manjedoura Vazia
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Alguns acreditam que a época do Natal propicia a ocorrência de fatos inexplicáveis, inusitados ou maravilhosos destinados a abençoar os mortais sem causa ou razão aparente. Não era o caso daquele moço acabrunhado, descendo, hesitante, os degraus do ônibus que o devolvera a cidade onde crescera. Retornava após longa ausência. Fracassos sucessivos o converteram em cético no que diz respeito à existência da felicidade. Mal sabia ele que viveria uma experiência capaz de modificá-lo definitivamente.
Voltara devido ao falecimento do pai, de quem fora próximo. Divergiram irremediavelmente no momento em que decidira dar um rumo diferente ao seu futuro. Saiu de casa brigado, afastou-se, achando ter rompido amarras que o sufocavam. A dor da perda o revoltara sobremaneira porque a distância o impedira de estar presente no funeral. Com esta viagem pretendia, a seu modo, prestar um derradeiro tributo. Abandonou a vida insatisfatória que levava na esperança de resgatar sentimentos marcantes da infância. Almejava honrar a memória do pai evocando alegrias com ele compartilhadas. Em busca de lembranças que o conectassem ao passado, percorreu locais importantes para ambos: o grupo escolar que o alfabetizou, a pracinha, o morro de empinar pipas entre outros. Completou a peregrinação visitando a igreja outrora frequentada pela família. Uma construção enorme, quase uma catedral, de arquitetura neoclássica, composta de linhas retas e elegantes. Seu prodigioso pé direito parecia querer tocar o céu.
Apesar da imponência do templo, mantinha a atenção voltada para o quadro de avisos pendurado no pilar localizado perto da porta de entrada. Aos sábados, costumava auxiliar o pai a decorar o átrio colocando cartazes alusivos as datas comemorativas. Ao ler os dizeres proclamando a chegada do Advento, calorosas reminiscências pulularam em seu coração.
Dali, dirigiu-se ao corredor lateral que conduzia ao posto do organista. Procurava o sítio ordinariamente reservado a representação do nascimento de Cristo. O final de novembro sempre o deixava irrequieto. Nesse período o pai e um senhor chamado Pedro iam todas as noites durante a semana montar o presépio. Ao despontar do buço promoveram-no a ajudante e, desde então, orgulhava-se de participar ativamente desse acontecimento. Os paroquianos, em especial os pequenos, aguardavam ansiosos a "inauguração" da obra. Entendia como endereçados a si os elogios ou expressões de admiração proferidos pelos visitantes. Não era para menos. As estatuetas centenárias, verdadeiras relíquias herdadas da capela que dera origem à paróquia, foram trazidas da Europa pelo primeiro vigário no início do século XIX. De valor inestimável, permaneciam belíssimas, embora exibissem indícios de desgaste. Tinham aproximadamente cinquenta centímetros de altura e pesavam pra caramba. Some-se a elas cenário, pinheiro, iluminação e o resultado era espetacular. No ápice da Missa do Galo o sacerdote, em procissão, entronizava a figura do Menino Jesus na manjedoura.
Parado, as mãos enfiadas nos bolsos, prescrutava incrédulo o espaço vazio delimitado por duas pilastras. Findava novembro e nem sinal dos trabalhos. A montagem deveria estar em curso, caso contrário não haveria tempo hábil para sua conclusão. Intrigado, foi a casa paroquial conversar com o pároco. Apresentou-se, explicou a natureza do vínculo que o ligava à paróquia, confessando sua inquietação ao não encontrar o presépio armado. Indagou o que acontecera:
— Seu Pedro não deu continuidade a tradição?
— Seu Pedro morreu de insuficiência renal um ano antes da partida do teu pai. Participou da última instalação a duras penas. A doença que o levou minou suas forças.
— E ninguém se interessou em perpetuar o legado?
— Ninguém. Além disso, são peças antigas, de grande significado para nossa história. Receio entregá-las a alguém que não seja de confiança.
Interpretou como oportunidade a lacuna deixada pelo pai e Seu Pedro. Elencou a série de benefícios advindos da reconstituição daquela data sublime, mormente no tocante ao fortalecimento da fé. A eloquente sinceridade dos argumentos convenceu o vigário da importância de reacender o espírito natalino através do presépio. Concordaram ser vital lançar mãos à obra imediatamente.
Exultante, recebeu as chaves do portão de acesso ao Coro, um amplo mezanino estendido acima do átrio. O nome derivava da função para a qual havia sido projetado, uma vez que coral algum entoara cânticos naquele lugar. Originalmente guardava apenas os componentes do presépio, mas por ser área restrita e pouco utilizada, acabou virando depósito de todo tipo de tralha. Para alcançar o cenário, as imagens e demais acessórios precisou desbastar montes de entulhos. Separava os materiais afoitamente. Queria reviver aquele fragmento jubiloso do passado tão logo quanto possível. Descartou sumariamente décadas de descasos acumulados na forma de revistas, panfletos, jornais, bem como inúmeras caixas de papelão de variados formatos, cores e tamanhos. E lá se foi o dia. Ao deixar o recinto sagrado sentia-se frustrado. Desperdiçara horas preciosas com faxina, postergando a concretização do motivo que o trouxera até ali.
Na noite seguinte finalmente realizou seu desejo. Desceu o estrado sobre o qual seria erguido o presépio: uma estrutura robusta, feita de boa madeira, engenhosamente concebida para aguentar a movimentação dos trabalhadores durante a colocação dos painéis que reproduziam as luzes de Belém sob o céu estrelado. No meio do percurso, extenuado, fez uma pausa. Acariciou o trambolho e exclamou, arfando:
Lembrou que a seus olhos de guri o pai e Seu Pedro a carregavam com facilidade. Perguntou a si mesmo se estava em condições de fazer sozinho o trabalho de dois homens e um fedelho. O descanso deve ter ajudado, pois a partir daquele ponto a carga tornou-se suportável. Depositou as partes no piso e começou a encaixá-las. Assistira o pai construí-la em sua marcenaria, por isso não teve dificuldade em montá-la no cantinho habitual. Animado com o progresso obtido, retirou-se para o hotel e dormiu o sono dos justos.
A próxima etapa consistiu em revestir a base com papel grosso imitando pedra, visando esconder a armação da vista do público e manter o gramado de serragem e a estradinha de areia isolados de frestas traiçoeiras. Cada item que pegava acendia uma recordação. Da oficina do pai, experiente marceneiro, viera a serragem, subproduto da serra circular. Sua mãe a recolhera e tingira de verde. Servia de pasto para dóceis ovelhas de gesso vigiadas por pastores. A areia extraíram das dunas da praia na qual passavam as férias de verão. Finalizou as atividades instalando a choupana representando o estábulo.
Outra noite, armou e ornamentou o pinheiro artificial que encantava fiéis de todas as idades. Fixou a Estrela-Guia no topo para que a caravana dos Reis Magos encontrasse o caminho.
A urgência cobrava seu preço. Labutava ininterruptamente madrugadas adentro sem esmorecer. Sentia-se alegre, vivo! Reviver algo de tamanha magnitude aproximava-o de sentimentos há muito esquecidos. Por vezes imaginava a presença do pai e isso redobrava-lhe a empolgação.
Na noite restante, encerrou as atividades com chave de ouro. Limpou cuidadosamente, um por um, os personagens e os posicionou em suas respectivas marcas. Considerou cumprida a missão ao ajeitar no centro da cabana, entre o boi e o burrico, a manjedoura vazia, a espera da estrela maior da principal festa da cristandade.
Antes de sair parou e admirou o resultado. O presépio ficara idêntico aqueles feitos por Seu Pedro e seu pai. Incrível como replicara minuciosamente insignificantes pormenores, incluindo a disposição dos atores, dos enfeites e das luzinhas pisca-piscas. Arrematou vaidoso:
— Papai ficaria orgulhoso se me visse agora!
Inacreditavelmente conseguira terminar na sexta-feira anterior ao primeiro domingo do Advento. No sábado, acomodou-se num banco vizinho ao presépio para observar a reação das pessoas. Satisfeito, constatou que a imensa maioria aprovava a iniciativa e diversos voltavam com parentes a tiracolo para mostrar a novidade.
Tudo correra tão bem que ele, perdido em devaneios, não se deu conta de um detalhe fundamental. Onde estaria o Menino Jesus? A questão tornou-se seriamente relevante na tarde de 24 de dezembro. O padre ultimava os preparativos para celebrar a Missa do Galo e requisitou a figura que encabeçaria a procissão.
Horas de buscas infrutíferas, fuçando em recônditos cantos do Coro, fizeram-no perceber que o astro da celebração encontrava-se em local incerto e não sabido. Desnorteado, comunicou o sumiço ao vigário, recebendo dolorosa pontada de acusação em resposta. Retornou alucinado ao depósito, revirando, inutilmente, o que já estava revirado. Seu ânimo reduziu-se a zero. Desalentado, envergonhado pelo fracasso, evadiu-se disposto a desaparecer da face da terra. Repetia em frenesi:
— O que diria papai se me visse agora?
Acometeu-o forte crise de ansiedade, arrefecendo o ímpeto de sair correndo sem olhar para trás. Sentou-se nos degraus da escadaria em frente à igreja, procurando desculpas para o indesculpável. Avistou a praça na qual se reunia com a turma de amigos depois das aulas de catequese. Uma garotinha, sentada num banco, mexia em alguma coisa vagamente familiar. Levantou-se e foi até ela. Despreocupada, brincava de casinha com móveis improvisados, feitos de papelão. Cantarolava canções de ninar, embalando suavemente uma caixinha - que devia ser o berço - caprichosamente forrada com tiras de jornais. Dentro dela, de braços abertos e vergoinhas quase a mostra, repousava o Menino Jesus. Liberto do peso que lhe aguilhoava a alma, ajoelhou-se ao lado da criança e agradeceu. Ela retribuiu e disse, com a singeleza própria dos inocentes:
— Um senhor pediu que cuidasse Dele até você chegar.
— Onde O encontraste?
— Naquele latão ali. Minha mãe catava sucata para vender e me chamou. O encontramos numa caixinha marrom.
O jovem deu um tapa na testa, suando frio.
— A caixinha!
Lembrou de tê-la jogado fora julgando ser simplesmente... lixo!
À meia-noite ocorreu a mais bela das procissões natalinas já realizadas naquela igreja. Encabeçava o cortejo uma família radiante: pai, mãe e filha, aconchegando em seus bracinhos o Deus Menino.
No fundo da igreja, o jovem chorava aliviado e emocionado. Comovido, o velho marceneiro o abraçou, feliz por terem, juntos, salvado o Natal.
Era realmente um tempo mágico!
ResponderExcluirMomentos para se guardar no lado esquerdo do peito ...
ExcluirO relato foi muito fiel! Me vi de volta àqueles tempos!
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