Contando ninguém acredita

Nunca é fácil lidar com a perda de um ente querido e cada pessoa tem sua forma particular de expressar os sentimentos nesse momento singular, em que a existência se depara com a finitude. Que dizer de uma mãe que perde um filho? Ou de uma viúva que precisa lidar com a herança deixada pelo marido? E o que fazer quando somos instados a estar presentes pelo dever da solidariedade?

Essa coletânea traz três contos que abordam temas delicados, mas não por isso menos importantes, com leveza e bom humor. São estórias baseadas em fatos reais, por mais incrível que pareça.


Vitor Mateus Teixeira, o Teixeirinha


Transmitindo em todas as frequências

Numa pequena cidade da Região Sul do País viviam Seu Hélio e Dona Maria. Eram pessoas simples, batalhadoras, que trabalhavam muito para sustentar cinco filhos com dignidade. Dentro do possível, levavam um vida tranquila, quando, inesperadamente, a cegonha avisou que viria visitá-los novamente. Levaram um tremendo susto! Estavam já com certa idade e não esperavam uma gravidez a essa altura da vida. Mesmo assim, receberam com alegria o anúncio da chegada da nova cria.

— Onde comem sete, comem oito.

Dizia Seu Hélio com orgulho da sua condição de provedor da família.  Quis o destino que o último rebento do casal viesse ao mundo na forma de um anjo com as asas quebradas. Júlio nasceu com paralisia cerebral devido a complicações no parto, fazendo com que se tornasse eternamente dependente de terceiros para continuar vivendo. As limitações físicas da criança nunca foram empecilho para o amor que lhe devotavam os pais e os irmãos. Ao contrário, principalmente no caso de Dona Maria, que era quem mais cuidava dele. Embora se comunicasse com muita dificuldade, Júlio dava mostras de ser uma pessoa sensível e inteligente. Gostava tanto de música que num Natal ganhou de presente um radinho de pilhas que sua mãe sintonizava num programa onde as pessoas passavam recados e ofereciam a próxima canção para algum conhecido - via de regra um amor distante. A partir desse dia,  Júlio passava as manhãs escutando o programa e se emocionando com os dramas de pessoas que não conhecia, mas que levavam uma vida que ele gostaria de ter.

— Onofre avisa que chegara ao Distrito de Faxinal no próximo dia três e pede que seus filhos o aguardem na rodoviária com a carroça grande. A seguir Chiquinha oferece a próxima atração musical a Roberto - e assim, pela voz do locutor, Júlio ia descobrindo como funcionava o mundo. 

Sempre que precisava se afastar dele por qualquer motivo, Dona Maria ligava para a emissora e pedia que transmitisse um recado para seu filho e, é claro, dedicava a ele a próxima música. Era sua forma de demonstrar carinho e preocupação com Júlio, que vibrava quando ouvia citarem o seu nome. 

Ao completar dezoito anos, Júlio teve um problema de saúde agravado por sua condição e não resistiu. Sua morte foi uma perda brutal para todos que o conheciam, mas particularmente dolorosa para sua mãe. Ela ficou inconsolável, depressiva, e começou a sentir-se culpada pelo destino do filho. Como forma de amenizar a falta que sentia começou a visitar seu túmulo quase que diariamente.  Nessas visitas, levava o radinho para que Júlio pudesse "ouvir" seu programa favorito. 

Seu Hélio também sofria, mas nem por isso deixava de achar estranho a atitude da esposa. Várias vezes pediu a ela que abandonasse esse comportamento doentio e seguisse em frente.  Em vão. Nada nem ninguém a fazia mudar de ideia. 

Até que um dia, quando a dor apertou mais forte e Dona Maria sentiu que não iria suportar, aconteceu algo que até hoje ninguém conseguiu explicar. 

Estava ela sentada em seu banquinho, ao lado da sepultura do filho, chorando com o rádio sintonizado na estação de costume, quando ouviu o locutor dizer:

— Queridos ouvintes hoje temos o pedido emocionado de um filho distante para sua mãezinha. Dona Maria, preste atenção no que Júlio mandou dizer para a senhora: "Mamãe, embora tenha partido levo comigo seu carinho e sua dedicação.  Eu sigo meu caminho com alegria.  Fique em paz, na certeza de que iremos nos reencontrar algum dia".

— Dona Maria, quem dera todas as mães pudessem ter um filho assim. E ele dedica a próxima canção para a senhora!

A partir desse momento, ela sentiu uma serenidade que nunca havia  experimentado. Secou as lágrimas, pegou o banquinho e voltou para casa. Sobre o túmulo deixou o radinho ligado, transmitindo em ondas médias e curtas "Mocinho Aventureiro", de Teixeirinha.

_ * _


Acerto de contas

Venho de uma família grande, com muitos membros, cada um com suas particularidades, preferências e, o que é melhor, estórias de vida. Dessa mistura heterogênea de tipos humanos, destaco uma velha tia que abraçou os votos religiosos muito nova e dedicou-se a servir o próximo. Sua vida daria um livro, graças as inúmeras aventuras que viveu como missionária nos rincões mais distantes e esquecidos desse nosso gigantesco País. O relato a seguir ouvi de seus lábios há muitos anos e agora me voltou a memória.

Contou-me ela que certa feita estava acompanhando um grupo de médicos e sanitaristas - ela era farmacêutica - no mais recôndito pedaço do sertão nordestino. Sempre que a caravana chegava em algum povoado era recebida com festa pela população desassistida, que corria em busca de conforto físico e espiritual. Naquela ocasião não foi diferente. Numa manhã calorenta, chegou ao salão paroquial onde a equipe se instalara, um moleque magrinho. Vinha pedir ajuda para seu pai, vítima de não sei qual moléstia, mas que estava em estado muito grave. Já imaginando que o paciente poderia não resistir, o médico que atendeu a ocorrência chamou minha tia e pediu a ela que o acompanhasse até a localidade onde se encontrava o enfermo, pois como diaconisa ela poderia ministrar a extrema unção, se necessário. Na falta de melhor transporte foram os três na charretinha conduzida pelo menino.  

O sítio para onde se dirigiam era afastado da sede do município. Isso sem falar que o burrinho que puxava a charrete não ia assim tão rápido. Por fim, chegaram já no final da tarde e encontraram um ajuntamento de vizinhos na porta de um casebre de pau a pique. Como o médico imaginara, o doente não resistira e agora seus cuidados já não eram mais necessários. Minha tia foi ter com os parentes do falecido para confortá-los e ver o que podia ser feito para minimizar a dor da perda. Encontrou a viúva num canto, chorosa, a desfiar as contas gastas de um antigo rosário.

O defunto jazia deitado sobre uma mesa tosca, com quatro velas ardendo, uma em cada canto. Não havia caixão. Ao final do velório o corpo seria carregado numa rede até a cova, que já devia estar sendo aberta no cemitério local, e devolvido ao pó envolto num lençol. Na penumbra do cômodo abafado, carpideiras mesclavam seus lamentos com vozes que entoavam hinos religiosos. Uma mocinha, talvez irmã do condutor, se encarregava de espantar as moscas com um pano encardido. Como bem sabia minha tia, essa era a maneira com a qual aquela gente lidava com a morte.  Mas havia um outro costume que minha tia conheceria em breve e que lhe causou uma impressão tão forte que ela jamais esqueceu a cena que presenciou.

Devia fazer mais de hora que haviam chegado. Devido a aproximação da noite, ela e o médico decidiram ficar por ali até a manhã seguinte, o que era absolutamente normal nesse tipo de atendimento. Lá pelas tantas, junto com um grupo que se formara na porta do casebre, chegaram três sujeitos mal encarados, cada um portando um enorme porrete. Um profundo silêncio tomou conta do recinto, como naqueles momentos que antecedem ao início de um espetáculo. Sem dizer uma palavra sequer, os três se posicionaram ao redor da mesa e, como se seguissem a uma ordem silenciosa, começaram a bater impiedosamente no falecido, a um só tempo. Ao ver aquela afronta, minha tia esboçou um gesto de reação, mas foi imediatamente contida pelo médico que, com os dedos sobre os lábios, pediu a ela que permanecesse em silêncio.

A sessão de espancamento durou bem uns dez minutos, ao fim dos quais a viúva se jogou na frente daquele que parecia ser o líder do grupo e pediu que parassem. Assim como haviam começado, os três suspenderam a pancadaria e se retiraram calados.

Logo que os agressores saíram as mulheres presentes se juntaram a ela para recompor os restos do marido e o velório seguiu sem maiores incidentes. Ao amanhecer a procissão tomou seu rumo e minha tia mais o médico retornaram a sede da missão.

— Você pode me explicar o que foi aquilo ontem? Falou ela indignada com a atitude do colega frente ao ato insano que haviam presenciado.

— Irmã, há certos costumes que podemos não entender, mas precisamos respeitar para que possamos dar continuidade ao nosso trabalho.

— Como assim? De que costume você está falando?

— Desse que testemunhamos. Se uma pessoa morre devendo dinheiro e a família não tem condições de quitar a dívida, o credor tem o direito de dar uma surra no devedor.

— Mas ele está morto!

— Todos sabem disso. É uma forma de descontar a raiva e lavar a honra. Além disso, é preferível que eles batam no morto do que na viúva, não é mesmo?

_ * _


Fora de contexto

E para encerrar, uma estória trazida por uma de nossas leitoras mais assíduas. Pelo contexto é óbvio que foi protagonizada por um gaúcho, com grandes possibilidades de ter se passado no Rio Grande do Sul. Nomes e localidades foram alterados para preservar os envolvidos.

Vamos ao causo. 

Há alguns anos ocorreu um processo de modernização nos cemitérios das principais cidades gaúchas. O serviço foi entregue a concessionárias que trataram de introduzir melhorias com o intuito de oferecer um serviço de melhor qualidade e maior conforto aos enlutados em seus momentos de despedida dos entes queridos.

O fato é que o povo do interior, acostumado a lida rude do campo e pouco afeita as sutilizas da vida urbana, olhava com estranheza para essas mudanças e sentia certa dificuldade em aceitar algumas delas. Foi o que se passou com Afrânio, um gaudério mais grosso que dedo destroncado, ao se ver na obrigação de acompanhar o sepultamento de um tio da esposa num cemitério de Caxias do Sul. O defunto fora bem aquinhoado em vida e a família fez questão que a cerimônia fúnebre ocorresse em grande estilo.

O corpo foi velado numa capela finamente decorada com flores, mobiliada com poltronas confortáveis e todas essas coisas estranhas aos ambientes que Afrânio frequentava. Para ele, um banco de madeira forrado com pelego já estava de bom tamanho, mas enfim, a patroa insistira em vir e ele tentava se comportar a altura.

Na hora aprazada, o padre fez uma última oração e saíram todos em procissão para acompanhar o falecido até sua última morada. Afrânio seguia ao lado da mulher, meio distraído e com fome, quando viu uma estrutura de forma familiar no caminho. Admirado com todas as novidades que havia presenciado até aquele momento não teve dúvidas do que se tratava e lascou em alto e bom som:

— Mas bah tchê! Até churrasqueira esse cemitério tem! Que maravilha!!

Era o velário, lugar onde se acendem velas para as almas, o que explica a forma peculiar na qual fora construído.

As pessoas próximas acharam graça na confusão de Afrânio e seguiram em frente. Entretanto, sua esposa foi acometida por um ataque de riso incontrolável. Para tentar disfarçar, ela cobriu a boca e o nariz com a gola da blusa. Sem conseguir se segurar, ria convulsivamente, sacudindo os ombros e deixando as lágrimas rolarem. Sem saber o que fazer, Afrânio enlaçou a esposa pela cintura, visivelmente constrangido.

Uma das filhas do morto, que seguia ao lado do caixão, percebeu o burburinho e se virou para entender o que estava acontecendo. Ao ver Afrânio amparando a esposa banhada em lágrimas, aproximou-se do casal e passou o braço sobre os ombros da mulher no intuito de consolá-la. Olhou para Afrânio, sinceramente compungida, e disse:

— Nunca imaginei que a prima gostasse tanto assim do papai ...

Comentários

  1. Eu adoro relatos de pessoas comuns. O meu preferido foi o primeiro, de Júlio.
    Lembro que anos atrás achei um site com histórias do Paraná. Um acervo grande.
    Hoje não lembro mais qual o endereço da página.
    Também gosto muito do livro "Assombrações do Recife Velho", de Gilberto Freyre.
    Tem muitas histórias antigas do Recife.

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    1. O Júlio foi um menino muito querido que tive a oportunidade de conhecer. Infelizmente sua vida teve esse percalço e foi uma falta muito sentida por quem conviveu com ele.

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  2. Gostei dos três contos. Fiquei a imaginar se esse costume de bater no defunto devedor virasse rotina na cidade grande.

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