O homem de vermelho
Josias era um pão duro renomado. Sua fama se estendia além dos limites do
bairro onde morava, tal a sofreguidão com a qual tentava amealhar fortuna.
Tentava, porque além de sovina Josias era uma alma pobre em todos os sentidos.
Nunca arranjara emprego por se considerar bom demais para ser funcionário de
alguém. Nunca iniciara um negócio próprio porque a palavra trabalho não
fazia parte do seu vocabulário.
E tinha delírios de grandeza o Josias. Em sua imaginação não havia outro tão
sabido como ele próprio. Armava esquema sobre esquema para arrancar algum
cobre dos incautos, sem sucesso. Quem seria ingênuo o suficiente para confiar
em suas garantias? Corria atrás de quem tinha prestígio, dinheiro, ou de
preferência os dois, tentando fazer amizade. Até concorreu a vereador
convencido que a mamata seria farta. Concorreu, mas não se elegeu. Quem seria
tolo o suficiente para acreditar em suas promessas?
Era tão ofuscado por essa falsa ideia que fazia de si mesmo que nem se dava
conta da miséria em que vivia. Morava com a mãe, outra infeliz, que sustentava
o marmanjo com a pensão deixada pelo marido. O pecúlio em si não era pouco,
porém era quase que inteiramente desperdiçado para satisfazer os caprichos
daquela cria desnaturada.
Vez ou outra ela se queixava ao filho que estava cansada e perguntava quando
ele passaria a cuidar dela. Josias desconversava, iludindo-a com histórias
sobre sua última grande ideia para ficar rico.
Certa feita bolara um esquema infalível para faturar com a instalação de casas
de massagens para cães. Segundo ele não tinha como dar errado! Só não
funcionou porque ninguém quis ceder as cadelinhas para o estabelecimento de
duvidosa reputação e ele não tinha capital para comprar o plantel. Um "amigo"
ao qual tentara vender a ideia já nem retornava mais suas ligações.
Pelo que se sabe, sua última tentativa de enriquecer foi jogando na loteria.
Esperou o prêmio estar acumulado para investir o dinheiro do mês em apostas.
Até pediu que a mãe preenchesse uma das cartelas. Infelizmente a bolada saiu
para um apostador de outro Estado e Josias colocou a culpa do fracasso nas
costas da coitada, por não ter sabido preencher aquela única cartela
corretamente.
Como represália a incompetência da mãe em torná-lo milionário, Josias se
recusou a ajudá-la quando pediu para que a levasse ao banco para fazer uma
prova de vida. Ela ainda tentou argumentar sobre a importância de realizar
essa exigência protocolar, inutilmente. Então aconteceu o inevitável. A
previdência suspendeu o pagamento da pensão, deixando os dois completamente
sem renda. Josias considerou isso como uma afronta pessoal e maldisse a mãe
por não ser capaz de ir sozinha ao banco. Quem salvou o dia foi uma vizinha de
longa data, que sabia bem o filho que Josias era. Ela acompanhou a senhora até
uma agência bancária para poder provar que estava viva. Se é que se pode
chamar aquela existência miserável de vida. O gerente que as atendeu até que
foi simpático. Informou sorrindo que os pagamentos seriam retomados em três
meses.
Privado da única fonte de sustento e não tendo mais a quem recorrer, Josias
decidiu arriscar tudo num lance ousado. Já há algum tempo estava lendo, o
Josias. E não era um livro qualquer. Era um sobre magia negra, encantamentos,
invocações, enfim, sobre essas coisas pelas quais sua índole torta sentia uma
forte atração.
Em sua mente pervertida brotara a ideia de fazer um pacto com o Senhor das
Trevas. Estava convencido que em troca de sua alma conseguiria obter tudo o
que sempre sonhara: fama, fortuna, o amor de Isolde Maria - a filha da vizinha
- e até mesmo o cargo de vereador. Entretanto, por mais que quisesse, não
conseguia se armar de coragem suficiente para realizar o ritual de invocação e
arrumava mil desculparas para justificar sua covardia. Até que um dia ...
Estava Josias observando a casa em frente a sua pela fresta da janela da sala.
Fora atraído pelo alarido oriundo de uma altercação entre o morador e um homem
que batera a sua porta. Era um cobrador. Pelo visto o vizinho andara atrasando
alguns pagamentos e o resultado agora era esse. E o visitante fazia questão de
ser espalhafatoso ao extremo justamente para chamar a atenção de todos para o
deslize cometido pelo devedor. Uma lástima.
O espetáculo deliciava Josias, principalmente porque dessa vez o faltoso era
outro. Não ele. Sem o menor constrangimento, xingava secretamente o morador da
frente:
— Caloteiro sem vergonha. É isso que acontece quando se gasta sem controle.
Felizmente devo nada a ninguém!
— Estas certo disso?
Ao ouvir essas palavras Josias quase colocou o coração pela boca, pois
acreditava estar sozinho em casa - a mãe não contava. Ao se virar viu um
homem esguio, de antiquada elegância, vestindo um vistoso casaco vermelho,
sentado em sua poltrona preferida. Um aroma estranho pairava no ar. Se não
tivesse faltado as aulas de química teria saído dali correndo. O cheiro era
de enxofre.
— Quem é você?
— Estranho perguntares quem sou - disse com voz de barítono o misterioso
visitante.
— Afinal vens clamando pela minha presença já faz algum tempo.
Josias era mau caráter, não burro. Mal o estranho acabara de falar e ele
sabia exatamente com quem estava lidando. Olhou em volta em busca do auxílio
da mãe - para isso ela haveria de servir -, porém essa jazia mal acomodada
numa cadeira de plástico.
— Calma Josias. Ela está apenas dormindo. Deixe-a descansar um momento e
tratemos de negócios.
Convicto que sua hora finalmente chegara o desventurado filho de Eva ia
começar a tecer sua lista de reivindicações quando foi silenciado por um
simples gesto do Homem de Vermelho.
— Antes de iniciares tua arenga, saibas que tens bem pouco a oferecer.
— Como assim - balbuciou Josias. E a minha alma?
— Tua alma já é minha. É só uma questão de tempo.
— Por que?
— Pelas tuas ações em vida, teu destino após a morte é o Inferno meu rapaz.
— Mentira. Eu já li sobre gente que vendeu a alma e ganhou fortunas em
troca!
— É a lei da oferta e da procura Josias. Essas almas eram valiosas graças ao
seu elevado nível de pureza.
— Se é assim, o que queres comigo afinal?
— Estamos para começar uma grande queima de estoque - o Diabo riu de lado
achando graça nesse trocadilho perverso - e por isso estamos fazendo uma
promoção que talvez te interesse.
— Teu tempo de vida já está definido pelo Altíssimo, de modo que não podemos
alterá-lo. Entretanto, proponho o seguinte: te dou algo em troca e levo
apenas o que a mim interessa. Tu continuarás a viver aqui na Terra até que
se cumpram teus dias. O que achas?
Josias ia recomeçar a tecer sua lista de reivindicações quando novamente o
Homem de Vermelho lhe tolheu a palavra.
— Não peças o que não te posso dar. Sejas mais modesto em teus desejos e
farei o possível para atender-te.
Josias fez então algo que até então jamais fizera. Pensou na mãe e nas
dificuldades pelas quais estavam passando devido ao corte da pensão - sem
saber que o corte era apenas temporário. A ele pareceu que teria mais
chances de ser atendido se fizesse um pedido que revelasse algum altruísmo.
— Quero receber o suficiente para dar a minha mãe uma vida decente.
Disse Josias com voz firme, ao que completou mentalmente:
— E continuar usufruindo dos proventos dela, é claro!
Se o Homem de Vermelho tinha consciência das verdadeiras intenções do moço é
um mistério que perdura até hoje. Seja como for, proferiu solenemente:
— Que assim seja.
Dito isso sumiu envolto por uma névoa escura. Em meio a uma gargalhada
satânica Josias ouviu sua voz que dizia em alto e bom som:
— Está feito!
Ao sair de seu transe, D. Bete, a mãe de Josias, encontrou o filho encolhido
num dos cantos da sala com o olhar vazio e um fio de baba escorrendo pelo
canto da boca.
— Josias, o que houve meu filho?
Perguntava aflita, tentando trazer o filho de volta a razão.
— Fala alguma coisa!
— Mãe, eu tô sem alma ...
A partir desse dia Josias nunca mais foi o mesmo. Ficou apático, com o olhar
parado, repetindo a todo instante:
— Mãe, eu tô sem alma ...
Um primo, advogado, providenciou sua internação numa instituição pública de
tratamento de doenças mentais. Declarado oficialmente como incapaz, foi
aposentado por invalidez e passou a fazer jus a uma pensão que era entregue a
sua tutora legal, ou seja, sua mãe.
Curiosamente na mesma semana em que se deu a visita do Homem de Vermelho, o
gerente simpático ligou para avisar D. Bete que o bloqueio da pensão estava
suspenso e o montante retido já se encontrava disponível em sua conta.
Sem sequer ter noção do real motivo pelo qual finalmente estava livre do peso
morto que carregara até então, D. Bete rezava a Deus todos as noites,
agradecendo a Ele pelas graças concedidas em sua velhice e pedindo pela alma
do seu filho.
Muito bom. Se analisarmos quantos vivem assim e explorando idosos, não só os filhos mas também muitos que se aproveitam da carência deles.
ResponderExcluirEssa é uma triste realidade. A história fala de um filho, mas o mesmo se aplica aqueles que recebem benefícios indevidamente, aceitam propinas, malversam o dinheiro público ...
ExcluirPobre Josias!!!
ResponderExcluirEle nem pode reclamar porque recebeu exatamente o que pediu !
ExcluirJosias é um tipo de personagem envolvente pelas fraquezas dele.
ResponderExcluirVocê fica tentando advinhar qual a próxima que ele vai aprontar.
Parece que agora ele sossegou o facho. O mais triste dessa história é que o personagem é fruto de uma colagem de alguns tipos humanos com os quais tive o desprazer de conviver.
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