A Capela : um amor escrito nas estrelas

Segunda parte do conto A Capela - para ler a primeira parte clique aqui.


Graças as informações obtidas na transcrição do diário que encontramos na fazenda de D. Zelinha, pude dar início a uma série de pesquisas que ajudaram a compreender a intrincada, e trágica, história de Akil e Lourdinha. Essa parte do trabalho foi fácil porque a vida pública de alguns dos envolvidos está disponível em sítios da Internet dedicados a biografar personagens do passado. Apesar de não citarem os jovens amantes, o conteúdo ali obtido serviu para tecer o pano de fundo que ajudou a compreender as motivações que levaram os protagonistas a assumirem seus papéis. Os pormenores de maior interesse estão registrados no manuscrito, os quais trazem esclarecimentos fundamentais sobre a cronologia dos fatos, que de outra forma jamais seriam conhecidos. Nesse sentido, temos que agradecer a tia de Lourdinha, responsável pelos últimos apontamentos, escritos após a morte da menina. 

Com base no material recolhido, compilei um resumo que é o somatório dessas diferentes fontes, de modo a facilitar a compreensão dos acontecimentos.

Lourdinha era filha de José Pedro, primeiro e único Barão de Avelar, e Madame Louise Laurant, atriz francesa mais conhecida por sua beleza do que pelo seu talento. Segundo consta, o jovem José caiu de amores por ela durante o período em que permaneceu na Corte como estudante de direito. Ao herdar as posses do pai, voltou casado para assumir o controle dos negócios da família. Demonstrou ter um tino infalível para finanças. Em pouco tempo tornou-se proprietário de várias fazendas de café e senhor de um número considerável de escravos. Em seu obituário, foi descrito como um prócer da comunidade, homem de caráter e virtude incontestáveis. Curiosamente, em seu testamento legou bens e fortuna à caridade por não deixar descendentes.

Akil era filho de Naná, de quem se sabe apenas o que revelam as anotações, ou seja, que servia como mucama na casa do Barão.

Ambos nasceram em 1855. Akil era apenas um ou dois meses mais velho que Lourdinha. A relação entre eles começou com o precoce falecimento de Louise, devido a complicações pós-parto. Por ter parido há pouco, Naná foi chamada para ser a ama de leite da filha do patrão, a quem se afeiçoou de imediato e tratava como se fosse a irmã que seu filho não tinha.

Foram batizados no mesmo dia. Ela com o nome Maria de Lourdes, escolhido pela mãe, que era devota de Nossa Senhora. Ele, apesar de ser Akil para seus irmãos de cor, recebeu o nome de Paulo, o grande apóstolo da cristandade.

Por ser a babá da patroinha, Naná e seu filho gozavam de certos privilégios. Apesar de contrariado, o Barão tolerava essas generosidades com a criada por absoluta falta de opção. Viviam isolados naqueles confins - onde se dava por certo que Judas perdera as botas -, não havendo possibilidade de contratar alguém mais próximo de sua condição que pajeasse a criança e lhe ensinasse bons modos. Casar novamente estava fora de questão. A viuvez fechara em definitivo seu coração e ele agora se dedicava por inteiro a suas lavouras e criações de gado. Em mais de uma ocasião deixou claro que não teria outros filhos. Quando questionado sobre o motivo, respondia entredentes:

—  A que tive me deu desgostos suficientes para uma vida.

Os dois inocentes cresceram alheios aos arranjos sociais de sua época. O fato dela ser branca e filha do Barão não impediu que criasse profundos laços de afeição com Akil, que pelo simples fato de ter sido gerado por uma escrava era também escravo.

Maria Carolina - a tia -, havia se mudado para a Capital na mesma época que José Pedro. Ao contrário do irmão, manteve-se afastada da vida boêmia, preferindo dedicar-se ao estudo da música e da literatura, consideradas artes mais nobres que os sons profanos que brotavam das tavernas. Empregou-se como dama de companhia da esposa de uma figura proeminente do Império, tendo exercido essa função por vários anos. Pelo que se depreende da parte escrita por ela, por volta dos dez anos de idade Lourdinha dava mostras de ter herdado a beleza sedutora da mãe. Um diamante bruto, como lera na carta que seu irmão lhe enviara e pedia que voltasse para dar a filha um lustro de civilização, bem como para servir de exemplo de como deveria portar-se uma mulher de classe. Era evidente que o Barão estava preocupado com o rumo que a formação de Lourdinha estava tomando, cercada por capiaus rudes e ignorantes - palavras dele! Confiava à irmã a missão de torná-la apta a ser apresentada à alta sociedade para, obviamente, conquistar um pretendente a altura dos seus planos de grandeza.

Ao chegar à fazenda, encontrou um ambiente em nada semelhante aquele ao qual estava habituada a conviver na Corte. José Pedro estava diferente. Se tornara um homem arrogante, seco, rodeado por capitães do mato, capatazes e escravos, aos quais dedicava o mais profundo desprezo. Lourdinha era um bichinho do mato. A primeira e mais difícil tarefa foi convencê-la a usar sapatos. Comparado a isso, ensiná-la a ler e escrever foi fácil. Com o passar do tempo e muita paciência, Maria Carolina foi dando cabo de sua empreitada, até que  um dia olhou para sua pupila lendo na varanda e se deu conta que a transformara numa joia rara. A cena seria perfeita se aos seus pés não estivesse Akil, entalhando um São Benedito num toco de madeira quase tão escura quanto ele. Aquela visão lhe deixou perturbada, porque sabia que nada de bom resultaria daquela amizade.

Akil era um sonhador. Talvez por viver tão próximo da Casa Grande não se apercebia da posição a ele reservada na estratificação social da época. Ao completar quinze anos era um homem forte, bonito e apaixonado.

Nada escapava aos olhos diligentes de Maria Carolina. Apesar de estar ciente que os sentimentos de Akil eram plenamente correspondidos por sua sobrinha, queria acreditar que tudo não passava de ardores juvenis e que a vida se encarregaria de desfazer aquela parelha formada por dois seres de mundos opostos. Sempre que podia, designava o rapazote para obrigações que exigissem seu afastamento da casa, da fazenda e, por conseguinte, de Lourdinha. Precaução inútil. Se duas almas estão predestinadas a seguirem juntas, não há quem as possa separar. Os dois apaixonados sempre davam um jeito de se encontrar, muitas das vezes acobertados por Naná, que sofria calada por temer o que aconteceria com seu filho caso o Barão tomasse conhecimento do que se passava sob suas barbas. Atendendo suas súplicas para que fossem cuidadosos, a dupla fizera da laranjeira seu ponto de encontro. O local era perfeito por ser afastado e oculto dos olhares vigilantes da tia. Ali eles se entregavam a um amor puro, ora perfumado pelas flores, ora alimentado pelas frutas que ela tão generosamente oferecia.

Certo dia Akil avisou a mãe que ele e Lourdinha pretendiam se casar. Condoída pela ingenuidade do filho, respondeu que o casamento era impossível. 

—Por que seria? - Perguntou inocentemente o apaixonado.

Naná compreendeu que Akil estava cego pelo amor e não teve a coragem necessária para dizer-lhe a verdade. Ao invés disso, inventou um pretexto que julgara intransponível:

— Porque nesse fim de mundo não há uma igreja em que se possa realizar tal cerimônia!

Akil interpretou as palavras da mãe ao pé da letra e tomou a decisão que selou o seu destino e o de Lourdinha: construir, com as próprias mãos, uma capela na qual pudessem sacramentar a união. E o lugar não podia ser outro que o topo da colina onde eles trocaram seu primeiro beijo, próximo ao pé de laranjeira.

Por ser filho da mucama, o jovem escravo estava livre do trabalho na lavoura. Seus préstimos eram requisitados em funções de maior complexidade, entre elas serviços de alvenaria, marcenaria e carpintaria. Era particularmente hábil na arte da cantaria, sendo capaz de esculpir, com precisão, os blocos extraídos de uma pedreira próxima de modo a atender qualquer necessidade. Concretizar o projeto que brotara em sua mente era fácil para esse habilidoso construtor. Orientado pela mãe, para evitar suspeitas, manteve sua rotina habitual durante o dia e dedicou-se à erguer a Capela  ao entardecer, antes que a escuridão da noite caísse completamente.

Apesar do cuidado que tiveram os envolvidos em manter segredo sobre as atividades crepusculares de Akil, inevitavelmente Maria Carolina tomou conhecimento do que estava se passando. A princípio ela estranhou a dedicação do jovem e julgou tratar-se de, quem sabe, o pagamento de alguma promessa. Pressentindo que pudesse ser algo mais que isso, acompanhou discretamente a evolução da obra, até descobrir para qual finalidade estava sendo erguida. Aflita, correu ao irmão e relatou o que sabia.

A indignação pelo desejo da filha de se unir a um escravo era tão insuportável que José Pedro colocou em prática um plano de vingança tão violento quanto sádico. Pediu a irmã que mantivesse o mais absoluto sigilo sobre o assunto. Para todos os efeitos, tanto ele quanto ela ignoravam os planos dos pombinhos. A partir de então, aguardou pacientemente que Akil desse por terminada a Capela para dar uma lição a todos que viviam ao seu redor.

No dia em que deveria ocorrer a cerimônia de casamento, o Barão ordenou a seus jagunços que trouxessem os noivos a sua presença. Lourdinha apareceu em seu singelo vestido branco, enquanto Akil envergava sua melhor camisa de algodão e uma casaca puída, tirada de algum baú esquecido no sótão. A estranha comitiva seguiu rumo à Capela em compungido silêncio. A mais tranquila era Maria Carolina, que imaginava que seu irmão daria um susto na filha e um corretivo no moleque atrevido. Ela arrependeu-se desse engano até o fim da vida.

Ao chegarem na colina, José Pedro começou a falar, furioso. Fez um discurso sobre a importância de se respeitar a ordem natural das coisas, que cada um devia conhecer o seu lugar e outros arrazoados do gênero. Ele próprio fez questão de tirar, e rasgar, a casaca de Akil. Depois, mandou que fosse amarrado à laranjeira e ordenou ao capataz que o açoitasse. Lourdinha gritava desesperada, em vão. Seu pai tinha ouvidos apenas para o sibilar da chibata e os gemidos, cada vez mais fracos, do miserável que se esvaia em sangue. A certa altura mandou que parassem.

— Não queremos que ele morra - disse sarcasticamente e arrematou:

— Pelo menos não ainda.

Medindo as palavras, prosseguiu: 

— Pensei bem sobre o caso e cheguei à conclusão que devo dar a vocês o que tanto querem. Ao negro, uma vida de branco. À branca, uma vida de preto. Não é para isso, afinal, que estão se casando?

Mandou que levassem Akil para o interior da igreja, no que foram seguidos por todos, com tia e sobrinha a frente. Os enfeites carinhosamente preparados por Naná haviam sido arrancados e pisoteados. A estátua de São Benedito, esculpida por Akil, estava jogada a um canto, partida em duas. Uma das lajes do piso, a maior, estava levantada e a terra escavada, formando uma cova rasa.

Maria Carolina, antevendo as intenções do irmão, bem que tentou impedir o desatino que veio a seguir. Infelizmente era demasiado tarde para Akil e só restou a elas assistirem o desfecho cruel por tanto tempo acalentado pelo Barão.

Colocaram o supliciado de pé na cova, de mãos amarradas, amparado por dois jagunços.

— Tirem-lhe as calças - ordenou José Pedro.

Ato contínuo, sacou de sua faca e, com um golpe rápido, emasculou Akil na frente de todos. A seguir deitaram-no ao chão e selaram a sepultura com a pedra que havia sido deslocada.

Maria Carolina, estarrecida, falou ao irmão:

— Você enlouqueceu? Por que fazer isso com o garoto?

José Pedro riu debochado:

— Não era isso que ele queria? Só gente de bem é enterrada dentro de igreja.

Agarrou Lourdinha pelos cabelos e limpou a lâmina da faca no seu ombro, maculando de vermelho a brancura do vestido de noiva.

— Agora é a sua vez, desnaturada - vociferou enquanto a arrastava de volta à Casa Grande. Lá chegando, ordenou ao Capitão do Mato que a pusesse a ferros e prendesse na senzala.

— Já que gostas tanto de negros, fica com eles - bradou, sentindo-se triunfante, enquanto via a própria filha desaparecer no interior do aposento destinado aos escravos.

Ao final dessa cerimônia macabra, Maria Carolina foi até Lourdinha para consolá-la. Já era tarde. O choque da brutalidade daquele dia, que deveria ter sido o mais feliz de sua vida, lhe roubara a razão. Seus olhos estavam inertes. Ela olhava e não via. Tentava articular as palavras e não conseguia. Ao sair, a tia deu uma última olhada para a sobrinha e a viu fazendo um gesto como quem escreve. Foi aí que teve a ideia de trazer-lhe o diário.

Naquela mesma noite, antes que o irmão desse cabo de tudo que pertencera a filha, pegou a caderneta e alguns lápis e os entregou à menina. Disse a ela para continuar escrevendo, como forma de manter vivos os poucos traços de sanidade que lhe restavam.

O Barão a manteve presa até que se consumissem seus dias sobre a terra. Num raro ato de benevolência, permitiu que saísse do cativeiro por algumas horas a cada dia, sempre após o pôr do sol. Maria Carolina a acompanhava nesses passeios noturnos e fazia de tudo para trazê-la de volta a razão. Lourdinha morreu no início do próximo outono, sem que tivesse completado 19 anos de idade.

Seu corpo foi carregado em uma rede até o Cemitério dos Cativos, porque seu pai não permitiu que ela fosse enterrada junto a mãe, no jazigo da família. Muito abalada por tantas perdas, Naná pediu a um de seus companheiros que esculpisse uma lápide com o epitáfio "nosso amor está escrito nas estrelas" e o nome do casal. Durante o velório, colocou na cabeça da defunta uma tiara feita com as flores da laranjeira da colina. Minutos antes, ao tecer o ornamento, rogara uma praga para que a árvore não mais florisse ou frutificasse até que aquela injustiça fosse reparada.

Na última parte do relato, Maria Carolina fez questão de deixar registrado que não compactuava com as barbaridades perpetradas pelo irmão. Nas entrelinhas, talvez numa tentativa de justificar as atrocidades por ele cometidas, sugere um detalhe perturbador. O comportamento frio e distante que manteve em relação a filha - desde a mais tenra idade -, bem como a fúria que descarregou sobre ela e Akil, se originaram na crença de que a menina fora a responsável pela morte da esposa. Também disse que estava profundamente arrependida e desgostosa da vida e que entregaria o diário aos cuidados de Naná, com instruções para escondê-lo em lugar seguro.

De posse dessas informações retornei a fazenda, onde encontrei D. Zelinha atazanada com a organização de uma festa junina. Com ou sem assombração a vida continuava. As contas não paravam de chegar e era preciso faturar para manter o hotel em funcionamento. 

— Pelo visto está tudo bem por aqui - brinquei com ela.

— Como está nossa amiga?

Feliz em me ver, veio até mim, deu um abraço apertado e disse um pouco preocupada:

— Precisamos conversar.

Foi na barraca de pescaria que nos atualizamos mutuamente. Entreguei a ela o diário e a transcrição. Expus abreviadamente o que descobrira e escutei atentamente o que ela tinha a contar:

— Lourdinha está cada vez mais apática. E o pior, ao sair do estado de apatia fica agressiva. Dia desses atacou um dos cachorros e o deixou bastante machucado. Por que será?

— Deve ser a data. O casamento deles deveria ter ocorrido no dia 12 desse mês.

— Dia 12 é no próximo domingo. Isso faz alguma diferença?

Fazia e muita, mas preferi mudar o rumo da conversa para o outro personagem dessa história:

— Como está a Capela?

— Praticamente pronta.

— Ótimo. Não temos um minuto a perder. Ao entardecer irei até lá para conversar com Akil e sondar a situação em que ele se encontra.

O pôr do sol daquele dia foi magnifico. Cheguei um pouco antes para apreciar o espetáculo, encostado ao tronco da laranjeira. Ao iniciar a hora mágica, escutei o repique de um martelo vindo de dentro da Capela. Akil dera início aos trabalhos da noite.

Aproximei-me devagar e parei no átrio, ao lado de uma pequena pia, recém instalada, destinada a água benta. Ao fundo, próximo ao altar, um vulto agachado, penava para acomodar uma laje de granito.

— Parece pesada. Deixa que te ajudo.

Akil levantou o rosto e arregalou os olhos. Devia estar se perguntando quem era esse branco que surgira do nada e ainda se dispunha a ajudá-lo. Assentamos a laje, ajustamos e só então me apresentei. Não disse a ele tudo que sabia, pois não queria assustá-lo. Para ele o tempo simplesmente parara e a vida seguia seu curso normal, só que no século XXI. Desconversei, dizendo que era amigo de Lourdinha e estava ali a pedido dela.

Enquanto falava, examinava as condições lastimáveis em que se encontrava aquela alma, aprisionada no tempo e no espaço. Pelos braços e pelo tronco - ele estava sem camisa - eram visíveis as marcas do açoite. Um afundamento no crânio sinalizava que, ao soltarem a pedra sobre ele, seus algozes haviam suavizado seu sofrimento involuntariamente ao tornarem sua morte praticamente instantânea. A calça de algodão grosseiro que usava estava imunda e rasgada em várias partes. Uma mancha escura se espalhava da cintura aos joelhos. Apesar disso, tinha o semblante sereno, ao contrário de sua desafortunada consorte.

Ao ouvir o nome da noiva, Akil ficou ainda mais radiante. Animado, conversava como se fossemos velhos conhecidos. Confessou estar nervoso pelo casamento que se aproximava, mas que também estava feliz por ter conseguido concluir a construção da capela a tempo. Faltava apenas uma coisa:

— Não consigo encontrar o São Benedito que esculpi especialmente para essa ocasião.

Olhei para o nicho vazio à direita do altar, a seguir apontei para o da esquerda.

— E o outro, para quem seria?

— Pedi a Lourdinha que escolhesse. Ela ainda não me disse.

A alegria contagiante do moço reforçou minha convicção de que fizera bem em ocultar-lhe a verdade. Seria inútil. A noiva estava cega pela dor e ele pela euforia do sonho a se realizar. Corríamos o sério risco de ter de enfrentar duas entidades possuídas pela raiva caso não conseguissem resolver suas pendências dentro do prazo previsto.

Afastei esses pensamentos sombrios e dediquei total atenção a Akil. Continuamos nossa prosa até o dia raiar. Ao tomar o rumo da pousada tinha um plano em mente. Um no qual a fantasia suplantava a realidade.

Passei um cortado para convencer D. Zelinha a aceitar minha ideia. Na falta de opção melhor, ela acabou por ceder e demos início aos preparativos. A festa junina estava marcada para domingo e tudo tinha que estar pronto antes dos convidados chegarem. No sábado a tarde, ela e uma das copeiras enfeitaram a Capela com fitas brancas e ramalhetes de flores do campo. No nicho da direita, colocamos uma estátua de São Benedito. No da esquerda, a de Santo Antônio, o padroeiro dos enamorados. 

Coube a mim e ao motorista a parte mais dolorosa desse mister. Era preciso ter certeza de que cada detalhe estivesse correto. Não havia margem para erros. Pedi que os demais deixassem o recinto e tratamos de levantar aquela única pedra que os caçadores de tesouro deixaram no lugar. Sob ela, confirmando minhas suspeitas, jaziam os restos mortais de Akil. Pensando em como as lendas começam, comentei:

— Parece que finalmente desenterramos aquilo que o Barão escondeu.

Meu ajudante improvisado torceu o nariz e perguntou:

— E agora?

— Agora damos um pouco de dignidade ao que sobrou desse desafortunado e abrimos espaço para mais um.

Acomodamos os despojos de Akil numa caixa, devidamente identificada, a qual depositamos num leito de tijolos para evitar o contato direto com a umidade do solo. No dia seguinte pela manhã, bem cedinho, tomamos o rumo do Cemitério dos Cativos e exumamos Lourdinha. Enquanto preparávamos os ossos para o transporte olhei em volta curioso. O motorista percebeu e perguntou o que eu estava procurando.

— Lourdinha. Julguei que ela estaria aqui. Pelo visto deve estar se aprontando para mais tarde.

Meu parceiro de empreitada ouviu sem entender, afinal estávamos com ela nas mãos! Nem em sonhos ele desconfiava que a versão fantasma dela assombrava a propriedade. 

O próximo passo foi levá-la para a Capela e colocá-la na companhia de seu amado. Cobrimos as duas urnas com uma só mortalha. Junto a eles, deixamos a lata de folha de flandres, com o diário, lacrada com cera e protegida por uma embalagem fechada a vácuo. A laje selou a cova. Sobre ela D. Zelinha havia mandado gravar previamente o epitáfio que encontráramos na campa solitária do primeiro túmulo de Lourdinha. Dessa vez de forma legível.

O arraial daquele dia foi animado. As festas da fazenda eram famosas e atraiam muita gente. Encontrei D. Zelinha num canto, secando uma furtiva lágrima. Entre uma fungada e outra, revelou a origem de tanta emoção:

— É quase uma festa de casamento. Só que os noivos estão mortos há mais de cem anos e os convidados nem sabem que eles existem ...

Achei graça, mas tive que concordar com ela.

Ao final do dia deixei a balburdia dos festejos para trás e tomei o rumo da colina. Precisava verificar se tudo sairia conforme o planejado. Como anteriormente, seguia com meu peito oprimido por um sentimento inexplicável. Dessa vez era mais ansiedade que mágoa. Queria chegar antes do pôr do sol para apreciá-lo mais uma vez. Sentei-me no chão e apoiei as costas no tronco da laranjeira centenária. No momento em que a hora mágica estendeu seus tons dourados sobre a paisagem, uma silhueta conhecida emergiu e se posicionou abaixo do arco das portas da Capela. Era Akil, que aguardava tranquilo a chegada de sua amada. Demorou um pouco, o suficiente para que eu começasse a ficar nervoso, mas ela apareceu. Veio pelo mesmo caminho, errática e vaporosa.

O luzeiro começava a brilhar no céu quando ele estendeu a mão para recebê-la, como se nada de mal houvesse acontecido. Fiquei paralisado, imerso na mais profunda paz, admirando o encontro das duas almas por tanto tempo e tão tragicamente separadas. Ao acolher a mão da amada na sua, uma fulgurante transfiguração iluminou o topo da colina. O vestido da noiva, antes andrajoso, estava agora imaculadamente branco. A coroa parecia feita de flores frescas. As marcas nos pulsos haviam sumido. Akil, por sua vez, tinha as feições reconstituídas. O ferimento na cabeça sumira. Vestido com esmero, envergava sua casaca com orgulho. Sob a luz das estrelas eles receberam as bênçãos do firmamento. Antes de partir para sua lua de mel celeste, se viraram para mim e sorriram, como a dizer adeus e obrigado. Nesse instante o vazio da noite foi tomado por uma suave fragrância. Olhei para cima. Nos ramos da velha árvore surgiam botões que não tardavam em abrir-se. A laranjeira estava em flor. 

Comentários

  1. Nem mesmo a morte pode acabar com o verdadeiro amor!

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  2. É verdade! O amor é o sentimento mais poderoso que podemos experimentar na vida, ou quem sabe, depois dela.

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  3. Muito boa essa segunda parte. Do meio pro fim o ritmo acelerou bastante, e a escolha das palavras foi precisa. Destaque pra cena em que o Barão pega os dois. Dramaticidade à flor da pele.

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  4. Muito obrigado!! O tempo estava se esgotando e o ritmo do conto acompanha esse sentimento de urgência dos protagonistas ;)

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