A capela : noiva fantasma


A maneira como se deu o desfecho do caso de Camila (para ver Amor de mãe : o jardim dos condenados, clique aqui) trouxe uma paz de espírito que não experimentava há anos. Estava aliviado e feliz por ela ter conseguido encontrar seu caminho, deixando para trás os desgostos que enfrentara enquanto viva. Essa paz interior foi acompanhada por um período de relativa tranquilidade nas solicitações de ajuda. Por experiência sabia que a calmaria não duraria para sempre. Decidi aproveitar a oportunidade para descansar e me dedicar ao meu passatempo favorito: a fotografia.

Antes que minhas habilidades paranormais aflorassem e se tornassem conhecidas, costumava vagar pelo interior do Rio e de Minas em busca de paisagens e outros motivos que não o frenesi da vida urbana. Foi durante um desses passeios que encontrei, escondida nos campos de um hotel fazenda no Vale do Café, uma antiga capela relativamente bem conservada. Estava praticamente intacta, faltando apenas alguns detalhes de pouca importância. Ninguém soube dizer se ela não fora concluída ou se as falhas eram decorrentes da falta de manutenção associada ao desgaste natural. O importante é que rendeu uma bela foto, com a qual conquistei um honroso terceiro lugar num concurso bastante disputado.

Embalado por essa lembrança - e sem desconfiar do que iria encontrar -, decidi retornar ao hotel fazenda para curtir o merecido descanso e fazer novos registros da velha capela.

Para mim é sempre um prazer deixar o tumulto da capital e respirar o ar tranquilo das pequenas cidades interioranas. Num piscar de olhos estava ao volante, acompanhando a lenta transformação das paisagens que vislumbrava através do para-brisa. Pouco menos de uma hora após ter passado pela entrada que dá acesso a Valença, avistei a porteira que indicava o caminho a seguir. Fui direto para a recepção, fazer o registro e tomar um cafezinho coado na hora - cortesia muito apreciada, diga-se de passagem. Como era cedo, peguei a câmera e fui dar uma volta pelos arredores. Lembrava bem da trilha que deveria percorrer. Caminhava com deliberada calma, atento aos detalhes do ambiente. A igrejinha fica no alto de uma pequena colina, próxima de uma laranjeira que - segundo dizem - é anterior as lavouras de café que se espalharam por aquelas terras desde o final do século XVIII. Ao avistar meu destino, tentei apressar o passo. Uma série de escavações, aparentemente feitas ao acaso, me obrigou a ziguezaguear pelo terreno, diminuindo a cadência da marcha. Ao chegar, percebi que a quantidade de buracos era maior em torno e até mesmo dentro da capela. Partes do piso de pedra haviam sido arrancados e largados displicentemente. Nem o altar escapara da ação dos vândalos. O tampo da mesa estava faltando e o suporte reservado ao sacrário estava caído ao seu lado.  Registrei os estragos com facilidade, graças a luz farta que entrava por uma das paredes laterais, que estava pela metade. Ao sair, tirei fotos da parte externa e retornei ao casarão que fazia as vezes de hospedaria.

Terminado o jantar, permaneci no refeitório. Era um salão amplo, aconchegante, decorado com móveis antigos. Instalei-me próximo a lareira - fazia frio naquela noite -, liguei meu laptop e transferi as fotos da câmara para o computador. Enquanto revisava a produção daquela tarde, a dona do hotel se aproximou e ficou parada atrás de mim, olhando intrigada as imagens.

— Olá - disse ela. - Essas fotos são de hoje?

— Sim. Voltei de lá há pouco. Por que?

Por sua hesitação, notei que alguma coisa a estava perturbando, só não percebia o que poderia ser. Nada de errado havia no que estávamos vendo. Eram cenas simples que mostravam uma pequena igreja em ruínas. Por fim ela buscou uma cadeira e sentou ao meu lado. Pediu que eu repassasse as imagens, ficou absorta por alguns instantes e por fim desabafou:

— Essa parede lateral não estava de pé na última vez em que estive lá, há uns três meses. E alguém começou a reconstruir o altar ...

— Estão reformando a capela? Que maravilha! 

— O senhor não entendeu. Até onde eu sei, ninguém tem autorização de mexer nela desde que os caçadores de tesouro quase a derrubaram.

— Isso explica a buraqueira que encontrei por lá - pensei com meus botões.

— Então a senhora não tem conhecimento de qualquer projeto de restauração do local - raciocinei em voz alta.

— Exato. Quem quer que esteja fazendo isso não tem minha autorização, muito menos dos órgãos competentes.

Explicou que era preocupante saber que um desconhecido estava invadindo seus domínios, mesmo que tivesse boas intenções. Além disso havia outra questão. Que interesse teria o restaurador anônimo em realizar uma obra da qual não obteria proveito?

— Quem iria gastar dinheiro com aquilo? - Perguntou aflita, como se eu soubesse a resposta.

Senti um arrepio percorrer minha coluna de alto a baixo. Foi com algum esforço que reprimi o pressentimento que me assaltara. Dei um longo suspiro e perguntei, tentando parecer natural:

— O que a senhora sabe sobre a origem dessa capela?

— Pouco, na verdade. Ela já estava aqui na época em que meu pai comprou essas terras. Isso foi há uns cinquenta anos, aproximadamente. Na minha infância, era onde eu mais gostava de brincar. Dizem que fui uma criança sapeca. Mais de uma vez me escondi dentro dela para escapar de minha mãe, que me perseguia com o chinelo na mão.

— É uma construção sólida - continuou -, feita de pedras assentadas com argamassa. O que a torna bem diferente das casas de taipa daquele período. Quem a construiu o fez de modo que durasse uma eternidade.

— Se era tão forte, por que a parede caiu?

— Não caiu. Foi derrubada!

D. Zelinha, esse era seu nome, contou então o que acontecera. Alguém, sabe-se lá por qual motivo, colocara na cabeça que havia ouro enterrado em suas terras. Como esse tipo de lorota circulava com certa frequência, não chegava a ser surpresa invadirem o local em busca de riquezas escondidas. 

— Meu pai contava que foi preciso reformar completamente a casa antes dele e minha mãe se mudarem para cá. Havia buracos em praticamente todas as paredes, do piso ao sótão. Nem a antiga senzala, localizada abaixo da cozinha, escapou. Se algum dia houve dinheiro escondido aqui, posso garantir que não há mais!

A despeito de nunca terem encontrado nada além de pedras e lixo centenário, os aventureiros continuavam tentando a sorte. Alguns pediam permissão, outros não. E assim, de tempos em tempos, os campos apareciam revirados pelas escavações. Quem as fazia tinha pressa e não as cobria de terra novamente, aumentando os custos de manutenção da fazenda.

— Eles sempre procuram em torno de pontos relevantes, como uma pedra ou uma árvore, que poderiam servir de referência no caso do dono dos patacões necessitar reaver suas economias. Da última vez, escolheram a colina da capela. Começaram a cavar em volta da laranjeira e a seguir atacaram a construção. Não satisfeitos em levantar as lajes do chão e quebrar partes do interior, derrubaram a tal parede na ânsia de encontrar algo escondido nas fundações. Fiquei tão indignada que chamei a polícia. Os vândalos se foram, deixando as coisas do jeito que o senhor as encontrou.

Observei que se continuassem cavando em torno das raízes poderiam ter matado aquela árvore mais que centenária, ao que ela retrucou:

— Não faria muita diferença. Até onde eu sei, ela não floresce desde que me conheço por gente. 

Devido ao adiantado da hora e por ser o assunto desconfortável para minha anfitriã, aleguei cansaço, me despedi e fui para meu quarto. O que descobrira naquela noite era apenas a ponta do iceberg. Ao colocar minha cabeça no travesseiro sabia que minhas férias haviam acabado.

Aproveitei a manhã do dia seguinte para aprofundar meus conhecimentos sobre as origens do cultivo do café na região, sem encontrar informações dignas de nota a respeito do lugar aonde estava hospedado. Na hora do almoço, pretendia perguntar a D. Zelinha sobre o assunto. Ela não aparecera durante o café da manhã. Agora, ao meio-dia, surgia abatida, como se tivesse passado mal durante a noite. Esperei o movimento dos hóspedes diminuir para ter com ela. 

— A senhora está bem? Parece cansada.

— Não consegui dormir direito. Alguma coisa andou fazendo confusão no pátio. O senhor não ouviu?

— Meu quarto fica na ala mais afastada. Não tinha como ouvir. Os garimpeiros fantasmas novamente?

Ela arregalou os olhos e mordeu o lábio, nervosa.

— Quem dera! O senhor quase acertou ...

Aquelas reticências aguçaram minha curiosidade. Não por acaso introduzira a palavra "fantasma" na conversa. 

Uma das copeiras trouxera pudim como sobremesa. Pedi um café e fiquei observando D. Zelinha lutando para não derrubar um pedaço tremelicante da colher. Por fim ela desistiu, pousou a mão sobre a mesa, me olhou nos olhos e falou com aquele tom de voz que eu já ouvira centenas de vezes.

— O senhor parece ser um homem sensato. Vou lhe contar uma coisa. Por favor não espalhe. Tenho medo que as pessoas não compreendam o que está acontecendo.

— E julguem que a senhora está perdendo o juízo, não é isso?

Antes que ela pudesse esboçar qualquer reação, fiz um resumo de minhas atividades nos últimos meses e concluí com um sorriso meio encabulado:

— Em assim sendo, podes estar certa de que acreditarei no que quer que seja que a senhora viu, pressentiu ou presumiu que tenha acontecido.

Não sei se ela confiou em mim de imediato. O fato é que não tinha com quem dividir o fardo que carregava e precisava desabafar.

Tudo começara na primeira quinzena do mês passado. Em mais de uma ocasião a cozinha amanhecera revirada. Panelas pelo chão, louça quebrada, geladeiras abertas. Uma confusão medonha. De início ela se recusara a acreditar que seus funcionários não estavam envolvidos. Pensava ser vingança de alguém ressentido ou algo do gênero. Por fim, numa noite mais gelada que o normal, descobriu a identidade do vândalo de forma inesperada. Era tarde e ela pretendia esquentar água para beber um chá antes de dormir. Ao passar pelo refeitório, se deparou com a origem do problema flutuando na passagem que leva para a sala de jantar - um recinto que reproduzia o estilo de vida dos moradores no auge do ciclo cafeeiro, preservado como uma atração para os hóspedes.

— Senti uma sensação estranha. Estava apavorada e indignada ao mesmo tempo. Não satisfeita em atacar a despensa ela se dirigia aos armários onde guardamos os serviços de porcelana trazidos da Europa pelo Barão em pessoa!

Dei uma rápida olhada no cômodo contiguo pela larga porta de madeira que comunicava os dois ambientes. Os armários estavam intactos.

— Ela quem?

— Eu não sei.

— E como ela é?

— Parece uma moça jovem, na faixa dos vinte anos, de cabelos longos e escuros. Desgrenhados. 

— Conseguistes ver o rosto?

— Sim. É com ele que sonho todas as noites. Sua expressão é uma mistura de raiva, tristeza e desespero.

— Algum outro detalhe?

— Parecia estar usando um vestido de noiva.

— E como reagiu ao lhe ver?

— Ela estava mais ou menos por ali - D. Zelinha apontou para um ponto próximo à porta de madeira -, de costas para mim. Ao sentir minha presença,  assumiu uma postura agressiva e virou rapidamente. Ao me ver, demonstrou surpresa e simplesmente desapareceu no ar. A partir de então parou com a quebradeira e raramente entra na casa. Agora, costuma passear pelo pátio ou pelos arredores, assustando a cachorrada que não para de latir até que despareça. Tenho recebido várias reclamações dos clientes por causa do barulho.

— Algum hóspede a viu?

— Não. Nem os empregados.

Aparições seletivas nunca são um bom sinal. Quando decidem se manifestar para alguém específico é por algum motivo muito forte. Contudo, para saber quais as intenções da moça desgrenhada seria necessário falar diretamente com ela. Para aquele dia, havia planejado uma incursão noturna a capela, pois pelo visto o turno do mestre de obras misterioso só começava após o crepúsculo. Entretanto, o relato que acabara de ouvir mudou meus planos por dois motivos. Primeiro, que o comportamento da aparição indicava pendências a serem resolvidas no plano material e isso poderia representar um risco para a dona da pousada. Segundo, que duas manifestações inexplicáveis no mesmo espaço, ao mesmo tempo, não eram coincidência. Havia uma conexão terrivelmente óbvia entre o aparecimento de uma noiva raivosa e uma capela capaz de se autorregenerar. Essa não foi a primeira vez que o acaso me pregou uma peça, por isso sentia-me afortunado por poder colaborar para a elucidação de um caso que prometia ser complicado.

Combinei com D. Zelinha que mais tarde faríamos uma vigília para tentarmos um contato com o ente que a estava assombrando. Achei melhor não mencionar a correlação que havia percebido entre os acontecimentos para não alarmá-la ainda mais. Ter alguém com quem conversar sobre o assunto pareceu acalmá-la. Ao sair da mesa, pude vê-la empunhando a colher com mão firme, saboreando um generoso pedaço de pudim. 

Dali segui direto para a colina. O trajeto permanecia tão bucólico como sempre fora. Infelizmente meu estado de espírito não permitia apreciar o passeio como nas ocasiões anteriores. Desde que tivera o pressentimento, uma sensação desagradável se instalara no meu peito. Era como se alguém compartilhasse comigo uma mágoa dolorida, profundamente arraigada no fundo da alma. Apesar de saber que esse sentimento não me pertencia, tinha dificuldades em lidar com ele devido a sua intensidade. Quem quer que o estivesse compartilhando, sofria genuinamente uma dor da qual não conseguia se desvencilhar. Curiosamente, conforme ia me aproximando do cume o mal-estar ia diminuindo. Ao passar pelo átrio da igrejinha, nem lembrava mais dele.

Uma rápida inspeção comprovou a diligência com a qual o pedreiro desconhecido trabalhava. A meia parede recebera um acréscimo considerável e estava na altura do teto. No centro, uma abertura revelava uma janela. Na ponta próxima a nave, um recuo indicava que ali ficaria um nicho - em frente a outro que existia na parede oposta. Certamente um espaço reservado aos santos de devoção do construtor. O altar continuava do mesmo jeito que antes, tal como o suporte do sacrário, dando a entender que aquela parede era a prioridade do momento. As lajes do piso também continuavam fora do lugar e era preciso cuidado ao caminhar para evitar uma queda. Aproveitei que a maior delas era plana e grande o suficiente para acomodar a mim e o tripé para montar sobre ela o equipamento. A luz não era mais tão abundante e não gosto de fotografar com flash. Fiz algumas fotos para registrar a evolução da obra e, ao desmontar as tralhas, perguntei-me por que aquela pedra era a única assentada corretamente. Conjecturei que talvez a polícia tenha chegado antes que os caçadores pudessem removê-la. Ou talvez eles a tenham removido e colocado de volta por medo. A probabilidade disso ter acontecido era enorme e eu me perguntava o que - ou quem - eles teriam desenterrado. No momento eu ignorava os acontecimentos escabrosos que haviam ocorrido ali, mas tinha certeza que, ao levantar aquela pedra, alguém tinha despertado o responsável pelas ocorrências inexplicáveis. Deixei as divagações de lado e tomei o rumo da casa grande. Tínhamos uma vigília pela frente eu queria estar preparado.

A noite estava alta no momento em que o primeiro cachorro deu sinal. Logo uma sinfonia de latidos e uivos quebraram o silêncio, sinalizando que a visita que aguardávamos ansiosos havia chegado. Antes de descer, nos aproximamos de uma das janelas da cozinha para observar o que se passava logo abaixo. Deslizando suavemente sobre o terreiro, uma jovem vestida de branco apreciava seu passeio noturno com naturalidade. Nada nela soava estranho. Se não fosse pela suave luminosidade que emanava - e por se mover sem tocar o solo - pensaria ser de carne e osso.

D. Zelinha estava abalada e perplexa. Seu encontro anterior fora traumático e ela temia por sua segurança. Pedi a ela que não fizesse movimentos bruscos e observasse sem dizer palavra. Ela concordou, aliviada, e descemos. A princípio a entidade permaneceu como estava. Aparentava não se aperceber de nossa presença ou nos ignorava solenemente. Esperei alguns minutos, durante os quais pude observá-la dos pés à cabeça. Jamais vira uma manifestação como aquela, tão vigorosa. Dava a impressão de ser sólida! Os cabelos eram longos, escuros e estavam em desalinho. Trazia uma coroa de flores de laranjeira que caia displicentemente sobre a testa. O vestido de corte simples era inegavelmente de noiva. Estava amassado, coberto de pó e roído de traças. Uma mancha vermelha no ombro prendeu minha atenção. Subitamente ela me encarou. Aquela sensação desagradável que sentira anteriormente atravessou meu peito. Pela expressão de seu rosto deduzi ser alguém preso a um devaneio decorrente de uma mágoa muito forte, capaz de levá-la à loucura que seu olhar vazio deixava transparecer. Havia marcas em seus pulsos, as quais não fui capaz de identificar de imediato.

Um brilho de lucidez perpassou seus olhos e veio até mim. Parou a um palmo do meu rosto e ficou me olhando divertida. D. Zelinha recuara e nos observava de longe, ao pé da escada que levava ao interior da casa.

— Olá - disse eu -, qual o seu nome?

Respondeu num sussurro:

— O dia já se anuncia. Tenho que voltar antes que ele perceba.

Nesse ponto ela levantou a cabeça e rodopiou no ar, buscando sabe-se lá o que.

— Voltar para onde?

— Esteja aqui amanhã. Chegue mais cedo ...

Dito isso, foi recuando até ser tragada pelas sombras que cercavam o quintal. No horizonte, uma faixa avermelhada anunciava o romper da aurora.

Ao ver que a entidade se retirara, D. Zelinha se aproximou pressurosa.

— O que foi isso?

— Um primeiro contato - respondi esfregando as mãos para espantar o frio. Amanhã tem mais!

Como resultado dessa aventura na madrugada, acordei ao meio-dia. Encontrei D. Zelinha atarefada, cuidando dos preparativos para o almoço. Depois de tudo arranjado, tirou um tempinho para falar comigo. Achou graça do meu cansaço e disse estar ansiosa pelo próximo encontro. A experiência da noite anterior a deixara animada, ao contrário de mim, que continuava a sentir aquela sensação desconfortável.

Durante nossa conversa ela revelou um dado de extrema importância. A fazenda possuía dois cemitérios, detalhe não alardeado para não espantar hóspedes sensíveis. Um deles, o mais antigo, fora mandado construir pelo primeiro proprietário e era destinado ao Senhor da Casa Grande, seus familiares e agregados. O outro, bem maior, aos escravizados que morriam sem ter sentido o gosto da liberdade. Ambos estavam abandonados há décadas e ela ressaltou um detalhe que se mostraria fundamental. As sepulturas do primeiro eram identificadas por lápides e, algumas, decoradas com esculturas. Sabia-se da localização do segundo por estar cercado por um muro de pedras. Se um dia houvera alguma marcação que identificasse os sepultados, o abandono havia se encarregado de apagar. Com uma exceção. Nos fundos do campo-santo, próximo ao muro, uma pedra solitária, toscamente escavada, indicava que ali jazia alguém que merecera uma deferência negada aos seus desafortunados companheiros de morada. 

Pedi a ela que me levasse ao local. A existência desse marco era uma evidência que não podia ser negligenciada. O deslocamento não foi fácil. Como não havia sequer uma picada aberta que chegasse até lá, foi preciso um utilitário com tração nas quatro rodas para vencer as irregularidades do terreno. 

Os dois cemitérios eram relativamente próximos e fomos direto ao dos escravizados, que  estava tomado pelo mato. D. Zelinha pediu ao funcionário, que era também o motorista, que abrisse uma passagem com a roçadeira trazida na carroceria do veículo. Terminado o trabalho, nos aproximamos da campa para examinar os vestígios do que deve ter sido o epitáfio - a essa altura ilegível.

— Nosso amor está escrito nas estrelas ... 

O tom da voz era inconfundível e a fala veio acompanhada de uma risadinha zombeteira.

— O Jacinto era analfabeto e só copiou as letras. Deve ser por isso que ninguém consegue entender o que está escrito aí.

Ao meu lado flutuava a noiva das flores de laranjeira. Pela tranquilidade que mantinham D. Zelinha e o motorista intuí que apenas eu podia vê-la. Aos sussurros, expliquei o que estava acontecendo e pedi a ela que levasse o funcionário para longe, de modo que eu pudesse conversar com a moça sem parecer um maluco falando sozinho.

— Era o que Akil dizia - disse ela com aquele olhar vazio de quem rompeu o último fio de esperança.

— Quem é Akil?

- O filho de Naná. Deve ter sido ela quem mandou gravar isso na pedra.

— És tu enterrada nessa sepultura?

— Aqui está apenas o que restou de mim.

Dito isso, a loucura voltou a dominar aquele espírito atormentado e ela começou a vagar sem rumo, sumindo devagar. Antes de desaparecer completamente, voltou aonde eu estava e reforçou o pedido feito no nosso último encontro:

— Chegue cedo.

Naquela noite, assim que o movimento na pousada diminuiu, D. Zelinha e eu nos dirigimos ao refeitório e de lá descemos ao pátio. Não demorou para que um brilho azulado anunciasse a chegada da entidade. Vinha no seu passo lento, alienada e misteriosa como de costume. Ficou dando voltas pelo pátio até que, finalmente, parou a nossa frente. Fez uma mesura e falou em tom afetado, do jeito que deve ter aprendido quando estava sendo treinada para se portar como uma dama de classe:

— Muito prazer. Eu sou Maria de Lourdes, ou Lurdinha, como todos me chamam.

Retribui o cumprimento com uma breve reverência, disse meu nome e de D. Zelinha. Feitas as apresentações, tentei entabular uma conversação. Lurdinha estava presa num transe que a impedia de se comunicar livremente. Era preciso um esforço tremendo para se fazer entender. Por isso tínhamos que chegar cedo - deduzi. Ela sabia que não seria fácil dizer o que queria nos contar.

Felizmente seu empenho foi recompensado. Ficamos sabendo que, quando viva, mantivera um diário onde contava tudo o que precisávamos saber sobre ela e Akil. Com medo que seu pai o destruísse, o escondera dentro da senzala. Pedi que nos mostrasse o ponto exato, porém ela recusou. Por algum motivo não podia, ou não queria, entrar naquela peça. Do jeito que lhe foi possível, indicou onde deveria estar e sumiu, transtornada pelo esforço.

Ainda estava escuro e não havia iluminação naquela parte da casa. Tivemos que esperar o sol raiar para dar início a busca.

As informações fornecidas por Lurdinha eram imprecisas. Levamos boa parte da manhã examinando os tijolos das paredes da senzala em busca de uma cavidade que pudesse abrigar um objeto do tamanho de um livro. Nossa persistência por fim foi recompensada. Num canto escuro, próximo ao teto, num vão difícil de enxergar, encontramos uma lata coberta de pó e teias de aranha. Estava bem conservada, por ser de folha de flandres. Em sua vida útil deve ter sido utilizada para armazenar farinha, café ou grãos em uma despensa. Em algum momento tivera um rótulo, agora ilegível. A tampa estava selada com cera, um costume antigo para evitar a entrada de umidade. Em seu interior, encontramos um pacote envolto por duas camadas de oleado, bem amarrados. Alguém, no passado, fizera o que estava ao seu alcance para que o conteúdo ficasse protegido por gerações. Levamos tudo para o escritório de D. Zelinha e abrimos o embrulho com o maior cuidado, revelando uma caderneta com a capa revestida em couro, onde se destacava o monograma ML cercado por arabescos dourados. O miolo era constituído por papel de boa qualidade e estava em razoável estado de conservação. Com redobrado interesse folheei as páginas ao acaso. As primeiras estavam preenchidas por uma caligrafia  de traçado elegante, leve e floreado. A seguir, um trecho a lápis destoava da primeira parte. Eram mais garranchos do que letras. A terceira e última parte apresentava novamente um traçado gracioso, todavia com um estilo diferente, provavelmente por ter sido escrito por outra pessoa. Não obstante a enorme curiosidade que nos consumia, convenci D. Zelinha que o melhor seria entregar o achado aos cuidados de um paleógrafo de confiança. Apenas ele, com sua experiência e conhecimento técnico saberia manusear aquela preciosidade sem danificá-la e, principalmente, decifrar o que ali estava registrado.

Voltei ao Rio o mais depressa que pude e fui direto ao especialista. Contei-lhe o caso por alto, até porque eu mesmo tinha mais dúvidas do que certezas sobre o que poderia estar acontecendo. Seus olhos brilharam ao ver aquela relíquia e ele prometeu dar notícias em breve.

Foram necessárias duas semanas para que ele concluísse o trabalho. Ao nos encontrarmos, entregou um volume encadernado com a transcrição do diário e, sério, advertiu:

— É melhor ler sentado. O que você tem em mãos é capaz de derrubar qualquer um.

Ele não estava exagerando. Comecei a ler a transcrição naquele mesmo dia e só parei na manhã seguinte, horrorizado. Precisava avisar D. Zelinha para que tomasse providências urgentes. Caso contrário, outra tragédia poderia se abater sobre a fazenda e seus ocupantes.

***

Fim da primeira parte. Para ler a segunda parte clique aqui!

Comentários

  1. História misteriosa demais! Terminando aqui a primeira parte e passando pra segunda "num galope só", pra descobrir que tal caderneta é essa. Hi-yo, Silver!

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  2. Se não fosse por essa caderneta não haveria a segunda parte dessa história!!

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