Recém-casados

Quem segue os causos que conto sabe que sou gaúcho e moro na Tijuca, no Rio de Janeiro. Quem não sabia, agora ficou sabendo! Próximo ao edifício onde fica meu apartamento há uma padaria, na qual sempre que posso tomo um café-com-qualquer-coisa para encerrar o expediente. Desde o caso da Festa de Aniversário fiquei conhecido por aqui e é comum alguém se aproximar pedindo conselhos ou querendo relatar suas próprias experiências. Foi o que aconteceu com um dos socorristas que trabalha no quartel de bombeiros próximo. Chegou acanhado, pediu licença para sentar. Era um moço alto, forte, curtido de sol, cuja atitude retraída não combinava com o porte altivo.

Olhei resignado - prefiro bebericar meu café em silêncio -, assentindo com a cabeça. Ofereci uma xícara, que prontamente aceitou. Esqueceu de colocar açúcar, mas rodava a colher de plástico absorto em pensamentos. Finalmente tomou coragem para perguntar:

— De qual parte do Rio Grande do Sul o senhor vem?

— De Canoas, na grande Porto Alegre.

Esperava outro tipo de abordagem. Instintivamente respondi informando a cidade onde nasci, não onde residia antes da mudança. Confesso que o inusitado da pergunta despertou curiosidade.

Ele prosseguiu, sem levantar os olhos:

— Olha a coincidência. Cheguei de lá há pouco. Trabalhei no resgate das vítimas da enchente.

Durante o primeiro semestre de 2024 o extremo Sul foi tragado por uma inundação avassaladora. Perdeu-se muito em vidas humanas e animais, bem como propriedades. Milhares ficaram desabrigados. Uma tragédia que comoveu o País e levou um contingente de voluntários a se deslocar para prestar socorro aos necessitados.

O nervosismo do meu interlocutor era evidente e eu já adivinhava o motivo. Era bombeiro profissional, submetido as rígidas normas da corporação. No decorrer da missão deve ter presenciado algo com o qual não conseguia lidar. Para encorajá-lo pedi que descrevesse o cenário que encontrara por lá. Ele ignorou a pergunta e desatou a falar:

— Por ser gaúcho, o senhor deve saber que em 1941 houve uma enchente parecida com essa de agora.

O nível da curiosidade subiu dois pontos.

— Estou ciente.

— O que vou contar deve ficar entre nós. Meus superiores não estão a par do que se passou. Se souberem, não vão entender e isso prejudicaria minha progressão na carreira. Inclusive, posso responder a processo disciplinar e ser condenado à baixa desonrosa. 

— Fique tranquilo. Não é a primeira vez que me deparo com esse tipo de circunstância.

Na sequência, fez o relato que reproduzo a seguir, o mais fielmente possível.

Em abril de 1941 uma moça chamada Isabel ultimava os preparativos para casar-se com Darcy. Conheciam-se desde criança e ansiavam por dar início a uma nova família. Noivaram no Natal do último ano, após o noivo ser promovido no escritório no qual trabalhava. Marcaram a data do casório para maio, o mês das noivas. A cerimônia seria celebrada na Igreja São Luiz, no centro de Canoas. Isabel, animadíssima, sentia-se abençoada por realizar um sonho de menina, desposando o homem que amava no templo em que seus pais juraram amor eterno. Morava com eles na mesma cidade, no bairro Mathias Velho, numa casa simples, de madeira, como era comum na região. Darcy vivia sozinho na Capital. Num sábado chuvoso, Isabel aguardava na varanda a chegada do amado que prometera trazer a última edição da revista O Cruzeiro para atualizá-la com as tendências da moda. Desejava estar elegante no dia mais importante de sua vida. Esperou em vão. Quem veio visitá-la foi o rio Jacuí, extravasado de seu leito. Despontou ao longe e foi chegando de mansinho. Ela podia vê-lo aproximando-se sorrateiramente, engolindo tudo em seu caminho. Pai e mãe, escolados por vivências anteriores, preparavam-se para a invasão iminente. Urgia fugirem antes que fosse impossível sair dali vivos. Isabel deixou-se levar sem saber do consorte. A falta de notícias aliada ao passar do tempo fazia crescer uma sensação ruim alojada em seu peito. A normalidade retornou e seu bem-querer permanecia desaparecido. Moveu céus e terras tentando localizá-lo. Entrou em desespero ao descobrir que ele perecera ao cruzar a ponte do rio Gravataí. O ônibus que o transportava fora arrastado pela enxurrada, levando consigo todos os passageiros. Abalada com o destino cruel do noivo, Isabel fechou-se para o mundo e manteve-se solteira, apesar do cortejo de inúmeros pretendentes.

O relato era impressionante. Perguntei como ele estava a par de tantos detalhes. Sorriu sem graça e explicou:

— Isso tudo me foi contado pela sobrinha de Isabel. Quando a conheci contava 101 anos e morava na mesma casa de sua juventude com a filha caçula de sua irmã.

Segundo a sobrinha, a tia era introvertida ao extremo. Raramente falava. Várias vezes parentes próximos tentaram interná-la num asilo ou levá-la para morar num local menos insalubre que a decadente residência de seus pais. Por incrível que pareça, o comportamento de Isabel mudou radicalmente ao ver a chuva torrencial cair sem dar trégua. De hábito taciturna e calada, começou a cantarolar baixinho músicas de sucesso na época do noivado. Pediu que colocasse a cadeira de balanço na varanda, de onde acompanhava a evolução da calamidade pelo rádio.

Como era de se esperar, não demorou para que o alagamento alcançasse os degraus da escadinha que conduzia à varanda. A sobrinha, apavorada, acompanhava o incremento da lagoa que se formava ao redor. Queria convencê-la a se mudarem para um abrigo, mas Isabel se recusava, dizendo coisas sem sentido, tipo:

— Não posso sair daqui. Se ele chegar e não me encontrar nunca nos veremos novamente.

A angústia da sobrinha aumentava na medida em que o avanço da água progredia. Todos os vizinhos haviam partido. Restaram apenas as duas, ilhadas na pequena casa de madeira. Ninguém a quem recorrer num raio de quilômetros. Assim que o assoalho desapareceu, tomou a única decisão possível: colocou uma cadeira sobre a mesa da sala, subiu nela e abriu um buraco nos lambris do forro. Improvisou um jirau, onde estocou os poucos mantimentos disponíveis. A muito custo içou Isabel e a instalou num colchão, afastada da abertura. Temia que a tia caísse e se afogasse no lodaçal abaixo delas. No momento em que a situação tornou-se realmente crítica, sem ter como escapar, removeu algumas telhas e plantou-se na cumeeira.

Nesse ponto o bombeiro fez uma pausa. A crueza dos eventos enfrentados deixara marcas:

— Patrulhávamos em busca de retardatários. Fora um dia terrível em meio a destroços, sujeira e pessoas desoladas. Sentia-me abatido. Eu comandava uma equipe composta por dois socorristas e pilotava o barco. Consultei meus colegas e concordamos em voltar à base.

Calou, visivelmente emocionado. Engasgou, os olhos umedeceram. Estava agoniado. Precisou de um minuto para se recompor. Então, continuou:

— Ao assestar o rumo que devíamos seguir algo alterou a rota. Senti nitidamente a mão invisível de alguém segurando a minha, conduzindo o barco a seu bel-prazer. Navegamos uma centena de metros, até o vigia de pé na proa fazer sinal para desligar o motor. Firmou a vista e confirmou a presença de um flagelado encarapitado no telhado, acenando com uma toalha vermelha. Fomos direto para lá. Encontramos a casa praticamente submersa. Foi um parto resgatar a velhinha que se recusava a sair. Tivemos que carregá-la à força.

Tomei outro gole de café e mordisquei um pastel, dando a ele oportunidade de se recuperar.

— Recolhemos as duas e iniciamos o retorno à base, sediada em Porto Alegre. Tia e sobrinha sentaram de frente para mim, compartilhando uma manta térmica. A moça a abraçara para mantê-la aquecida e protegê-la dos inevitáveis solavancos. Isabel permanecia tranquila desde que pusera os pés no barco, por isso não suspeitei de nada. O caminho era longo e arriscado. A qualquer momento a correnteza poderia emborcar a embarcação. Uma forte ondulação nos pegou de cheio, empurrando na direção de um monte de entulhos. Manobrei com rapidez para evitar o choque. Desviei a atenção das passageiras por um segundo! A virada brusca desequilibrou a sobrinha e ela precisou se apoiar para não cair. Olhei para Isabel prevendo o pior. Ela simplesmente afrouxou o corpo e deixou-se escorregar pela borda. A sobrinha gritou. Dei meia-volta. No centro do redemoinho formado pelo afundamento do corpo vi boiar um objeto branco. Era um buquê intacto, imaculado. Parecia novo. Recolhi o achado e o entreguei à sobrinha. As flores de laranjeira estavam frescas; exalavam um perfume adocicado que se sobrepôs ao fedor nauseante característico das áreas alagadas. 

Na última parte ele esbugalhara os olhos, fixos em mim. Não demonstrei a surpresa que ele provavelmente esperava porque sabia de antemão como terminava a história, embora não pudesse revelar-lhe os detalhes. Intrigado com meu silêncio, concluiu a narrativa:

— Demos início as buscas imediatamente. Ficamos horas rodando, procurando pela senhora. Estive em Brumadinho, na Muzema e em outros locais de acidentes terríveis. Recebi menções honrosas e destaques por atos acima do cumprimento do dever. Nunca - jamais! - perdi uma vítima localizada viva. O descer da noite nos forçou a parar. O risco de acidente era altíssimo e não pretendia colocar em perigo meus camaradas e a sobrinha. Voltamos calados. Para todos os efeitos, nada de estranho ocorreu e aquela missão resultou em apenas uma pessoa resgatada.

Confortei o rapaz explicando que a culpa não era dele, nem havia porquê preocupar-se. Estava tudo bem. Isabel finalmente realizara seu sonho de menina.

— Como o senhor pode ter certeza?

— Um passarinho me contou — disse piscando para o casal de mãos entrelaçadas, parados atrás do socorrista. Isabel sorria, radiante nos seus dezoito anos. Darcy envergava o terno com o qual deveriam ter se casado.

Fiquei observando enquanto os dois acenavam em despedida. O bombeiro reparou na minha expressão perdida no vazio e olhou para trás. Nada viu. Os pombinhos haviam partido há pouco para sua merecida lua-de-mel.

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